09 Outubro 2016
Foi o que disse Francisco em privado ao cardeal Sarah, para em seguida desautorizar tudo com um comunicado. Mas, o prefeito da Liturgia a promete novamente, em um livro seu à venda nas livrarias com o título A força do silêncio.
A reportagem é de Sandro Magister e publicada por Chiesa.it, 06-10-2016. A tradução é de André Langer.
O Papa cultiva uma relação bifronte com o cardeal Robert Sarah: benévola de perto, hostil à distância.
Sarah é um desses homens de Igreja com um suposto “coração de pedra” contra os quais o Papa arremete com frequência sem citar nomes, por exemplo, no discurso que fez no dia 24 de outubro passado, ao final do Sínodo.
Foi Sarah, desta vez com nome e sobrenome, na qualidade de prefeito da Congregação para o Culto Divino, o destinatário de um comunicado sem precedentes e humilhante da Sala de Imprensa da Santa Sé, neste verão [europeu] contra seus propósitos de “reforma da reforma” da liturgia.
“Mas, quem pode tocar nele? Ele é africano e goza de grande popularidade”, murmuram na corte do Papa Francisco.
Com efeito, o cardeal Sarah, de 71 anos de idade, africano (da Guiné), é uma figura de primeira grandeza na Igreja atual, que adquiriu uma extraordinária notoriedade e admiração universal graças a um livro seu publicado no ano passado, que é ao mesmo tempo autobiografia e meditação espiritual, no estilo das Confissões [de Santo Agostinho], livro que tem como título Dieu ou rien, Deus ou nada: 335 mil exemplares vendidos em 13 idiomas.
E agora Sarah volta a campo com um livro novo e volumoso: La force du silence, a força do silêncio. Assim como o anterior, é um livro-entrevista com Nicolas Diat e termina com um comovente diálogo entre o cardeal e o prior da Grande Cartuxa, nos Alpes franceses, dom Dysmas de Lassus.
O livro está à venda desde a última quinta-feira, festa de São Bruno, o fundador do monacato cartuxo, por enquanto apenas em francês, publicado por Ediciones Fayard, mas logo também poderá ser lido em italiano, inglês e espanhol, editado respectivamente por Cantagalli, Ignatius Press e Palabra.
“Contre la dictature du bruit”, contra a ditadura do barulho, diz o subtítulo. Com efeito, o barulho ensurdecedor da sociedade moderna, que entrou também na Igreja, é a trilha sonora desse “nada” que é o esquecimento de Deus, apresentado no livro anterior.
Ao passo que, por outro lado, só o silêncio permite “sentir a música de Deus”.
A meditação de Sarah toca em profundidade a vida da Igreja. São frequentes as referências à liturgia e às formas com frequência desordenadas com as quais se celebra hoje, isto é, a esse “culto divino” do qual o cardeal é o encarregado como prefeito.
Algumas destas passagens – críticas ou propositivas – são reproduzidas na sequência.
Há uma em particular – a última aqui informada – que mostra como o cardeal Sarah não está muito disposto a desistir perante os contínuos obstáculos que se lhe interpõem por todos os lados.
É ali que o cardeal volta a afirmar com firmeza que “será feito” o que o comunicado do verão passado tentou bloquear, isto é, essa “reforma da reforma” no campo litúrgico, sem a qual “não há futuro para a Igreja”.
Pessoalmente, o Papa Francisco tinha recomendado a Sarah que procedesse a esta “reforma da reforma”, na audiência como sempre calorosa que lhe tinha concedido em abril passado, assim como o próprio cardeal o tinha referido na sequência.
Mas, depois, à distância – e dois dias depois de uma segunda audiência amistosa –, exerceu o veto, nesse comunicado traiçoeiro de julho, de fonte anônima, mas de todos os modos aprovado em Santa Marta.
Como homem de fé, Sarah professa obediência ao Papa. Ou, ao menos, ao primeiro dos dois Francisco que encontra pela frente.
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Atualmente, alguns presbíteros tratam a Eucaristia com um desprezo absoluto. Eles veem a missa como um banquete em que se fala, em que os cristãos fiéis ao ensinamento de Jesus, os divorciados recasados, os varões e as mulheres em situação de adultério, os turistas não batizados que participam das celebrações eucarísticas das grandes multidões anônimas podem ter acesso, indistintamente, ao Corpo e ao Sangue de Cristo.
A Igreja deve examinar urgentemente a oportunidade eclesial e pastoral destas grandes celebrações eucarísticas compostas por milhares e milhares de participantes. Existe o grande perigo de transformar a Eucaristia, “o grande mistério da Fé”, em uma vulgar quermesse e de profanar o Corpo e o Sangue precioso de Cristo. Os sacerdotes que distribuem as espécies sagradas não conhecem ninguém e dão o Corpo de Jesus a todos, sem distinguir entre os cristãos e os não cristãos, participam da profanação do Santo Sacrifício eucarístico. Aqueles que exercem a autoridade na Igreja convertem-se em culpados, mediante uma forma de cumplicidade voluntária, ao deixar que se realize o sacrilégio e a profanação do Corpo de Cristo nestas gigantescas e ridículas autocelebrações, nas quais muito poucos percebem que “estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha” (1 Cor 11, 26).
Os sacerdotes infiéis à “memória” de Jesus colocam mais ênfase no aspecto festivo e na dimensão fraternal da missa do que no sacrifício sangrento de Cristo na cruz. A importância das disposições interiores e a necessidade de nos reconciliarmos com Deus aceitando que nos purifiquemos pelo sacramento da confissão não estão na moda hoje em dia. Cada vez mais deixamos de lado a advertência de São Paulo aos coríntios: “Portanto, todas as vezes que vocês comem deste pão e bebem deste sangue, estão anunciando a morte do Senhor, até que ele venha. Por isso, quem comer deste pão e beber do cálice do Senhor indignamente, será réu do Corpo e do Sangue do Senhor. Portanto, cada um examine a si mesmo antes de comer deste pão e beber deste cálice, pois aquele que come e bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação. É por isso que entre vocês há tantos fracos e enfermos, e muitos morreram” (1 Cor 11, 27-30).
Ao começar as nossas celebrações eucarísticas, como é possível eliminar Cristo que carrega sua cruz e caminha dolorosamente sob o peso dos nossos pecados para o lugar do sacrifício? Há muitos sacerdotes que entram triunfalmente e sobem ao altar, saúdem ambos os lados para parecerem simpáticos. Observem o triste espetáculo de algumas celebrações eucarísticas... Por que tanta rapidez e mundanismo no momento do Santo Sacrifício? Por que tanta profanação e superficialidade perante a extraordinária graça sacerdotal que nos faz capazes de tornar presente em substância o Corpo e o Sangue de Cristo através da invocação do Espírito? Por que alguns se creem obrigados a improvisar ou inventar orações eucarísticas que fazem desaparecer as frases divinas em um banho de escasso fervor humano? As palavras de Cristo são insuficientes para multiplicar as palavras puramente humanas? Em um sacrifício tão único e essencial são necessárias essas fantasias e essas criatividades subjetivas? “Quando vocês rezarem, não usem muitas palavras, como fazem os pagãos. Eles pensam que serão ouvidos por causa do seu palavreado”, nos adverte Jesus (Mt 6, 7).
Perdemos o sentido mais profundo do ofertório. Mas este é o momento em que, como seu nome indica, o povo cristão se oferece em sua totalidade, não ao lado de Cristo, mas nele, para seu sacrifício que se realizará na consagração. O Concílio Vaticano II ressaltou admiravelmente este aspecto, ao enfatizar o sacerdócio batismal dos leigos, sacerdócio que consiste essencialmente em nos oferecer ao Pai com Cristo no sacrifício. [...]
Se o ofertório não é visto mais que como uma preparação dos dons, como um gesto prático e prosaico, então será grande a tentação de acrescentar e de inventar ritos para preencher o que aqui é percebido como um vazio. Em alguns países da África deploro as procissões das oferendas, longas e barulhentas, acompanhadas de danças intermináveis. Os fiéis trazem todo tipo de produtos e objetos que não tem nada a ver com o sacrifício eucarístico. Estas procissões dão a impressão de serem exibições folclóricas que desnaturalizam o sacrifício sangrento de Cristo na cruz e nos afastam do mistério eucarístico. Este deve ser celebrado com sobriedade e recolhimento, pois estamos imersos, também nós, em sua morte e em sua oferenda ao Pai. Os bispos do meu continente deveriam tomar medidas para que a celebração da missa não se transformasse em uma auto-celebração cultural. A morte de Deus por amor a nós está além de toda cultura.
Não basta simplesmente prescrever mais silêncio. Para que cada pessoa compreenda que a liturgia nos volta interiormente para o Senhor, seria de proveito que durante as celebrações, todos juntos – sacerdotes e fiéis –, estejamos corporalmente voltados para o Oriente, simbolizado pela abside.
Esta maneira de agir é absolutamente legítima. É conforme a letra e o espírito do Concílio. Os testemunhos dos primeiros séculos da Igreja são abundantes. “Quando estamos de pé para rezar, voltemo-nos para o Oriente”, afirma Santo Agostinho, ecoando uma tradição que remonta, segundo São Basílio, aos próprios Apóstolos. As Igrejas eram projetadas para a oração das primeiras comunidades cristãs, as constituições apostólicas defendiam, no século IV, que elas estivessem voltadas para o oriente. E quando o altar está para o ocidente, como na Basílica de São Pedro em Roma, o oficiante deve voltar-se para o lado do sol nascente e ficar de frente para o povo.
Esta orientação corporal da oração não é mais que o sinal de uma orientação interior. [...] O sacerdote não convida o povo de Deus a acompanhá-lo no começo da grande oração eucarística, dizendo: “Elevemos os nossos corações ao alto”, ao que o povo responde: “Ao Senhor os elevamos”?
Como prefeito da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, eu tenho que recordar novamente que a celebração “versus orientem” está autorizada pelas rubricas do Missal, pois ela provém da tradição apostólica. Não é necessário uma autorização particular para celebrar deste modo, povo e sacerdote, voltados para o Senhor. Se, materialmente, não é possível celebrar “ad orientem”, deve-se necessariamente colocar uma cruz sobre o altar, bem à vista de todos, como ponto de referência para todos. O Cristo na cruz é o Oriente cristão.
Eu recuso que ocupemos o nosso tempo opondo uma liturgia a outra, ou o rito de São Pio V ao do bem-aventurado Paulo VI. Trata-se de entrar no grande silêncio da liturgia; é necessário saber deixar-se enriquecer por todas as formas litúrgicas latinas ou orientais que privilegiam o silêncio. Sem este espírito contemplativo, a liturgia se converterá em ocasião de angústias odiosas e de enfrentamentos ideológicos em vez de ser o lugar da nossa unidade e da nossa comunhão no Senhor. Este é o momento de entrar neste silêncio litúrgico, voltados para o Senhor, que o Concílio quis restaurar.
O que vou dizer agora, não entra em contradição com minha submissão e minha obediência à autoridade suprema da Igreja. Desejo servir profunda e humildemente a Deus, à Igreja e ao Santo Padre, com devoção, sinceridade e apego filial. Mas, aqui está a minha esperança: se Deus quiser, quando quiser e como quiser, na liturgia, a reforma da reforma será feita. Mas, apesar do ranger de dentes, a reforma será feita, pois nela se joga o futuro da Igreja.
Prejudicar a liturgia é prejudicar a nossa relação com Deus e a expressão concreta da nossa fé cristã. A Palavra de Deus e o ensinamento doutrinal da Igreja são ainda compreendidos, mas as almas que desejam voltar-se para Deus, oferecer-lhe o verdadeiro sacrifício de louvor e adorá-lo, já não são cativadas por liturgias muito horizontais, antropocêntricas e festivas, assemelhadas muitas vezes a acontecimentos culturais barulhentos e vulgares. Os meios de comunicação invadiram totalmente e transformaram em espetáculo o Santo Sacrifício da missa, memorial da morte de Jesus na cruz para a salvação das nossas almas. O sentido do mistério desaparece pelas mudanças, pelas adaptações permanentes, decididas de forma autônoma e individual para seduzir nossas mentalidades modernas profanas, marcadas pelo pecado, pelo secularismo, pelo relativismo e pela rejeição de Deus.
Em muitos países do Ocidente, vemos que os pobres abandonam a Igreja católica, pois esta foi tomada de assalto por pessoas mal intencionadas que se fazem passar por intelectuais e que desprezam os pequenos e os pobres. Eis o que o Santo Padre deve denunciar em alto e bom som, pois uma Igreja sem os pobres não é mais a Igreja, mas um simples “clube”. Atualmente, no Ocidente, há uma grande quantidade de templos vazios, fechados, destruídos ou transformados em estruturas profanas, violando sua sacralidade e seu destino original. Apesar disso, conheço muitos sacerdotes e fiéis que vivem sua fé com um zelo extraordinário e lutam diariamente para preservar e enriquecer as casas de Deus.
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A reforma da reforma “será feita”. O Papa também a quer - Instituto Humanitas Unisinos - IHU