16 Março 2009
Certamente não somos mais os mesmos após o legado de Charles Darwin. Somos melhores, acredita a filósofa Anna Carolina Regner, uma das conferencistas do IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin, que acontece de 9 a 12 de setembro na Unisinos. Para a pesquisadora, especialista em Darwin, a grande contribuição desse cientista, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, “à questão da origem das espécies foi o mecanismo de sua teoria da seleção natural, pela qual se dá a produção de novas e ‘mais aperfeiçoadas’ formas orgânicas”. A respeito da querela criacionismo versus teoria da evolução, Regner explica que “o criacionismo contra o qual Darwin claramente se coloca tem um sentido bem técnico: trata-se da visão de que cada espécie seja fruto de um ato especial de criação”. De acordo com ela, não há incompatibilidade entre a teoria darwiniana e a existência de um Criador ou Deus. Ambas podem ser compatíveis.
Graduada em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Anna Carolina Regner é mestre em Filosofia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutorou-se em Educação pela UFRGS e é pós-doutora pela Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Atualmente, é professora no PPG em Filosofia da Unisinos e faz parte da coordenação e da comissão técnico-científica do evento Ecos de Darwin. Escreveu Charles Darwin, notas de viagem: a tessitura social no pensamento de um naturalista (Porto Alegre: EST/Grafosul, 1988).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual foi o contexto científico e filosófico no qual desponta Charles Darwin e sua Teoria da Evolução?
Anna Carolina Regner – A origem das espécies, cuja primeira edição aparece em 1859, teve um impacto não somente no estudo da História Natural e nas disciplinas do que hoje chamamos de Ciências Biológicas, mas no nosso próprio modo de ver e conceber a atividade científica. Na Inglaterra, a “História Natural” que Darwin encontrou confundia-se com uma “teologia natural”, quando os naturalistas (muitas vezes pacatos párocos) tomavam a aparente perfeição de adaptações e co-adaptações como evidências de desígnio divino, enfatizando a harmonia de toda a natureza. No plano dos debates geológicos e paleontológicos, a grande polêmica era a do “catastrofismo versus uniformitarismo”. As investigações sobre o tema ensejavam investigações sobre a origem das formas biológicas, a respeito da qual a grande polêmica foi a do “criacionismo versus evolucionismo”. Ambos os termos sofreram diferentes determinações. No que concerne ao evolucionismo, as diferenças foram, sobretudo, referentes ao mecanismo da mudança. Quanto ao criacionismo, o termo comportou diferentes níveis de comprometimento com a idéia de intervenção divina para a explicação dos fenômenos naturais. O criacionismo contra o qual Darwin claramente se coloca tem um sentido bem técnico: trata-se da visão de que cada espécie seja fruto de um ato especial de criação.
"A ciência não demanda ateísmo, mesmo que a aceitação ou rejeição de suas teorias não dependa da crença em um Criador"
IHU On-Line – Em que aspectos ele inova e revoluciona a ciência do seu tempo?
Anna Carolina Regner – A grande contribuição de Darwin à questão da origem das espécies foi o mecanismo de sua teoria da seleção natural (da preservação e acúmulo na direção requerida das variações úteis a seu portador e a eliminação das injuriosas), pela qual se dá a produção de novas e “mais aperfeiçoadas” formas orgânicas. Esse novo modo de ver a questão-chave da Origem refletirá decisivamente na pesquisa das várias áreas da História Natural, demandando a criação e a reorganização de vários departamentos de pesquisa. Contudo, a revolução epistemológica de Darwin foi mais além, trazendo, entre outras mudanças, uma nova visão de padrões de procedimentos científicos. As conotações que Darwin empresta ao que seja a tarefa explicativa representam um dos mais fortes indicadores de sua presente contemporaneidade. Em todos os momentos da sua tarefa explicativa, Darwin está atento ao fato de que "explicar" sempre depende de uma determinada visão teórica ou suposição e, em particular, da comparação de visões diferentes, sobretudo em casos como o seu, quando, segundo suas palavras, não há um único dos fatos arrolados que não possa ser visto de uma maneira diferente da sua. Comparar a acuidade e maior alcance de sua visão com a visão adversária será uma das estratégias básicas de Darwin ao construir e defender a sua própria teoria.
Um resultado importante dessa estratégia é que “explicar” resulta em apresentar a melhor alternativa explicativa possível – que acontece ser a teoria darwiniana – e que, mais adiante, torna-se a única explicação (racional) possível. Ao comparar a sua teoria com a de seus oponentes, por meio da resposta a objeções, Darwin normalmente faz uso de vários procedimentos reconhecidos como "científicos", mas também lança mão de procedimentos bastante inovadores, como a rede de informações que criou em sua correspondência, o tratamento de dificuldades e objeções à teoria, o jogo do atual (o que está dado) e do possível (do que pode ser dado, sem impossibilidade lógica ou fática) ao explicar e avaliar os méritos de nossas explicações, sua solicitação de que seja considerado o poder explicativo da teoria “como um todo”, o uso que ele faz de imaginação e metáforas, e o apelo à autoridade da comunidade científica. Tais procedimentos contribuíram para o reconhecimento da complexidade das relações entre a unidade teórica e a testabilidade empírica, e do papel determinante das estratégias argumentativas.
IHU On-Line – O que é a Teoria da Evolução contida em A origem das espécies?
Anna Carolina Regner – É a teoria segundo a qual novas espécies originam-se na Natureza por meio da seleção natural, ou seja, pela preservação daquelas variações úteis a seu portador e destruição das injuriosas. Conforme Darwin diz na introdução à sua obra mestra, dizer que espécies surgem umas de outras sem mostrar o mecanismo deixa o evolucionismo em pé de igualdade com o criacionismo. Por isso, contrariamente a interpretações bastante conhecidas, não penso que, em Darwin, possamos separar a teoria da evolução da sua teoria da seleção natural.
IHU On-Line – Ambas teorias são incompatíveis ou é possível serem conciliadas? Por quê?
Anna Carolina Regner – A pergunta aqui pede por um esclarecimento maior. O “criacionismo”, enquanto a doutrina que diz ser cada espécie fruto de um ato especial de Criação, certamente é incompatível com a teoria da seleção natural. Segundo a última, as espécies, na natureza, originaram-se umas de outras por um mecanismo “natural”, enquanto a primeira requer a intervenção divina para a criação de cada um das espécies, colocando sua origem em um plano “sobrenatural”. Porém, se a questão for a de saber da incompatibilidade ou não entre a teoria darwiniana e a existência de um Criador ou Deus, penso que podem ambas ser compatíveis. A aceitação ou rejeição da teoria darwiniana não dependia da aceitação ou rejeição da existência de um Criador. Darwin não se ocupou de questões religiosas em seus escritos públicos, mas apenas na Autobiografia [1] que escreveu para sua família e em sua Correspondência [2].
Na primeira, Darwin critica a religião judaico-cristã, sobretudo por razões éticas (como explicar tanto sofrimento e punição resulte de um Deus benevolente? Seriam as demais religiões indignas?) e epistemológicas (qual a evidência para suas explicações?). Embora se reconheça teísta quando publicou a Origem, admite ter-se tornado gradualmente um agnóstico. Sua correspondência mostra diferentes aspectos da questão. As discussões sobre religião, em seu início de casamento, com sua esposa Emma, adepta da Igreja Unitária, revelam que, embora pautadas pelo respeito mútuo, suas divergências não eram omitidas para evitar desentendimentos. Sua troca de cartas na angustiante e dolorosa experiência que ambos viveram na doença e morte de sua filha Annie, revela-nos um Darwin em uma situação-limite em que se surpreende com expressões de apelo a Deus.
