25 Janeiro 2017
“A comemoração de 2017, que recorda os primórdios da Reforma, deve ser entendida como um convite para retornar à preocupação original de Martinho Lutero e a nos perguntar o que ela significa hoje, para católicos e protestantes, assim como para o ecumenismo em geral, depois de 500 anos de divisão. Se a comemoração da Reforma for realizada nesse espírito, de modo conjunto, poderemos esperar dela novos e corajosos impulsos para o processo de aproximação ecumênica entre católicos e protestantes.”
A opinião é do cardeal alemão Kurt Koch, presidente do Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos, em artigo publicado no jornal L’Osservatore Romano, 18-01-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 31 de outubro de 2016, na catedral luterana de Lund, na Suécia, o Papa Francisco, junto com o bispo Younan e o reverendo Junge, respectivamente presidente e secretário-geral da Federação Luterana Mundial, presidiram uma oração ecumênica no marco da comemoração comum católico-luterana da Reforma.
Esse evento foi recebido como um sinal ecumênico promissor. No entanto, para que ele não permaneça relegado ao passado, mas dê os seus frutos também no futuro, será necessário compreender mais a fundo, precisamente em 2017, ano da comemoração da Reforma, o espírito que o animou.
Isso é ainda mais importante pelo fato de o evento de Lund não ter sido apenas acolhido com gratidão, mas também encontrou críticas e oposições. Enquanto, do lado católico, temeu-se um desvio protestante do catolicismo, do lado protestante falou-se de uma traição da Reforma. Portanto, será bom nos determos sobre por que a comemoração da Reforma ocorreu de maneira conjunta e por que, hoje, não é possível, de fato, fazer de outra forma.
O primeiro motivo é que a comemoração de 2017 é o primeiro centenário do início da Reforma que ocorreu em época ecumênica. Portanto, ela não poderá ser celebrada como as outras dos séculos passados, quando prevaleciam tons confessionalmente facciosos e polêmicos. Esses tons marcaram, em particular, o centenário de 1617, quando a Europa se encaminhava para um duro conflito, ou seja, para uma verdadeira guerra religiosa. Na época, o primeiro centenário da Reforma foi claramente marcado por uma polêmica anticatólica e por uma retórica belicosa.
Mas os centenários posteriores da Reforma também tiveram uma forte marca confessional, reivindicando de vez em quando a figura de Martinho Lutero como protagonista e pioneiro do respectivo espírito do tempo. Enquanto isso, durante o Iluminismo, Lutero foi saudado como o libertador da escuridão medieval e o fundador da Idade Moderna, foi exaltado como o grande gênio religioso durante o pietismo.
Na comemoração de 1917, Lutero foi celebrado não apenas como o pai da língua alemã, mas, de modo mais geral, como personificação do verdadeiro caráter germânico, e isso aconteceu novamente com tons bélicos.
No período que se seguiu à catástrofe europeia da Primeira Guerra Mundial, o teólogo protestante Adolf von Harnack podia afirmar que a Idade Moderna tinha começado na Alemanha e, a partir daí, tinha se espalhado pelo mundo: “A Idade Moderna começou com a Reforma de Lutero, ou seja, no dia 31 de outubro de 1517; ela foi introduzida pelos golpes de martelo no portal da Schlosskirche de Wittenberg”.
Esses tons confessionalmente facciosos e polêmicos, que enrijeceram, do lado católico, a rejeição de Lutero e da sua reforma, não são mais possíveis em época ecumênica. Em época ecumênica, vigora, em vez disso, como regra geral, a participação solidária na vida dos outros, na alegria e no sofrimento. No movimento ecumênico, além disso, chegou à maturação a ideia de que a Reforma não diz respeito apenas aos protestantes, mas também aos católicos, e que, consequentemente, a comemoração da Reforma só pode ocorrer hoje em uma comunhão ecumênica. Ela se apresenta a ambas as partes como um convite bem-vindo a dialogar sobre o que os católicos podem aprender com a Reforma e sobre o que os protestantes podem obter da Igreja Católica como enriquecimento para a própria fé.
Essa comunhão ecumênica é indispensável se considerarmos a atual comemoração da Reforma em si mesma, sem nos deixar influenciar pelas anteriores. Ela remete a 1517 e, mais precisamente, ao dia 31 de outubro daquele ano, considerado o início da Reforma na Alemanha, em recordação da chamado afixação das teses sobre as indulgências por Martinho Lutero na porta da Schlosskirche de Wittenberg.
A esse respeito, em 1962, o teólogo católico Erwin Iserloh, especialista em história da Igreja, tinha definido tal afixação como uma lenda; desde então, muitos historiadores consideram que a suposta afixação das teses, na realidade, nunca aconteceu assim como foi transmitida. De um ponto de vista histórico, deve-se partir do fato de que Martinho Lutero enviou as suas teses ao seu bispo local, Hieronymus Schulz, e ao arcebispo Albrecht. Lutero queria a publicação das suas teses sobre as indulgências como um convite a uma disputa douta sobre o assunto; com eles, ele queria abordar, como observou o historiador da Igreja protestante Thomas Kaufmann, “a perda de credibilidade da sua amada Igreja” e salvar “a Igreja papal de Roma, que ele amava”.
A publicação das teses sobre as indulgências não deve ser vista, portanto, como o início da Reforma que levou à divisão da unidade da Igreja. E as teses também não devem ser consideradas como um documento revolucionário; elas refletiam também uma preocupação católica e se moviam no marco daquilo que a própria teologia católica do tempo podia afirmar.
À luz desse contexto histórico, a comemoração da Reforma em 2017 recorda 1517, isto é, recorda o tempo em que ainda não tinha se produzido a ruptura entre o reformador Martinho Lutero e a Igreja Católica, e a unidade da Igreja ainda não tinha se quebrada, já que Lutero ainda estava em comunhão com a Igreja Católica. Também por esse motivo, a comemoração da Reforma em 2017 só pode ocorrer em uma comunhão ecumênica.
Nesse contexto mais amplo, é evidente o que Martinho Lutero realmente trazia no coração. Ele absolutamente não queria a ruptura com a Igreja Católica e a fundação de uma nova Igreja, mas tinha em mente a renovação de toda a cristandade no espírito do Evangelho. Pressionava Lutero uma reforma substancial da Igreja e não uma Reforma que levasse à desintegração da unidade da Igreja. O fato de que, na época, essa sua ideia de reforma não pôde se realizar se deve, em boa parte, a fatores políticos. Embora, na origem, o movimento reformador fosse um movimento de renovação dentro da Igreja, o nascimento de uma Igreja protestante, acima de tudo, é o resultado de decisões políticas; dentre tais decisões, houve uma em particular, aquela que determinou a introdução da Reforma especialmente nas cidades, já nos anos 20 do século XVI.
Como a renovação de toda a Igreja era o verdadeiro propósito da reforma de Lutero, a divisão da Igreja, o nascimento de uma Igreja protestante e a separação de comunidades eclesiais protestantes da Igreja Católica devem ser consideradas não como um resultado positivo da Reforma, mas como expressão do seu fracasso provisório ou, ao menos, como um encurvamento de emergência.
De fato, o verdadeiro sucesso da Reforma só se realizará com a superação das divisões dos cristãos que foram herdadas do passado e com a restauração da Igreja una e única, renovada no espírito do Evangelho. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II, que uniu, de maneira inseparável, o compromisso ecumênico em favor da recomposição da unidade dos cristãos e a renovação da Igreja Católica, deu uma contribuição essencial, tanto que poderíamos afirmar, também sob esse aspecto, que, no Concílio Vaticano II, Martinho Lutero teria “encontrado o seu concílio”, o concílio ao qual ele apelaria no tempo em que viveu.
A comemoração de 2017, que recorda os primórdios da Reforma, portanto, deve ser entendida como um convite para retornar à preocupação original de Martinho Lutero e a nos perguntar o que ela significa hoje, para católicos e protestantes, assim como para o ecumenismo em geral, depois de 500 anos de divisão. Se a comemoração da Reforma for realizada nesse espírito, de modo conjunto, poderemos esperar dela novos e corajosos impulsos para o processo de aproximação ecumênica entre católicos e protestantes.
Com isso, já mencionamos os motivos essenciais pelos quais a comemoração da Reforma hoje só pode ocorrer em uma comunhão ecumênica. Portanto, trata-se de uma primeira vez na história e de uma oportunidade que não podemos desperdiçar para intensificar a reaproximação entre luteranos e católicos na fé e na vida da fé.
Nesse sentido, o Papa Bento XVI já havia observado que 2017 representaria, para luteranos e católicos, uma ocasião para “celebrar em todo o mundo uma comemoração ecumênica comum, para se esforçar para fazer avançar, em nível mundial, as questões fundamentais”, e isso não “na forma de uma celebração triunfalista, mas na profissão comum de fé no Deus uno e trino, na obediência comum ao nosso Senhor e à Sua palavra”.
Tal comemoração comum da Reforma permitirá uma promissora virada ecumênica, se for marcada pelos três leitmotif que figuram no centro do documento de diálogo produzido pela Comissão Luterano-Católico-Romana para a Unidade, intitulado “Do conflito à comunhão”.
O primeiro conceito-chave é: gratidão. De fato, em 2017, nos recordamos apenas os 500 anos da Reforma, mas também os 50 anos de intenso diálogo levado adiante entre católicos e luteranos, um diálogo durante o qual pudemos descobrir o quanto temos em comum. O diálogo com a Federação Luterana Mundial – o primeiro realizado pela Igreja Católica logo depois do Concílio Vaticano II – revelou-se muito frutuoso. Um passo importante no caminho para a reconciliação foi realizado com a Declaração Comum sobre a Doutrina da Justificação, assinada no dia 31 de outubro de 1999, em Augsburg. Como justamente a respeito da questão central que estava no coração de Martinho Lutero, a questão que levou à Reforma no século XVI e, depois, à divisão da Igreja, foi possível chegar a um consenso sobre “verdades fundamentais”, essa declaração pode ser considerada como um verdadeiro marco ecumênico.
Depois de uma longa história de separação, fomos capazes de superar, na fé, o velho confessionalismo das divisões e percebemos que a fratura do cristianismo ocidental posterior à Reforma não pôde destruir a raiz comum da fé cristã. Nessa nova luz, também do lado católico, foi possível apreciar a Reforma de Wittenberg com base nas suas intenções e compreender de forma diferente o reformador Martinho Lutero. A imagem polêmica de Lutero que se afirmou na tradição católica, influenciada principalmente por Johannes Cochläus, contemporâneo do reformador, e reforçada no século passado por Heinrich Suso Denifle, foi superada graças à redescoberta do enraizamento de Lutero no pensamento católico, ou seja, do “Lutero católico”, uma descoberta que, contudo, não nega os lados obscuros presentes na vida e na obra de Lutero.
Nesse contexto, também se abriu caminho para uma imagem mais adequada da situação histórica nos tempos da Reforma e da Igreja Católica naquela época. Por um lado, apareceu de forma evidente que a Idade Média não era, de fato, tão escura como ela foi pintada por muito tempo e de bom grado, e que, ao contrário, uma das grandes preocupações no fim da Idade Média era justamente a reforma da Igreja.
Por outro lado, é um resultado igualmente claro que o próprio Lutero estava enraizado no pensamento medieval, muito mais do que foi admitido. Isso é verdade em particular para o seu enraizamento na tradição monástica do fim da Idade Média, tendo ele descoberto em Bernardo de Claraval a teologia da justificação pela graça somente e pela fé somente.
O segundo conceito-chave é: reconhecimento das próprias culpas e arrependimento. É claro, a Reforma deve ser entendida como um processo reformador dentro da Igreja, a ser realizado colocando a Palavra de Deus no centro da existência cristã e da vida da Igreja, e concentrando-se em Jesus Cristo como Palavra viva. Mas, na época, a Reforma não levou à renovação da Igreja. Como a reforma da Igreja não chegou a termo, chegou-se à Reforma no sentido de uma ruptura da unidade da Igreja e, portanto, à sua divisão. Junto com essa divisão, nos séculos XVI e XVII, eclodiram guerras confessionais que viram os cristãos combatendo uns contra os outros em confrontos sangrentos, entre os quais recordamos especialmente a Guerra dos Trinta Anos, que transformou a Europa em um mar vermelho de sangue .
Diante dessa trágica história, na qual o único Corpo de Cristo foi dilacerado, e os cristãos perpetraram violências cruéis uns sobre os outros em nome da religião, católicos e protestantes têm bons motivos para se lamentar e para se arrepender dos mal-entendidos, das prevaricações e das feridas das quais são culpados ao longo dos últimos 500 anos.
Um primeiro passo nessa direção foi tentado pelo Papa Adriano I, que, na mensagem dirigida à Dieta de Nuremberg em 1522, admitiu com pesar os erros e os pecados cometidos pelas autoridades da Igreja Católica, porque pretendia contribuir, com tal reconhecimento de culpa, com a renovação da Igreja e queria evitar a sua divisão. No rastro do Papa Adriano, os pontífices que se seguiram depois do Concílio Vaticano II pediram repetidamente perdão pelo que os católicos cometeram contra os fiéis de outras Igrejas.
Um ato de arrependimento público, portanto, deve fazer parte de uma autêntica comemoração da Reforma. E deve ser acompanhado por aquela purificação da memória histórica à qual o Papa Francisco apelou, dizendo: “Não podemos apagar o que houve, mas não queremos permitir que o peso das culpas passadas continue poluindo as nossas relações. A misericórdia de Deus renovará as nossas relações”. Misericórdia e reconciliação deverão ser, por isso, as nossas diretrizes no caminho ecumênico futuro.
O terceiro conceito-chave é: esperança. Do arrependimento pelos pecados cometidos contra a unidade durante a história e da alegria, repleta de gratidão, pela comunhão que foi possível realizar enquanto isso deriva a confiança no futuro do ecumenismo. A esperança de que uma comemoração comum da Reforma leve à unidade tão desejada certamente não é realista. No entanto, será já um grande resultado se a comemoração permitir dar novos passos rumo a uma comunhão eclesial vinculante. Esta última deve continuar sendo o objetivo de todo esforço ecumênico e, portanto, é também e precisamente a ela que deve visar a comemoração da Reforma. Depois de 500 anos de divisão, depois de ter vivido por um longo período de modo contraposto ou paralelo, devemos aprender a viver uns com os outros vinculados mais solidamente, e devemos fazer isso hoje já.
Isso é importante especialmente em previsão a 2030, ano em que será comemorado o 500º aniversário da Dieta de Augsburg e da promulgação da Confessio augustana. Com esse escrito confessional, os reformadores queriam testemunhar o seu acordo com a fé da Igreja Católica. A Confessio augustana, portanto, é o esforço decisivo para preservar a unidade da Igreja, posta em perigo naquele tempo. Por isso, não deve ser negligenciada a sua importância ecumênica. E, como a Confessio augustana se deve essencialmente aos esforços do grande reformador Filipe Melanchton, tal figura mereceria, durante a comemoração da Reforma e na busca da unidade, uma maior atenção e uma maior valorização.
Mesmo quando Melanchthon se deu conta de que, na Dieta de Augsburg, a sua tentativa fracassaria e que a unidade da Igreja já estava destinada a ruir, ele se lançou até os limites daquilo que era humanamente possível para salvá-la, na convicção de que a renovação da Igreja e a sua unidade estão inseparavelmente ligadas.
Melanchthon, assim, demonstrou ser um grande “ecumenista do seu tempo”, capaz de indicar o caminho também a nós hoje, que celebramos juntos a comemoração da Reforma. Esta só poderá ser uma oportunidade ecumênica se 2017 não marcar o fim, mas sim um novo início no caminho do compromisso ecumênico voltado à obtenção da plena comunhão eclesial entre luteranos e católicos, na tríplice harmonia de gratidão, arrependimento e esperança, que já foi feita ressoar pelo Papa Francisco, junto com o presidente e o secretário-geral da Federação Luterana Mundial, durante a celebração ecumênica do dia 31 de outubro, em Lund, como primeiro prelúdio promissor.
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A comemoração dos 500 anos da Reforma: um aniversário em comunhão. Artigo de Kurt Koch - Instituto Humanitas Unisinos - IHU