23 Janeiro 2018
Com sua figura mais emblemática no banco dos réus, o PT precisa vir a público admitir os erros que cometeu, que incluem não expulsar figuras que “achavam que poderiam disputar, em esperteza, com as artimanhas da elite tradicional”, afirmou o ex-governador gaúcho e ex-ministro das Cidades Olívio Dutra. O fundador da legenda e um de seus nomes mais respeitados conversou com The Intercept Brasil, nesta segunda-feira, em Porto Alegre, onde participa de manifestações de apoio ao ex-presidente Lula.
Crítico contumaz das direções recentes do partido, Dutra crê que os problemas legais e éticos enfrentados pelo petismo nos últimos anos se devem, fundamentalmente, ao descolamento entre as bases do partido e seus dirigentes.
“Fizemos concessões a um tipo de política em que as negociações de cúpula valem mais do que o envolvimento do povo”, lamentou. “E não teríamos entrado nesse funil em que estamos. Ele também disse ver com preocupação o domínio cada vez maior da figura de Lula sobre o partido — a ponto de caciques da legenda dizerem que não há alternativa à candidatura dele à presidência em outubro. “O partido, que é uma construção coletiva, passa a ficar dependente ou coadjuvante nesse processo”, afirmou.
Aos 76 anos, Olívio Dutra é um político sui generis para os padrões brasileiros. Desloca-se de ônibus por Porto Alegre, mesmo em dias agitados como essa segunda, quando a cidade começou a receber caciques de todo o país para o julgamento do recurso de Lula contra a sentença em que foi condenado a nove anos e seis meses de prisão pelo juiz federal de primeira instância Sérgio Moro. A Curitiba, para o primeiro depoimento a Moro, no ano passado, Lula viajou num jato particular que pertence ao ex-ministro Walfrido dos Mares Guia, enroscado no escândalo do mensalão tucano em Minas Gerais.
Olívio Dutra participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980, um ano depois de ser preso pela ditadura militar por comandar uma greve de servidores públicos gaúchos – à época, ele presidia o sindicato dos bancários do estado. Ele foi prefeito de Porto Alegre (1989 a 93), governador do Rio Grande do Sul (1999 a 2003) e ministro das Cidades (2003 a 2005).
Fonte: The Intercept
A entrevista é de Rafael Moro Martins e publicada por The Intercept Brasil, 22-01-2018.
Lula será julgado nesta quarta-feira na segunda instância num processo em que já foi condenado por Sérgio Moro a nove anos e meio de prisão, pela alegada posse de um apartamento tríplex. Também responde a processos por conta de um sítio em Atibaia, um terreno para o Instituto Lula e um apartamento em São Bernardo. Tudo isso, segundo a acusação, foi presente de empreiteiras. O senhor acha que Lula é inocente?
Eu acredito na imparcialidade do Judiciário. Mas quem tem que comprovar essa imparcialidade é o próprio Judiciário. Toda decisão que vier tem que ter provas, e não suposições. Estamos aqui para dizer que uma parcela significativa do povo brasileiro não está satisfeita com a maneira como estão funcionando os três poderes. Nenhum deles está funcionando na maneira de um estado de direito, democrático.
Lula é uma liderança, construída ao longo de décadas. Penso que essa liderança, evidentemente, tem que responder muita coisa, e ele não está fugindo de responder isso, está no campo de batalha. Para mim, Lula tem evidentemente uma enorme simbologia, surgiu do interior da classe trabalhadora, chegou à Presidência, fez um governo de transformações importantes, inclusão social enorme, ainda que tenha mantido as estruturas, — reforma política não houve, reforma tributária não houve, reformas agrária e urbana não aconteceram. O Judiciário está usando de parcialidades, de subjetividades, até de preconceitos, que são próprios da elite brasileira, para buscar enquadrar o Lula em crimes. A sociedade tem que exigir provas concretas. Ou não se tem confiança [numa sentença judicial]. O Judiciário não pode viver numa redoma de vidro, numa sociedade democrática. Democracias mais consolidadas têm setores do Judiciário eleitos pelo voto dos cidadãos. Se falar nisso no Brasil, dizem que é uma agressão à democracia. A qual democracia? As elites brasileiras têm a democracia como algo que pode ou não ser do seu interesse.
Numa entrevista à Rádio Gaúcha, em 2016, o senhor disse o seguinte: “Não adianta querer dizer que não [aconteceram mensalão e petrolão], culpar o adversário, a grande mídia. Tudo isso existiu sim”. Mas não é exatamente nessa linha de negação desses episódios que vai a defesa do PT e de Lula? Não falta autocrítica ao PT?
Houve pessoas, no PT, que achavam que estavam construindo um poder que poderia disputar, em esperteza, com as artimanhas da elite tradicional, com seus partidos históricos, que sempre usaram e abusaram do espaço público para satisfazer interesses pessoais. O erro do Partido dos Trabalhadores foi sua direção não ter separado essas condutas individuais do projeto coletivo. O PT não é o partido do Lula, não é o partido do Olívio. É um projeto coletivo. Que vai para o governo, e não para governar sozinho. Tem que compor, numa realidade que não depende da vontade do governante, mas de conjunturas, e o partido não discutiu essa realidade com sua própria base, e muito menos com o conjunto da sociedade. E foi se deixando envolver nessa malha. Ele precisa dizer isso, publicamente, evidente que sim. Ainda não disse o suficiente.
Que pessoas são essas, do PT, a quem o senhor se referiu?
Eu não sou de nominar, fulanizar a política. Mas é evidente, está ali, não preciso ser eu a apontar o dedo. Mas tem problemas, ou não estaríamos nessa situação. O impeachment não foi porque a Dilma cometeu erros, roubou, tem conta no exterior, acumulou riqueza. Foi uma urdidura que se montou por cima de alguns argumentos de que figuras do PT se envolveram em coisas não claras, de que a política tradicional é useira e vezeira, e a elite aproveitou-se disso para dar o golpe de agosto de 2016.
Quais são os erros que trouxeram o partido à situação em que ele está agora?
Não sou o juiz do PT. Até estranho, por que a fixação no PT?
Porque o PT surgiu e cresceu com a promessa de que seria diferente da velha política brasileira.
A conduta do PT poderia ter sido melhor. Se avançou bastante [nos governos petistas], mas no fazer se imitou muito a conduta de quem nós sempre condenamos. Portanto, o PT tem sim que fazer sua autocrítica, se explicar, mas isso se faz no campo democrático. Também temos que lutar para que a democracia não se estreite, para que quem deu o golpe em 2016 não comece a criminalizar os movimentos [sociais], para não ter o Estado como uma cidadela dos interesses dos poderosos. Os partidos políticos são importantes numa democracia, deveriam ser escolas de formação política permanente, não apenas para ensinar, mas também para aprender. E não são.
Falando no papel dos partidos: tem se falado em eleições com candidatos independentes, sem filiação partidária. O senhor acredita nisso? Os partidos são instituições ultrapassadas?
Os partidos precisam ter uma estrutura democrática para falar em democracia. Grande parte dos partidos, historicamente, no Brasil, surgiu de cima para baixo. O PT, não. Surgiu de lutas sociais num momento crucial da história brasileira. Portanto, tinha o compromisso de não retroceder.
Retrocedeu?
Fizemos concessões a um tipo de política em que as negociações de cúpula valem mais do que o envolvimento consciente dos amplos setores populares. A solução do problema democrático no país não é estreitar os espaços até aqui conquistados, mas radicalizar, ampliar a participação consciente do povo. Tínhamos o orçamento participativo, por exemplo. O partido tinha que ter mantido essa orientação e essa prática. Os partidos políticos não devem ser mesas de negociação, de toma lá, dá cá, de ocupação de cargos ou aproveitamento de espaços públicos. As direções partidárias têm o dever de aprender com as bases partidárias, os movimentos sociais, a sociedade brasileira.
Seu diagnóstico é de que o PT se afastou das bases, virou um partido como os outros, e precisa retomar o contato com as bases. Como se faz isso?
As bases do PT nunca se entregaram totalmente a essa visão verticalizada, das coisas decididas de cima para baixo. O PT surgiu questionando a ideia de uma direção partidária que é onde os deuses se encontram e de lá baixam suas ordens. O PT poderia ter ido mais longe do que foi na forma de fazer política, mas enfrentou conjunturas que independem da vontade do governante. Estamos devendo muito, ainda, para a nossa base e a sociedade. Mas isso não nos faz merecer o sal da terra e muito menos ficar nos chicoteando a toda hora. O partido é um ser vivo, um projeto coletivo.
Mas não está individualizado, nessa obsessão pela candidatura presidencial de Lula?
Esse é um problema sério, em toda a América Latina, a ideia de pessoas que incorporam e passam a ser um símbolo quase isolado, tanto pela direita quanto pela esquerda. É um problema que, a meu ver, não está solucionado, [ter] uma figura importante como Lula como para-raio de tudo que acontece, e o partido, que é uma construção coletiva, passa a ficar dependente ou coadjuvante nesse processo. Não é [uma situação] exclusiva do PT.
Nas eleições de 2016, tivemos uma abstenção recorde, principalmente entre os jovens. Como a política faz para se reconectar com esse público?
Não é tarefa de um partido, de meia dúzia de partidos. É uma questão cultural, de conscientização. Mas a elite brasileira não pode ser a condutora disso, ela é o problema, não é a solução. Há quem propõe a não obrigatoriedade do voto…
O senhor concorda?
Acho que é um processo. E não é o momento, ainda [para isso]. E é bom lembrar que na Venezuela o voto não é obrigatório, e a direita aqui condena a Venezuela, por várias razões, algumas até que se justificam. Tem havido eleição quase todo ano na Venezuela, mas isso por si só resolve, garante uma democracia estabilizada? Não. Tem questões sociais, culturais, que têm de ter sujeitos coletivos capazes de fazer os desdobres, a qualificação democrática. Nos Estados Unidos, Trump, o presidente perdeu no voto popular. Não existe democracia que não precise ser aperfeiçoada.
Está na moda, nesse momento de crise do sistema político-partidário, falar em refundação dos partidos. Se fosse para refundar o PT, em que bases isso teria de se dar? Quais as diferenças em relação ao PT atual?
Primeiro que eu não simpatizo com a ideia de refundação. As fundações de um prédio às vezes, conforme o movimento das placas tectônicas embaixo, precisam ser reforçadas. Um partido é um corpo vivo, precisa ser sempre questionado por suas bases.
Então refaço a pergunta dessa forma: as queixas das bases, no PT, tem a atenção da cúpula?
Evidente que não. Se estivessem ecoando o suficiente, não teríamos entrado nesse funil em que estamos. Houve uma postura de [decisões impostas] de cima para baixo, por contingências as mais variadas, explicações as mais diversas. Temos que tirar essa lição. As relações com a base não podem ser passageiras, episódicas, eleitoreiras. Têm que ser permanentes. Assim como queremos para a sociedade; não queremos que o cidadão seja um cidadão ocasional, eventual. Um partido que não surgiu de cima para baixo, tinha e tem a obrigação de levantar a política como construção do bem comum, e não simplesmente se mobilizando em ocasiões eleitorais, para disputar cargos. A construção do bem comum é muito mais que isso. Luto para que o PT retome seu caminho, para que o povo o corrija.
Quando liguei para o senhor para avisar que já estava aqui, o senhor estava a caminho, no ônibus. Não é uma situação comum a dirigentes de outros partidos, inclusive de esquerda, do PT. A proximidade com o dinheiro, com grandes empresas, empreiteiras, que a Lava Jato transparece, estragou o PT?
Há vários ditados populares, que dizem que o coração está onde está o dinheiro, que têm que ser negados na prática. Tem a frase, acho que do [ex-secretário de Estado dos EUA durante os governos de Richard Nixon e Gerald Ford Henry] Kissinger, de que o poder é afrodisíaco. Tem a história da mosca azul, de quem chega a um cargo e passa a se achar mais importante que o próprio cargo – aliás, o Frei Betto tem um bom livrinho sobre essa questão (rindo). [Se refere a “A mosca azul“, lançado em 2006, logo após o auge do Mensalão, em que o frei dominicano analisa o que era então a maior crise vivida pela esquerda brasileira]. É bom ler (ainda rindo). Tem sempre essa contradição na vida. O ser humano não é um anjo.
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"O PT tem que fazer sua autocrítica, se explicar". Entrevista com Olívio Dutra - Instituto Humanitas Unisinos - IHU