03 Março 2017
“Tudo começou com um convite. Os amigos de Trieste, principalmente Stefano Sodaro, me convidaram para dar uma conferência sobre o tema “Igreja, autoridade e Evangelho”. Eu desenvolvi o discurso que vocês encontrarão no vídeo abaixo [em italiano] e ao qual eu acrescento, logo depois, um “esquema por teses”, no qual eu resumi algumas coisas que considero importantes para ler o tempo eclesial e cultural em que vivemos.”
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 26-02-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Igreja, autoridade e Evangelho
Sete teses para uma cordial despedida do modelo do século XIX
“Como deve ser exercida a autoridade? (…) Aqui, o Concílio torna-se mais explícito, introduzindo uma terminologia e uma forma literária nova (…) Essa mudança levou a redefinir o que era um concílio e o que deveria realizar. O Vaticano II modificou de modo tão radical o modelo legislativo-judicial que prevaleceu desde o primeiro concílio, o de 325 em Niceia, que, na prática, abandonou-o, substituindo-o por um modelo baseado na persuasão e no convite. Foi uma mudança de enorme importância.”
J. W. O’Malley [1]
“Se resolvemos os problemas da fé apenas com o método da autoridade, certamente possuímos a verdade, mas em uma cabeça vazia.”
São Tomás de Aquino
Duas afirmações nos antípodas – uma pós-moderna e uma pré-moderna – permitem-nos captar a questão de fundo, que caracteriza a “ruptura moderna”: ou seja, a pretensão de que a liberdade substitui a autoridade. Tento responder em sete teses, quase more luterano:
1. O mundo moderno celebra a sua novidade na descoberta da liberdade e da dignidade original de cada sujeito. Diante dessa descoberta, a Igreja Católica reagiu mal por cerca de um século e meio. Contrapondo a autoridade à liberdade, criou um imaginário antimodernista em que Deus é o contrário da liberdade.
2. A Igreja não estava desprovida de boas razões. Ela poderia ter desenvolvido um realismo da “genealogia autorizada da liberdade”, não uma “defesa antiliberal da autoridade”. Com efeito, onde quer que haja liberdade, há vestígios de uma “liberdade outra”, que chamamos de autoridade. Sem comunhão de autoridade, a liberdade não pode existir.
3. Esse entrelaçamento de liberdade e autoridade é uma “condição do magistério”. Ninguém pode ensinar sem considerar a liberdade não só como “fim”, mas também como “horizonte”. Uma alternativa radical entre autoridade e liberdade gera uma paralisia do magistério. Esse é o efeito do antimodernismo: falando apenas “ex auctoritate”, perde-se toda autoridade.
4. O antimodernismo, como obsessão pela defesa da autoridade contra a liberdade, marcou não só a primeira metade do século XX, mas também, embora sub altera specie, a última parte do século e o início do nosso. Se, para mediar a tradição, ela é bloqueada, refugiamo-nos da responsabilidade e recuamos diante da realidade. “Non possumus” tornara-se, nas últimas décadas, o slogan de um magistério que renunciava abstratamente à autoridade (em matérias como ordenação, unção, tradução, celebração, homilia...) para não perdê-la concretamente.
5. As únicas duas exceções a essa tendência dominante foram o Concílio Vaticano II, com a sua inércia até a década posterior, e depois – repentinamente, mas não sem pressentimento –, depois de 30 anos, o Papa Francisco, o primeiro papa “filho” do Concílio. Os Padres do Concílio, sentindo a sua dura responsabilidade, quase o esvaziaram; o filho, sendo “irresponsável”, pode implementá-lo e vivê-lo, acima de tudo assumindo o horizonte da Dignitatis humanae com seriedade.
6. O paradoxo é este: quem se interpretava como “tradicional” interrompia a tradição, renunciando ao exercício da autoridade e reconhecendo autoridade apenas a um passado idealizado; quem quer libertar a Igreja da “autorreferencialidade” exerce a própria autoridade reconhecendo outras autoridades e relendo o passado de modo dinâmico e não unívoco.
7. No recente discurso à revista La Civiltà Cattolica, o Papa Francisco traduziu os “princípios” da Evangelii gaudium de modo criativo: inquietação, incompletude e imaginação são as exigências vitais da experiência cristã. Essa é a “auctoritas” em sentido verdadeiro e pleno: deixar ao mistério a primeira e a última palavra, para que possa crescer o dom do Espírito e se edificar o corpo de Cristo. Para receber aquilo que se é e ser aquilo que se vê. Autoridade e liberdade em relação recíproca, sem fechamentos e com muita esperança.
Citei O’Malley e Tomás no início. Quero encerrar com Routhier/De Certeau e Sartori:
a) No centro do Vaticano II, está a redescoberta da “auctoritas” e a “tradução da traditio” (citação de G. Routhier).
b) A dificuldade de receber essa reviravolta: a metáfora do catenaccio [tática de futebol conhecida pelo defensivismo extremo] em relação ao jogo à la holandesa (citação de L. Sartori).
Concluo: no discurso final do Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI falou da exigência que a Igreja tinha de ter à sua frente “todo o homem fenomênico”. Não só o homem da autoridade, mas também o da liberdade. Esse desafio é retomado pelo Papa Francisco. Ele faz parte da grande tradição eclesial, que sabe que sempre deve mediar entre “evidência” e “autoridade”. Isso foi expressado de modo inesquecível em uma frase de Santo Agostinho, no De Ordine:
“Ad discendum item necessario dupliciter ducimur, auctoritate atque ratione. Tempore auctoritas, re autem ratio prior est” (De ord., II, IX, 26 [CCL, XXIX, 121, 2-122, 4]).
A relação com os fenômenos exige o recurso à auctoritas por razões temporais. Como não somos seres “imediatos”, para as mediações, devemos sempre iniciar pela auctoritas. O outro é parte de nós. Não temos nada do que é propriamente humano “por si”, mas sempre “por outro”. O primado do tempo sobre o espaço nos lembra a delicadeza desse recurso estrutural à autoridade. Como somos seres “históricos”, devemos elaborar uma experiência da autoridade que se componha, por um lado, com a “razão” e, por outro, com a “liberdade”. Uma teologia “pós-liberal” procura refletir até o fim sobre esse ponto crítico da tradição. Libertando-se dos fantasmas antimodernistas e recuperando a dinâmica autêntica daquela tradição que nunca se envergonhou de traduzir o Evangelho em novas palavras e em novas ações.
Em síntese e em conclusão: sem liberdade, a autoridade não vive, mas, sem autoridade, a liberdade não nasce.
1. J. W. O’Malley. Che cosa è successo nel Vaticano II. Milão: Vita e Pensiero, 2010, p. 13. (tradução brasileira: O que aconteceu no Vaticano II. São Paulo: Loyola)
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Sem liberdade, a autoridade não vive. Sem autoridade, a liberdade não nasce. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU