27 Julho 2017
A maioria dos casos de violência no campo termina no dia da morte da vítima. Praticamente, não há julgamentos. Desde 1985, apenas 6 de cada 100 assassinatos foram julgados, segundo dados compilados pela Comissão Pastoral da Terra. Mas, um caso ocorrido em Rondônia no ano passado fugiu à regra e vai a júri popular em 15 de agosto.
A reportagem é de Amanda Rossi, publicada por BBC Brasil, 27-07-2017.
Em 31 de janeiro, cinco trabalhadores sem-terra foram perseguidos por um grupo de homens armados em Cujubim, norte do Estado. No dia seguinte, o corpo de um deles foi encontrado carbonizado em um carro. Um segundo homem desapareceu e foi dado como morto. Os outros três conseguiram fugir, embora um deles tenha sido assassinado neste ano.
A violência irradiou para pessoas próximas ao caso. Testemunhas foram ameaçadas e um jornalista que cobriu a história sofreu um atentado.
O episódio expõe a tensão nas margens da Amazônia. Mapeamento da BBC Brasil com base em dados da organização internacional Global Witness mostra que 9 de cada 10 ativistas brasileiros que lutam pela terra (como sem-terra, trabalhadores rurais e indígenas) ocorreram na Amazônia Legal - que engloba 8 estados e parte do Maranhão. Rondônia é o Estado com o maior número de vítimas.
Pela morte dos dois homens e a tentativa de homicídio contra os outros três, o Ministério Público de Rondônia pediu a condenação de um pecuarista, do gerente de sua fazenda, do presidente de uma associação rural local e de dois integrantes da Polícia Militar de Rondônia. Os cinco acusados, que se dizem inocentes, estão presos preventivamente.
"Esse é um dos poucos casos de violência no campo que foi minimamente esclarecido. Chegou a júri e houve presos. É um avanço frente à impunidade existente", diz Josep Iborra Plans, da Articulação Amazônia da Comissão Pastoral da Terra. Plans já foi, ele mesmo, ameaçado de morte.
Para Plans, o caso também exemplifica a truculência no campo. "Os mortos foram perseguidos sem misericórdia. Uma autêntica caçada humana".
A história do assassinato dos dois sem-terra começa com a reintegração de posse da fazenda Tucumã, em Cujubim, que estava ocupada pelo acampamento "Terra Nossa". O dono da área não tinha título da propriedade. Em janeiro de 2016, o grupo sem-terra saiu do local por determinação da justiça. Não houve incidentes.
A tragédia ocorreu em seguida. Após a reintegração, cinco ex-ocupantes voltaram ao antigo acampamento, sob a justificativa de recolher objetos que ficaram para trás. Era 31 de janeiro. Ao chegarem, encontraram os resquícios da ocupação destruídos. Deixaram o local e foram emboscados por um grupo armado, de acordo com testemunhas. Tentaram fugir e foram perseguidos por dezoito horas, segundo o MP.
No dia 3 de fevereiro, o corpo carbonizado foi encontrado dentro de um carro. Exames de DNA confirmaram que era o de Alysson Henrique de Sá Lopes, 23 anos. O estado do corpo não permitiu que a perícia identificasse a causa definitiva da morte. Ruan Lucas Hildebrandt de Aguiar, 18 anos, nunca foi achado, apesar das buscas, e foi dado como morto.
Na fazenda Tucumã, foi apreendida uma caminhonete que levava um "arsenal", nas palavras do MP: uma metralhadora, quatro espingardas, um revólver, munição, fardamento, GPS.
Os outros três homens fugiram da área em meio às toras de madeira transportadas em um caminhão, segundo relatos. A fuga não foi uma solução. Mais tarde, em 4 de março deste ano, Renato de Souza Benevides foi assassinado.
Outro, sofreu um novo atentado em 2016, sobreviveu e entrou no programa de proteção a testemunhas. O terceiro teve que sair da região. Os nomes dos dois sobreviventes foram omitidos pela BBC Brasil, por questão de segurança.
A violência não se esgotou aí. Em fevereiro deste ano, Roberto Santos Araújo, liderança do acampamento Terra Nossa, foi morto. A mãe de Ruan, cujo nome não revelamos por questão de segurança, entrou no programa de proteção a testemunhas. Ela passou a procurar mais informações sobre o desaparecimento do filho e suspeitava que o corpo de Ruan tivesse sido atirado em um rio, amarrado em uma pedra.
Em depoimento, a mãe de Ruan informou que uma testemunha da região contou a ela que, no dia dos fatos, teria visto o rapaz saindo do mato muito cansado e pedindo água. Em seguida, apareceram pessoas que se apresentaram como policiais, o detiveram, o amarraram e o levaram em um carro, que seria o mesmo onde o corpo de Alysson foi encontrado carbonizado. A testemunha também está sob proteção do Estado.
Ivan Pereira da Costa, jornalista do norte de Rondônia que cobriu a história, foi vítima de atentado a tiros na frente da sua casa em Cujumim, em abril de 2016, e saiu da cidade. A BBC Brasil não conseguiu encontrá-lo. "Me calaram. Não posso continuar na cidade e nem com o site", disse em entrevista na época, para o G1 de Rondônia.
Segundo o MP de Ariquemes, ainda não é possível saber se esses casos estão relacionados ao crime principal.
Mapa mostra que 9 em 10 ativistas assassinados no Brasil morreram na Amazônia.
O proprietário da fazenda Tucumã, Paulo Iwakami, é um dos denunciados pelo MP pela morte de Alysson e Ruan. Natural do Paraná, Iwakami migrou para Rondônia há mais de três décadas. "Ele pegou mata pura e formou a fazenda", diz o advogado Marcos Vilela de Carvalho, que representa Iwakami.
Uma de suas fazendas, a Tucumã, foi algumas vezes ocupada por grupos sem-terra. "Na última invasão, (os sem-terra) mataram dezenas de animais, queimaram casa, curral, trator", afirma Vilela de Carvalho.
Em seu depoimento, Iwakami disse que Sérgio Sussumu, então presidente de uma associação rural da região, indicou pessoas para fazerem a segurança da fazenda Tucumã. Os funcionários teriam sido orientados a procurar a polícia se houvesse qualquer ocorrência, diz a defesa. "Mas aconteceu aquela anarquia. O Paulo Iwakami é inocente. Cada um é responsável por seu CPF", afirma seu advogado, incriminando os subordinados do fazendeiro.
Já a defesa de Sergio Sussumu alega que ele é inocente e que sua participação no caso é uma "história inventada" pelo proprietário da fazenda Tucumã. Acrescenta que ele não foi reconhecido pelos policiais denunciados pelas mortes. Ressalta ainda que Sussumu também teve uma fazenda invadida por sem-terra e que resolveu o assunto sem ocorrência policial.
O grupo contratado para fazer a segurança da fazenda Tucumã seria formado por Rivaldo de Souza, gerente e proprietário da caminhonete apreendida com armas, Jonas Augusto dos Santos Silva, cabo da PM, e Moisés Ferreira de Souza, sargento da PM. A BBC Brasil não conseguiu contato com a defesa dos dois primeiros.
O sargento Moisés, como Souza é conhecido, também é suspeito na chacina de Colniza (MT), onde nove pessoas foram assassinadas em abril deste ano. Foi a maior chacina no campo desde Eldorado dos Carajás, em 1996. Segundo a Polícia Judiciária Civil de Mato Grosso, o sargento seria o líder de um grupo intitulado "Encapuzados". Ele estava foragido e se apresentou à justiça apenas no final de maio.
A defesa de Souza diz que o sargento é inocente nos dois casos e acrescenta que tem provas de que ele estava na cidade de Ji-Paraná quando os crimes aconteceram. Portanto não poderia estar presente nas cenas dos homicídios. "No Brasil, primeiro se prende, depois se investiga. Não existem provas. Moisés tem 6 anos no Exército, 22 anos na PM, foi para a Força Nacional, tem folha de elogios na corporação", afirma o seu advogado, Jorge Muniz Barreto.
Assim como no caso de Alysson e Ruan, em Rondônia, há outros episódios de violência no campo envolvendo seguranças contratados por donos de terras. Segundo Anderson Batista de Oliveira, promotor de Justiça de Ariquemes e responsável pelo caso dos dois jovens, esses seguranças são contratados para "andarem armados, apesar de não terem porte legal de armas, e evitarem a tomada da terra".
"São os jagunços, chamados de guaxebas aqui em Rondônia. Andam em pequenos grupos, de cavalos ou carros, e fazem patrulhas pelas estradas de terra. Como se fosse um estado paralelo, uma milícia", afirma Oliveira.
Casos de assassinato de proprietários rurais ou de seus funcionários também ocorrem, segundo as fontes ouvidas pela BBC Brasil. E também há episódios de violência, sem morte, dos dois lados.
"Aqui há muita terra pública grilada. Quando algum grupo invade a terra, a solução de ambos os lados é violenta. Há casos, por exemplo, em que os invasores matam animais, queimam pasto, disparam arma de fogo nas redondezas. Até o ápice, mais raro, que é a invasão total da sede da fazenda", completa Oliveira.
As características da Amazônia dificultam o combate a esses crimes. "São fatos que ocorrem na selva, em áreas de grandes latifúndios, a centenas de quilômetros da cidade, onde não pega celular, com muitas rotas de fuga e esconderijo e onde qualquer presença diferente é facilmente percebida. Não vai ser a investigação convencional para delitos urbanos que vai elucidar esse tipo de crime cometido na zona rural. Infelizmente, não existe estrutura na Polícia Civil e no Ministério Público para fazer essa investigação", explica o promotor de Justiça.
Cristiane Lima, coronel da PM do Pará na reserva e professora de direitos humanos, aponta um novo fator de conflito: "Voltou a aparecer aqui no Pará a participação do policial na violência do campo. É o ressurgimento de um discurso de guerra. Um sentimento de justiceiros, de que é preciso resolver os problemas na minha área", comenta.
O delegado Mario Jorge Pinto Sobrinho, da delegacia de conflitos agrários de Rondônia, convive diariamente com a violência no campo. Para ele, "o grande problema da violência no campo é a ausência da reforma agrária". "Se o Estado fizesse reforma agrária, Rondônia não estava nessa briga toda. O Incra está acabando em Rondônia, sem servidores", diz.
O presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de Rondônia, Cletho Muniz de Brito, confirmou à BBC Brasil a gravidade da situação do campo na região. "Todo dia está ocorrendo reintegração de posse em Rondônia. É hoje o Estado onde mais está morrendo gente no campo. Pode ocorrer em algum momento alguma situação que fuja do controle."
A Secretaria de Segurança de Rondônia afirmou, em nota, que vem atuando "com a Patrulha Rural e priorizando a investigação dos crimes relacionados ao conflito de terras". Sobre a morte de Alysson e Ruan, disse que "todas as medidas legais de responsabilidade das polícias como investigação e produção de provas foram feitas dando suporte ao Judiciário".
O julgamento é esperado com grande expectativa por movimentos sociais do campo de Rondônia. A Comissão Pastoral da Terra está organizando uma vigília de oração na véspera, dia 14 de agosto, em Ariquemes, onde será realizado.
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Corpo carbonizado, testemunha assassinada e jornalista perseguido: o caso que expõe 'guerra' nas margens da Amazônia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU