29 Agosto 2016
“O Minotauro Global”, expõe, com didatismo e profundidade, reviravoltas da Economia global no pós-guerra. Na fase atual, mundo serve aos EUA e à aristocracia financeira — mas ainda falta quem cumpra o papel de Teseu.
O artigo é de Edemilson Paraná, pesquisador-bolsista do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mestre e doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), autor do livro “A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional” (Ed. Insular, 2016), em artigo publicado por Outras Palavras, 25-08-2016.
Eis o artigo.
Certa vez, o economista e ex-ministro das finanças grego Yanis Varoufakis definiu a si mesmo como um “marxista errático”. Ainda que uma regra básica do bom senso nos aconselhe a não aceitar sem exame crítico aquilo que alguém diz sobre si mesmo, poucos qualificativos poderiam resumir melhor o conteúdo de seu livro que acaba de ser publicado no Brasil. Do começo ao fim, O Minotauro Global é, de fato, em todas as suas muitas riquezas e poucas lacunas, a obra de um perspicaz e criativo “marxista errático”.
Em sua abertura, franqueza e desapego a dogmas, a boa heterodoxia econômica de Varoufakis mostra-se fecunda tanto na demonstração das graves deficiências das teorias neoclássicas dominantes (aqui chamadas “teorias tóxicas”, em estreita relação com o seu papel no surgimento dos “ativos tóxicos”) – que soberbamente ousaram postular que uma crise global como a de 2008 não poderia acontecer –, quanto na construção de uma sólida narrativa alternativa sobre as origens e causas do atoleiro em que se encontra a economia mundial pós-crise.
Desse modo, buscando explicações sistêmicas, e equacionando sofisticada leitura macroeconômica às dinâmicas geopolíticas, o autor consegue traçar o caminho que nos trouxe até a crise sem escorar sua análise, como se tornou corrente, em algum anedotário moralizante sobre ganância e rentismo, sobre a ação de bons e maus capitalistas, ou em qualquer outro discurso ad hoc sobre a reprovação per se da ação do Estado nas economias.
Talvez mais do que a especialistas e estudiosos, a obra se dirige a leigos interessados no que acontece a sua volta. Outro mérito: sua análise econômica não se furta a entrar no debate público. Sem com isso perder em profundidade, o texto é desenvolvido em linguagem fluída, didática e bem-humorada, recorrendo a potentes imagens da cultura pop e da mitologia grega para dissecar e apresentar, em inúmeros e elucidativos exemplos, cada um dos argumentos que mobiliza.
E é justamente uma destas alegorias que dá título à obra: o Minotauro de Creta. Metade homem, metade animal, o ser é produto da relação entre a mulher de Minos, rei de Creta, e um touro (um castigo dos deuses a Minos por este não ter atendido ordens divinas). De modo a conter a voracidade da besta, um labirinto foi construído como sua morada e, no interior deste, sua inusitada dieta se dava à base de seres humanos jovens. Para satisfazer sem maiores problemas o monstro, o rei Minos força os atenienses, após vencê-los em uma guerra, a todos os anos enviar sete rapazes e sete moças para serem devorados pelo Minotauro.
Conforme nos lembra Varoufakis, historiadores tendem a relacionar o mito à real hegemonia política e econômica de Creta na região do Mar Egeu – a quem cidades-estados menos poderosas tinham de pagar tributos regulares em troca de proteção e manutenção da paz. A imagem é mobilizada como analogia ao papel político-econômico dos Estados Unidos da América (EUA) no mundo pós-revogação do regime de Bretton Woods, a partir do início da década de 1970 – veremos por quê. O livro está encadeado, assim, pela descrição dos antecedentes que dão surgimento à besta ianque, passando pelo seu período áureo, até chegar a 2008, quando esta é praticamente ferida de morte. Percorrendo este traçado, apresenta uma didática e concisa história do capitalismo mundial, especialmente a partir do pós-guerra, até o momento presente.
A obra começa com uma breve e bastante pragmática discussão sobre os antecedentes de formação do capitalismo mundial, bem como o desenho de seus mecanismos gerais de funcionamento, explicados – raramente recorrendo a citações diretas – a partir das formulações de Karl Marx, John Maynard Keynes e Joseph Schumpeter. Em alguns momentos, e mesmo que não sejam citados diretamente, argumentos presentes em Karl Polanyi, Suzzane de Brunhoff e Hyman Minsky aparecem – articulação, aliás, que se mostra bastante produtiva.
Assentado em tais bases, a história que Varoufakis desenha é composta por três eras. Primeiro, da revolução industrial até 1945 – período que inclui a Crise (com ‘C’ maiúsculo) financeira mundial de 1929 e as duas grandes guerras. Em seguida, o boom do pós-guerra, ou os “anos gloriosos” do capitalismo mundial, período que vai de 1945 até 1971. A esse período ele dá o nome de “Plano Global”, quando os EUA se tornam a maior economia superavitária a ocupar o centro da ordem econômica internacional. Finalmente, aparece o “Minotauro Global”, a era das altas finanças, de 1971 a 2008, quando os EUA se tornam uma grande economia deficitária, mantendo, de forma renovada, sua mesma posição central.
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A tese fundamental e fio condutor teórico-conceitual da análise de Varoufakis ao longo deste percurso é a de que o capitalismo não pode funcionar de maneira minimamente estável sem dispor de um Mecanismo Geral de Reciclagem de Excedentes (MGRE). Partindo da ideia de que as economias tendem a observar diferenciais de produtividade inerentes às diferenças setoriais e regionais, o autor sustenta que, diante deste fato, e a bem de uma composição comercial mais ou menos equilibrada, faz-se necessário a construção de mecanismos que permitam investir lucrativamente os excedentes acumulados nas regiões e setores superavitários em suas contrapartes tendencialmente deficitárias (“das áreas urbanas para as rurais, das mais desenvolvidas para as menos desenvolvidas”, etc.).
No interior de uma economia nacional, por exemplo, isso é feito por meio de unidade fiscal, que possibilita a realização de transferências da União (em bens, serviços, infraestrutura, isenções, incentivos, etc.) em prol dos Estados e regiões menos vigorosas economicamente – algo que também pode ser feito por meio de sistemas federalizados de seguridade e saúde, por exemplo.
Entre as economias nacionais, distintamente, as diferentes taxas de câmbio, a depender das condições, podem igualmente constituir um mecanismo natural de reciclagem: uma vez que o acumulo de déficits tende a levar à desvalorização cambial, esta pode acabar redundando em estímulo às exportações e desestimulo às importações, além de contribuir para atrair outros capitais excedentes graças às taxas de juros mais elevadas, bem como ao preço relativo mais baixo de seus ativos. Assim, tanto o “Plano Global” quanto o “Minotauro” são, em verdade, como veremos, arranjos sustentados em formas distintas de MGRE (o primeiro tendo nos EUA um imenso polo superavitário, o segundo, seu inverso, tendo neste um polo deficitário).
Tendo vivido e aprendido com a catástrofe econômica de 1929, que só seria plenamente resolvida, de acordo com o autor, graças à enorme destruição produzida pela Segunda Guerra Mundial, os idealizadores estadunidenses do “Plano Global” aproveitaram a enorme oportunidade com a qual se depararam ao fim do conflito para desenhar uma nova ordem. O novo arranjo deveria, ao mesmo tempo em que funcionasse de modo a impedir grandes desequilíbrios que pudessem levar a eclosão de uma nova crise global, servir para cristalizar sua nova posição hegemônica no interior do “mundo livre”.
Assim, com base em muitas das prescrições keynesianas, a Conferência de Bretton Woods deu nascimento a um sistema de governança econômica global que levou à criação do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), e a constituição de um sistema de administração cambial que fixava a percentuais determinados a flutuação das taxas de câmbio dos demais países em relação ao dólar, e deste ao ouro – com a consequente conversibilidade direta do dólar em ouro.
Algumas das mais importantes (e ousadas) propostas de Keynes, no entanto, ficariam de fora do novo arranjo, graças a não aceitação do novo hegemon: a criação de uma União Internacional de Divisas, um Banco Central Internacional e uma moeda única a ser utilizada em transações comerciais entre nações (o bancor), que objetivavam a constituição de uma governança econômica multilateral equilibrada, durável, e politicamente compartilhada. A razão da recusa não era nada ocasional: os EUA queriam gerir eles mesmos, e através de sua própria moeda, a nova ordem econômica mundial.
O sofisticado “Plano Global”, acreditavam seus idealizadores, parecia ter tudo para dar certo. Assim, os EUA, a maior economia superavitária do planeta, passaram, a bem da garantia de sustentabilidade do novo arranjo, a investir seus enormes excedentes na reconstrução dos países arrasados pela guerra. Esse investimento permitia ainda sustentar a demanda por seus produtos e a lucratividade dos capitais invertidos. De modo a constituir zonas regionais para o amortecimento de eventuais choques econômicos globais, os arrasados e humilhados Alemanha e Japão foram escolhidos como “pupilos” – os novos hubs, destinos preferenciais do mais generoso suporte político e econômico americano. Enquanto eram incentivados a fortalecer suas zonas econômicas e moedas regionais, estes dois países sustentavam a penetração e fortalecimento acelerado do dólar como dinheiro mundial. Um MGRE, sustentado no “privilégio exorbitante” do dólar, estava garantido e, com ele, a “idade de ouro” do capitalismo regulado nos países do capitalismo central.
Contudo, tal ordem de coisas só poderia permanecer inabalável sob uma condição: a de que os EUA seguissem indefinidamente como uma economia superavitária. Mas seus idealizadores não ousaram considerar a sério a hipótese de tal prospecto não ser sustentável no médio prazo. Foi exatamente isso que ficou patente, no entanto, a partir do início da década de 1970: os déficits americanos crescentes passaram a atentar contra o próprio arranjo que o país havia ajudado a conceber em seu favor.
Os déficits estadunidenses apareceram, explica Varoufakis, na esteira da rápida recuperação e dos ganhos de competitividade e produtividade dos outrora “pupilos” do pós-guerra (Alemanha e Japão), com a consequente queda de competitividade relativa dos EUA (junto da abertura de seu mercado para a entrada de produtos de tais competidores, especialmente do Japão), somado, ademais, aos crescentes gastos do governo, especialmente com guerras, como a do Vietnã. A expansão monetária vinculada ao aumento de gastos do governo americano redundou na desvalorização de sua moeda. Desse modo, vinculada à exportação de dólares para outros países e à consequente valorização das moedas nacionais destes, emergiram questionamentos sobre a real garantia de convertibilidade ouro-dólar então vigente. O “Plano Global” estava com os dias contados.
Diante de novos e sonoros questionamentos a sua posição “privilegiada”, os Estados Unidos responderam com ações enérgicas e medidas drásticas (que Paul Volcker, presidente do Federal Reserve durante os governos Jimmy Carter e Ronald Reagan, mais tarde denominou “uma desintegração planejada da economia mundial”): o rompimento unilateral do acordo de Bretton Woods, com a quebra da conversibilidade ouro/dólar, e consequente desvalorização da moeda americana. A depreciação do dólar representou um duro golpe nas exportações japonesas e europeias. Mas dado que todos estavam a esta altura já presos ao dólar como moeda de reserva global, pouco restava a fazer. A posição privilegiada que os americanos haviam construído estava garantida, e agora em bases renovadas. “A moeda é nossa. O problema é de vocês”. Começava, sob o tacão deste choque, a nova era do “Minotauro Global”.
Com seu nascimento, os EUA mostraram ao mundo que, contanto que fossem capazes de controlar a moeda mundial, que lhes permitiria continuar reciclando o excedente econômico global, ao mesmo tempo em que se mantivesse como a maior e mais importante força no comércio internacional, pouco importava ser uma economia superavitária ou deficitária. O que o mundo viu acontecer na era pós-1971 foi, então, uma reversão do fluxo comercial e dos excedentes de capital entre os Estados Unidos e os demais países. Pela primeira vez na história mundial, o poder hegemônico se fortalecia aumentando deliberadamente seus déficits.
Donos da moeda fiduciária mundial, os EUA tornam-se, sob um sistema monetário e financeiro internacional hegemonizado pelo dólar flexível, o grande polo de um novo MGRE às avessas: funcionando como uma espécie de “consumidor de primeira instância”, o enorme corpo gravitacional dos déficits gêmeos (comercial e orçamentário) americanos serviram como força de atração para o investimento dos excedentes acumulados em outras regiões do globo. Resumidamente: enquanto os seus persistentes saldos comerciais negativos suscitavam o avanço da produção em outros países e regiões, os déficits orçamentários serviam para transformar os excedentes comerciais destas em títulos da dívida americana. À medida que o mundo acumulava tais títulos, o capital mundial fluía inadvertidamente para o mercado financeiro estadunidense. Para se ter uma ideia da dimensão deste movimento, no início dos anos 2000, pouco antes da crise, mais de 70% das saídas globais de capitais tinham os EUA como destino final.
Tal qual um mostro cretense redivivo, a voracidade do Tio Sam era alimentada por oferendas estrangeiras. Com uma importante diferença: os “carismas do Minotauro” (seu poder geopolítico e a manutenção do dólar como moeda de reserva mundial), garantiam, distintamente ao mito, que os pagamentos ao “Minotauro Global” fossem “voluntários”. Para que o movimento global de capitais se configurasse e se comportasse exatamente sob esse padrão, duas tarefas foram necessárias: de um lado uma recuperação da competitividade das empresas americanas face, especialmente, às alemãs e japonesas, de outro a elevação da taxa de juros paga aos títulos de sua dívida soberana.
Como isso foi alcançado é história amplamente conhecida. À enorme redução dos custos do trabalho nos EUA somou-se a crise do petróleo (estimulado pelo próprio governo americano, segundo Varoufakis), que afetou de modo especial aos dependentes Japão e Alemanha, que não dispunham de produção própria significativa. Na outra ponta, as taxas de juros foram paulatinamente elevadas ao longo da década, até alcançarem níveis recordes em 1979 – uma verdadeira catástrofe para países endividados em dólar, como os latino-americanos e europeus do leste. A metamorfose havia sido concluída.
Mas ao conseguir emplacar mais este feito notável, o sucesso trágico de Washington, ao mesmo tempo em que reforçou seu domínio, implantou as sementes de sua própria desgraça: uma expansão financeira sem precedentes. Sob a direção dos “serviçais do Minotauro” (as teorias tóxicas, Wall Street, o sistema Walmart e as políticas da trickle-down economics), as décadas de financeirização acelerada sob esse equilíbrio desequilibrado redundaram, por fim, na hecatombe de 2008.
Enquanto absorvia uma imensidão de capitais vindos de todas as partes, Wall Street, livre de regulamentações, barreiras e constrangimentos políticos de outrora, se encarregava de ativar uma verdadeira farra desvairada de criação de dinheiro privado por meio de ativos tóxicos (dentre os quais estão as famigeradas classes de derivativos bizarros que o mundo veio a conhecer). Fusões e aquisições alavancadas por bolhas financeiras e a produção e circulação de capital fictício em quantidade inimaginável encontram-se, especialmente ao longo das últimas duas décadas, com a concessão de hipotecas e enorme expansão de crédito pessoal para aqueles mesmos trabalhadores que não percebiam aumento real em seus salários desde 1973. Ativado pela espantosa criação de dinheiro privado, o consumo sustentado parecia indicar que tudo estava indo muito bem obrigado.
Até as vésperas da crise, Wall Street, e todos as suas gambiarras outrora eufemisticamente conhecidas como “inovações financeiras”, atraiu capital mundial suficiente para reciclar a contento os excedentes obtidos pelos demais países e, inclusive, sustentar certa reconversão destes em mais investimentos produtivos, e novas vendas para os EUA – o que ensejava novos superávits daqueles países e, assim, a continuidade, em dimensão ampliada, da mesma roda-viva. Enquanto isso, os desiquilíbrios no comercio internacional seguiam se ampliando. Quando a música parou, o número de cadeiras era pequeno demais para a quantidade de pessoas que circulavam em seu redor. O dinheiro privado evaporou, e o sistema bancário quebrou. O resto é história (que nosso autor descreve, aliás, em minucias).
Desde então agonizante, gravemente ferido, o Minotauro, conforme aponta Varoufakis, não é mais capaz dos feitos de outrora: sua demanda por bens e serviços já não é mais a mesma, e tampouco Wall Street tem sido capaz, mesmo diante da astúcia em manter-se no comando, de gerar a enorme quantidade de dinheiro privado que outrora sustentou a escalada de consumo e investimento. Em consequência, com Europa, Japão e China em marcha lenta, os exportadores de commodities e produtos primários são juntos arrastados para o rosário de agonias do mundo pós-2008, um mundo de desesperança e acelerada desagregação política e social.
E assim nosso autor encerra sua teratologia da economia mundial. Seja desestabilizado pela expansão do dinheiro estatal-público, seja pelo avanço desgovernado do dinheiro privado-bancário, conclui o economista grego, MGREs dessa forma geridos – sem dispor de mecanismos de coordenação global multilateral análogos ao sugeridos por Keynes em Bretton Woods – tendem a sustentar, como em um equilíbrio desequilibrado, fôlego curto.
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Varoufakis e o mundo parasitado pelos EUA - Instituto Humanitas Unisinos - IHU