05 Março 2018
Irmã Maria - os nomes das irmãs são fictícios - chegou cerca de vinte anos atrás a Roma, vinda da África negra. Desde então recebe religiosas de todo o mundo e há algum tempo decidiu testemunhar o que vê e ouve sob o sigilo da confidência "Muitas vezes recebo freiras em situações de serviço doméstico realmente bem pouco reconhecido. Alguns delas trabalham nas casas de bispos ou cardeais, outras atuam na cozinha de estruturas da Igreja ou executam tarefas de catequese e ensino. Algumas delas, empregadas ao serviço de homens da Igreja, levantam-se de madrugada para preparar o café-da-manhã e vão dormir depois de ter servido o jantar, organizado a casa, ter lavado e passado a roupa .... Nesse tipo de "serviço" as freiras não têm um horário preciso e regulamentado, como os leigos, e o seu pagamento é aleatório, frequentemente bastante modesto".
A reportagem é de de Marie-Lucile Kubacki, publicada no caderno mensal "Mulheres, Igreja, Mundo" do jornal L’Osservatore Romano, de março de 2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas, o que mais entristece a Irmã Marie, é que aquelas irmãs raramente são convidadas a sentar-se à mesa que servem. Então ela pergunta: "Um eclesiástico pensa que a irmã deva lhe servir a refeição e ficar comendo sozinha na cozinha depois de servi-lo? É normal que uma pessoa consagrada seja servida dessa forma por outra consagrada? E sabendo que as pessoas consagradas destinadas aos serviços domésticos são quase sempre mulheres, religiosas? A nossa consagração não é igual à deles?". Um jornalista romano que cobre a área religiosa criou até um apelido para elas: "irmãs pizza", referindo-se justamente ao trabalho que lhes é atribuído.
A Irmã Marie continua: "Isso tudo suscita em algumas delas uma revolta interna muito forte. Sentem uma profunda frustração, mas têm medo de falar, porque por trás de tudo podem existir histórias muito complexas. No caso de freiras estrangeiras vindas da África, da Ásia e da América Latina, há, às vezes, uma mãe doente cujos tratamentos foram pagos pela congregação da filha religiosa, um irmão mais velho que teve a possibilidade de completar seus estudos na Europa graças à superiora.... Se alguma dessas religiosa volta para seu país, a sua família não entende. Diz a ela: mas como você é cheia de manias! Essas irmãs sentem-se em dívida, amarradas, e então se calam. E, inclusive, muitas vezes vêm de famílias muito pobres, onde os próprios pais trabalhavam como empregados domésticos. Algumas dizem que estão felizes, que não veem o problema, mas mesmo assim sentem uma forte tensão interna. Semelhantes mecanismos não são saudáveis e algumas irmãs chegam, em alguns casos, a tomar ansiolíticos para suportar tal situação de frustração".
É difícil avaliar a extensão do problema do trabalho gratuito ou pouco remunerado, mas, certamente, pouco reconhecido das religiosas. Primeiro temos que definir o que se entende por isso.
"Muitas vezes significa que as irmãs não têm um contrato ou uma convenção com os bispos ou as paróquias onde trabalham", explica a irmã Paule, uma religiosa com cargos importantes na Igreja. Portanto, acabam recebendo pouco ou nada. Isso é o que ocorre nas escolas ou nos ambulatórios, e mais frequentemente no trabalho pastoral ou quando assumem a cozinha e as tarefas domésticas na diocese ou na paróquia. É uma injustiça que se verifica também na Itália, não só em terras distantes".
Além da questão do reconhecimento pessoal e profissional, essa situação apresenta problemas reais e urgentes para as irmãs e as comunidades. "O maior problema é simplesmente como viver e manter viva uma comunidade", acrescenta a Irmã Paule. "Como prever os fundos necessários para a formação religiosa e profissional dos seus membros, quem vai pagar e como pagar as contas quando as irmãs ficam doentes ou necessitam de cuidados por causa da idade que as impede de trabalhar. Como encontrar recursos para desempenhar a missão de acordo com o seu carisma".
A responsabilidade por tal situação não é só dos homens, mas muitas vezes é compartilhada. "Certa vez conversando com o reitor de universidade, ele me contou que ficou impressionado com a capacidade intelectual de uma irmã que tinha uma licenciatura em teologia", lembra a irmã Marie. "Ele queria que ela continuasse os seus estudos, mas a sua superiora se opôs. Muitas vezes, a razão alegada é que as irmãs não devem se tornar orgulhosas". A Irmã Paule insiste nesse ponto: "Acredito que a responsabilidade é principalmente histórica. A freira viveu por longo tempo apenas como membro de uma comunidade, portanto, sem ter necessidades próprias Como se a congregação pudesse tomar conta de todos os seus membros sem que cada um trouxesse a sua contribuição através do próprio trabalho. Também é amplamente difundida a ideia de que as religiosas não trabalham com contrato, que estão ali à disposição para sempre, que não precisam ser estipuladas condições. Tudo isso cria certa ambiguidade e muitas vezes grande injustiça. Também é verdade que sem contrato as religiosas são mais livres para deixar um emprego sem grande aviso prévio. Tudo isso atua nas duas frentes, a favor e contra as religiosas".