"Conforme Darwin diz na introdução à sua obra mestra, dizer que espécies surgem umas de outras sem mostrar o mecanismo deixa o evolucionismo em pé de igualdade com o criacionismo"
A correspondência com leitores que o procuravam diante de seus próprios conflitos entre a aceitação das idéias de Darwin e sua fé nas palavras da Bíblia revela um Darwin respeitoso quanto ao que considerava depender do íntimo de cada indivíduo e sincero em sua caminhada agnóstica. Em mais de uma carta, ele exprime que se vê em um lamaçal sem saída, quando não pode conceber que este Universo, em sua ordem, seja fruto de um mero acaso, mas não pode também aceitar que tanta desgraça e miséria seja fruto de um plano divino. Esse conflito estendeu-se, talvez com menor vigor, até o fim de sua vida, pois, ainda em 1881 (faleceu em 1882), ao responder a um de seus correspondentes, disse que, mesmo em seus períodos de maior oscilação e dúvidas, jamais chamaria a si mesmo um ateu. A ciência não demanda ateísmo, mesmo que a aceitação ou rejeição de suas teorias não dependa da crença em um Criador.
IHU On-Line – Quais foram as principais descobertas de Darwin na sua obra fundamental?
Anna Carolina Regner – Foram muitas as suas “descobertas” ou “visões” que se revelaram teórica e empiricamente sustentáveis. Recorrendo-se ao índice da Origem, surpreende ver que o conteúdo temático, através do qual sua questão motora, “como espécies originam-se na Natureza”, é perseguida, cobre todas as diversas áreas da História Natural – da esfera orgânica, desde o exame de fatos particulares diversos, regularidades empíricas referentes à variabilidade de caracteres específicos e genéricos, instintos, hibridismo, mimetismo, questões morfológicas, embriológicas, da ocorrência de órgãos rudimentares, efeitos da domesticação, até questões das afinidades dos seres orgânicos entre si e sua classificação; da esfera inorgânica, referente aos registros geológicos; e da interação entre essas esferas, no tratamento de questões dos registros paleontológicos, da sucessão geológica dos seres orgânicos e de sua distribuição geográfica. A esse elenco, junta o concurso de novas áreas, do saber tanto científico quanto prático, como a das "leis da variação" e da "variação sob domesticação".
IHU On-Line – Que aspectos permanecem atuais e que aspectos foram superados?
Anna Carolina Regner – Não sei se “superados” é a expressão mais correta, mas, embora Darwin tenha considerado a “seleção natural” como a mais importante causa ou poder para explicar a produção de novas espécies, não a considerou como sendo única. Hoje, são também enfatizados outros mecanismos evolutivos. Darwin foi um ferrenho “gradualista” na explicação dos processos de modificações das espécies. Esse aspecto foi contestado, mas para avaliar seu impacto, lidamos com critérios muito elásticos: o que significa gradualismo em tempos geológicos? A teoria da hereditariedade de Darwin é talvez, um de seus pontos mais fracos. Ele não conheceu o conceito de gene, nem o de herança mendeliana. O neo-darwinismo, que em alguns aspectos distorce o darwinismo, direciona a “seleção natural” para o nível do gene, quando a seleção natural, no texto de Darwin, opera em vários e diferentes níveis: do indivíduo, da espécie, da família, da comunidade, do grupo. No caso dos animais sociais, a seleção natural preserva o que é útil ao indivíduo enquanto animal social, não havendo aí conflito. Uma leitura de Darwin em sua própria versão, que é a da Origem das espécies, continua sendo fértil e esclarecedora. Por exemplo, algumas das novas linhas de abordagem, como as da ecologia e da evolução e desenvolvimento (evo-devo) podem lá encontrar suas sementes inovadoras. Vale também lembrar que outros aspectos do pensamento darwiniano estão ainda em época de colheita, como seus estudos sobre a mente e seu enfoque sobre psicologia evolutiva e cognitiva.
"Comparar a acuidade e maior alcance de sua visão com a visão adversária será uma das estratégias básicas de Darwin ao construir e defender a sua própria teoria"
IHU On-Line – Qual é a importância de se comemorar o bicentenário de seu nascimento?
Anna Carolina Regner – É a importância de se comemorar um dos grandes marcos de toda a ciência e em geral, de toda a cultura humana. A origem das espécies teve um impacto em várias dimensões da vida humana, não somente no modo de ver e conceber a atividade científica e o homem, mas no pensar as relações entre ciência e religião. Não podemos simplesmente ignorar tais efeitos. Ainda que possamos questionar se somos melhores ou piores depois de Darwin, certamente não somos mais os mesmos. Pessoalmente, penso que somos melhores. Pelo menos, somos mais humildes e deveríamos ser mais tolerantes entre nós e mais respeitosos com a Natureza.
Em seus estudos sobre o homem e sobre a teoria das emoções, Darwin diz que a vontade, consciência e intenção resultam do desenvolvimento das faculdades superiores. A moral, a parte mais nobre do homem, segundo Darwin, onde o homem é o supremo juiz de sua conduta, tem sua origem nos instintos sociais, no amor e na simpatia, geradores de um sentimento de “certo” e “errado”, à base do qual a moral se edifica. Uma pequena dose de juízo ou razão está presente, segundo Darwin, mesmo em nossos instintos. A mente humana evoluiu a partir da mente dos animais mais inferiores.
IHU On-Line – Nesse sentido, quais são os grandes debates que o Simpósio Ecos de Darwin irá promover? Que pesquisadores já confirmaram suas presenças e o que cada um deles estuda?
Anna Carolina Regner – Como pode ser visto na programação deste encontro que terá lugar de 9 a 12 de setembro próximo na Unisinos, o IX Simpósio Internacional IHU: Ecos de Darwin busca sua voz nas questões e reflexões que suscitou e que impõem um repensar de nossas crenças, atitudes e expectativas nas diferentes esferas de nossa vida. Assim, o Simpósio contemplará aspectos históricos, filosóficos, científicos e religiosos do legado e das promessas darwinianas. Contará, para tanto, com nomes da maior importância nacional e internacional. Já estão confirmados: Edward Manier (Notre Dame University), renomado estudioso no estudo das origens da Origem das espécies; Pietro Corsi (Oxford University), referência internacional em Darwin e Lamarck; Charles Smith (Western Kentucky University), o grande conhecedor de Alfred Wallace; Ana Luísa Janeira (Universidade de Lisboa), autoridade em Teilhard de Chardin; William Stoeger do Observatório Astronômico do Vaticano; Louis Caruana, organizador do recém-lançado Darwin e o Catolicismo; e Carlos A. Valle-Castillo (Universidad San Francisco de Quito/Equador), que nos falará sobre o legado de Darwin em Galápagos. Colegas nossos do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro e São Paulo igualmente compõem o elenco de palestras. Heloísa Mª Bertol Domingues (MAST – RJ) falará sobre a recepção do darwinismo no Brasil, Lilian Al-Chueyr Pereira Martins (PUC-SP) sobre o evolucionismo pós-darwiniano no século XIX, Roberto de Andrade Martins (Unicamp) sobre aspectos não-darwinianos de Darwin e Carlos Roberto Cirne-Lima (Professor Emérito da Unisinos), sobre evolução e sistema. Aldo Mellender de Araújo (UFRGS) trará reflexões sobre a teoria da seleção sexual de Darwin, Gervásio Silva Carvalho (PUC-RS), sobre a biogeografia de Darwin, e Lúcia G. Lohmann (USP), sobre um dos mistérios de Darwin, a história das lianas neotropicais. De minha parte, participarei com algumas reflexões sobre Deus e Ciência em Darwin.
Notas:
[1] DARWIN, C. 1993.The autobiography of Charles Darwin, 1809-1882 (edited by Nora Barlow). New York: W.W. Norton & Co. (Nota da autora)
[2] Darwin and the Correspondence Project / Darwin and Religion (http://www.darwinproject.ac.uk/content/view/130/125/). (Nota da autora)
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"Somos melhores depois de Darwin". Entrevista especial com Anna Carolina Regner - Instituto Humanitas Unisinos - IHU