Mas não se trata apenas do dinheiro. A questão da retribuição econômica é mais como a árvore que esconde a floresta de um problema muito maior: o do reconhecimento. Muitas pessoas religiosas têm a sensação que se está fazendo muito para revalorizar as vocações masculinas, mas muito pouco para as femininas. "Por trás de tudo isso, infelizmente, ainda existe a ideia de que a mulher vale menos do que o homem, especialmente que o sacerdote é tudo, enquanto a irmã não é nada na Igreja. O clericalismo mata a Igreja", afirma a irmã Paule. "Eu conheci irmãs que tinham servido durante trinta anos em uma instituição da Igreja e me contaram que, quando ficavam doentes, nenhum dos sacerdotes que serviam ia visitá-las. De um dia para o outro eram mandadas embora sem uma única palavra. Às vezes isso ainda acontece: uma congregação coloca uma freira à disposição para atender uma solicitação e, quando aquela irmã adoece, é enviada de volta à sua congregação... E elas enviam outra, como se fossemos intercambiáveis. Eu conheci irmãs com doutorado em teologia que de um dia para o outro foram mandadas a cozinhar ou lavar pratos, missão totalmente desvinculada de sua formação intelectual e sem uma explicação real. Eu conheci uma freira que havia ensinado por muitos anos em Roma, e certo dia, aos cinquenta anos, disseram-lhe que a partir daquele momento a sua missão seria de abrir e fechar a igreja paroquial, sem nenhuma outra explicação".
A irmã Cécile, professora, há muitos anos está sofrendo por essa falta de consideração.
Em sua opinião, as freiras de vida ativa são vítimas de uma confusão sobre os conceitos de serviço e de gratuidade. "Somos herdeiros de uma longa história, a de São Vicente de Paulo, e de todas aquelas pessoas que fundaram congregações para os pobres em um espírito de serviço e de doação. Somos religiosas para servir até o fim e justamente isso provoca um desvio no subconsciente de muitas pessoas na Igreja, criando a convicção de que nos retribuir não esteja de acordo com a ordem natural das coisas, qualquer que seja o serviço que oferecemos. As irmãs são vistas como voluntárias das quais é possível dispor à vontade, o que dá origem a verdadeiros abusos de poder. Por trás de tudo isso, há a questão do profissionalismo e da competência que muitas pessoas ainda têm dificuldade em reconhecer às religiosas".
A Irmã Cécile, em seguida, acrescenta: "Eu atualmente trabalho em um centro sem um contrato, diferentemente de minhas irmãs laicas. Dez anos atrás, no contexto de minha cooperação com a mídia, me perguntaram se eu realmente queria ser paga. Uma das minhas irmãs coordena o coral na paróquia próxima e apresenta conferências na quaresma sem receber um centavo... Enquanto isso, quando um padre vem dizer uma missa na nossa instituição, cobra 15 euros. Às vezes as pessoas criticam as religiosas, o seu semblante fechado, o seu caráter .... Mas por trás de tudo isso, existem muitas feridas". Para a irmã Marie, trata-se de violência simbólica: “É aceita por todos na forma de consentimento tácito. Algumas freiras que me procuram estão angustiadas, mas não conseguem falar. Então eu digo a elas: Vocês têm o direito de dizer a verdade sobre o que vocês sentem. Para dizer à sua superiora geral o que vocês vivem e como o vivem". Às vezes, por essa situação também é responsável a própria superiora geral que, longe de questionar o sistema, o valida, e participa ativamente aceitando acordos humilhantes para as irmãs.
A Irmã Cécile também acredita que as religiosas devam falar: "De minha parte, quando sou convidada para dar uma conferência, não hesito mais em dizer que desejo ser remunerada e qual é o valor que espero. Mas, é claro, eu me adapto à disponibilidade daqueles que me perguntam. Minhas irmãs e eu vivemos muito parcamente e não visamos à riqueza, mas apenas viver simplesmente em condições dignas e justas. É uma questão de sobrevivência para as nossas comunidades". O reconhecimento do seu trabalho também constitui, para muitas, um desafio espiritual. "Jesus veio para nos libertar e aos seus olhos somos todos filhos de Deus", esclarece a Irmã Marie. "Mas em sua vida concreta algumas freiras não vivem isso e experimentam uma grande confusão e um profundo desconforto." Algumas religiosas finalmente consideram que as suas experiências de pobreza e submissão, às vezes sofridas e às vezes escolhidas, poderiam se transformar em um tesouro para toda a Igreja, se as hierarquias masculinas as considerassem uma oportunidade para uma verdadeira reflexão sobre o poder.
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O trabalho (quase) gratuito das Irmãs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU