Por: Cesar Sanson | 03 Junho 2016
Com o propósito inicial de debater a Base Nacional Curricular Comum, seminário na Câmara dos Deputados se transforma em campo de batalha entre os entusiastas do projeto que quer varrer uma suposta "doutrinação de esquerda" das escolas e enquadrar professores por "crime de assédio ideológico" e estudantes e docentes mobilizados contra o Escola sem Partido.
A reportagem é de Maíra Mathias e publicada por EPSJV/Fiocruz, 02-06-2016.
O novo alvo do Escola sem Partido parece ser a Base Nacional Curricular Comum (BNCC). Recém-consolidada pelo Ministério da Educação (MEC), a segunda versão do documento foi debatida na última terça-feira (31/07) na Câmara dos Deputados. O seminário promovido no âmbito da Comissão de Educação e Cultura contou com quatro mesas – uma delas composta exclusivamente por entusiastas do movimento de direita calcado no combate a uma suposta "hegemonia ideológica da esquerda" nas salas de aula país afora. Na semana seguinte a uma criticada reunião com o ministro interino da Educação, Mendonça Filho, o movimento pró-impeachment Revoltados online esteve presente no evento, assim como o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), principal alvo da saraivada de vaias e protestos dos estudantes secundaristas, universitários, professores e sindicalistas que marcaram posição contra o arranque da agenda do Escola sem Partido na educação brasileira.
A tentativa é transferir dos fóruns da educação para o Congresso Nacional a atribuição de elaborar, discutir e aprovar o documento, sob a justificativa de que o legislativo terá condições de assegurar a “pluralidade” de ideologias e “ouvir melhor a sociedade brasileira”. Feita diversas vezes ao longo do evento, a proposta anima parlamentares como o deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), um dos organizadores do seminário. É de sua autoria do Projeto de Lei (PL) 1411/15, texto que tenta ir além da punição administrativa de professores com base no argumento da "doutrinação ideológica" – proposta do Escola sem Partido – e quer criar uma nova categoria de crime, o "assédio ideológico", enviando docentes para a prisão.
“Considero que há viés político-ideológico pesado [na Base], e há inclusive invasão de competências. Temos que tratar de currículo, não de direitos. Porque os direitos estão contidos na Constituição. O documento propõe novos direitos. Max Weber fala sobre neutralidade da cátedra e eu tenho muito medo da doutrinação. Não podemos ser ingênuos. Há um pensamento hegemônico da esquerda nas universidades e foram essas pessoas que majoritariamente construíram esse documento. Não adianta propor um documento de especialistas que não converse com a sociedade brasileira. E aí esta Casa tem a sua responsabilidade”, afirmou Marinho, que defende a paralisação do processo de elaboração do documento.
A proposta não agradou os representantes do Ministério da Educação (MEC) – responsável pela coordenação dos trabalhos das duas primeiras versões da Base –, do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) – que juntos vão promover os debates para elaboração da terceira versão, que seguirá para o Conselho Nacional de Educação (CNE) para aprovação final.
“Temos formações políticas e partidárias absolutamente diversas nas entidades, mas que temos que dialogar. Não entendo porque a Base deva ser tratada como Projeto de Lei no Congresso Nacional. Vamos deixar o debate nos fóruns adequados”, defendeu o presidente do Consed, Eduardo Deschamps. “Discordo de Rogério Marinho de que a segunda versão esteja alinhada a uma visão política e ideológica porque é resultado de um processo plural de debate. Foram muito intensas as discussões, os embates, as posições distintas, mas todos nós tínhamos um entendimento comum: garantir direito à educação para alem de nossas convicções ideológicas”, disse Iolanda Barbosa, membro da diretoria da Undime.
As entidades representativas dos empresários, que integram o Movimento Pela Base Nacional Comum, também se posicionaram contra a interferência da Câmara dos Deputados no processo de definição dos currículos no país. Convidados como palestrantes no seminário, Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco, e Denis Mizne, da Fundação Lemann, defenderam que a discussão deve seguir o rumo previsto com a máxima celeridade. “A Base é uma demanda da sociedade brasileira, mas também é fruto de uma lei que partiu desta Casa e delegou ao MEC o processo que vem sendo feito”, disse Mizne, completando mais tarde: “Estamos à beira de conseguir uma versão consistente. A participação do Congresso é para monitorar e não rediscutir”.
A previsão do Consed e da Undime é que seminários regionais sejam promovidos ao longo de julho, ultrapassando o prazo dado pelo MEC, que era 24 de junho. Segundo o presidente do Consed, em vários estados já está no ar uma chamada pública para que professores e estudantes possam se inscrever e participar. A expectativa dos representantes dos empresários é que o CNE esteja com a nova versão até o fim do ano, e que após nova consulta – que deve ocorrer ao longo de 2017 – a Base seja instituída em 2018. “O Brasil levou séculos para tomar a decisão de construir sua Base Curricular, apesar de estar prevista na Constituição Federal [de 1988], na LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação]. Só o PNE [Plano Nacional de Educação 2014-2024] deu prazo. Temos que ter um senso de urgência; a demanda da Base é feita pela ‘base’: 93% dos professores pedem, 87% dos gestores pedem. Não vamos perder essa janela de oportunidade”, defendeu Mizne.
Escola sem Partido em campo
Integrando a mesa que debateu ‘Ciências humanas na BNCC’ – composta somente por entusiastas do Escola sem Partido –, o professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), Bráulio Porto, pediu que o Congresso “não deixe que o CNE e os técnicos do MEC” definam a Base Comum. Membro do Instituto Alfa e Beto que vem atuando contra as versões do documento, Porto se declarou “em sintonia com os objetivos do Escola sem Partido” e afirmou que enxerga “presença de viés ideológico de esquerda na Base” dando como exemplo a geografia na BNCC. Segundo ele, ao afirmar que nesse componente curricular a compreensão do mundo passa pela “compreensão do capitalismo como ordem socioeconômica globalitária, que afeta a configuração dos territórios, produz a intensificação do consumo e a consequente pressão sobre os ambientes, bem como, por meio destes processos combinados, promove desigualdades sociais” (página 160 da segunda versão do documento), a Base assume um “viés anticapitalista”.
“Se a tese de que o capitalismo aumenta a desigualdade social fosse tão categoricamente verdadeira como faz parecer a Base porque São Paulo, o mais capitalista dos estados, apresenta a segunda maior renda per capita da federação e um dos menores índices de desigualdade de renda? Ao passo que o Distrito Federal, que pouco tem de capitalista, apresenta a maior renda per capita e o maior índice de desigualdade de renda do país ao lado de estados mais pobres da federação?”, questionou, citando dados de um livro de economia ainda no prelo. Vários professores presentes se manifestaram dizendo que o palestrante se “esquecia” que o Brasil era um dos países com pior distribuição de renda do mundo, que o capitalismo tinha múltiplas expressões e deveria ser analisado como um fenômeno global.
Professor de Goiânia, Orley Silva – que ao fim da sua apresentação mandou um abraço para o neto, provocando a recordação na plateia da votação da aceitação do pedido de impeachment de Dilma Rousseff na Casa – também pediu que o Congresso “chame para si a responsabilidade de aprovar [a Base], mesmo que para isso seja necessário alterar a legislação educacional”. Para ele, a discussão precisa ser prorrogada para que a BNCC “seja rediscutida por completo” porque não contempla as “diferentes correntes do pensamento em educação” e é “possível inferir a hegemonia da epistemologia marxista e do método crítico-cultural não somente na parte das ciências humanas, mas até mesmo nas chamadas ciências duras, até na matemática, em química, em física, em biologia”, disse ele. “Quais as intenções políticas e as consequências para o nosso futuro democrático como resultado dessa escolha?”, perguntou.
Comparando o mandato de um presidente democraticamente eleito como um “jogo”, o deputado Jair Bolsonaro demonstrou seu apoio às concepções do Escola sem Partido defendidas na mesa. “Nós sabemos onde a esquerda quer levar esse país. Não tomem quartéis: tomem escolas. Em boa hora aconteceu aí o cartão amarelo não da Dilma Rousseff, mas do PT. Se esse jogo prorrogasse mais algum tempo acho que não teria como reverter mais”, afirmou em meio a um barulhento protesto dos estudantes e professores presentes na sala, que o chamaram de “fascista”. O deputado aproveitou a atenção para divulgar o Projeto de Lei apresentado na semana passada por seu filho, Eduardo Bolsonaro (PSC-SP) que visa criminalizar o comunismo no país. “O nazismo é proibido aqui, a suástica aqui se fazer presente no Brasil [também é proibido]. Tem que se fazer presente também a proibição da foice e martelo”, comparou, em referência aos símbolos que representam a classe trabalhadora nas bandeiras dos partidos comunistas.
Já Marcello Reis, fundador do Revoltados online, que na semana passada, junto com o ator Alexandre Frota, foi recebido pelo ministro interino da Educação, Mendonça Filho, para apresentar ‘propostas’ para a área, esteve presente na mesa que debateu o ‘Ensino Fundamental na BNCC’. Ao longo das exposições dos palestrantes, Reis, que se apresenta como “apoiador do Escola sem Partido” e “totalmente contra a doutrinação”, ficou andando de um lado para o outro com um celular na mão, aparentemente gravando vídeos enquanto as pessoas falavam. Provocado pela afirmação de que a Campanha Nacional Pelo Direito à Educação congrega mais de duas centenas de entidades, ele afirmou que representa “milhões de pais e mães” e se dirigindo a Daniel Cara, coordenador da Campanha, afirmou que levantará “nos manifestos públicos pró-impeachment a bandeira: ‘Não mexam com as nossas crianças. Meus filhos, minhas regras’”.
“Escola sem partido é escola sem educação”
A Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) publicou uma carta pública e enviou um ofício à Comissão de Educação e Cultura da Câmara criticando o espaço concedido no evento aos entusiastas do Escola sem Partido. “A comunidade acadêmica foi surpreendida com a presença de partidários do Projeto Escola Sem Partido que buscam influenciar o legislativo para que sejam formulados projetos de lei de cerceamento da liberdade de ensinar e de livre expressão, sob o pretexto de combater pretensa doutrinação ideológica que estaria ocorrendo nas escolas brasileiras. A ausência de associações científicas da área da educação também foi percebida”, diz a carta, assinada pela presidente da entidade, Andréa Gouveia.
Proponente do seminário, a deputada federal 'Professora' Dorinha (DEM-TO) tentou descolar por diversas vezes a atividade do movimento Escola sem Partido. Contudo, ela concordou que a mesa que debateu as Ciências Humanas na BNCC “teve vertente” e garantiu que o propósito do seminário não era debater o Escola sem Partido, mas se justificou dizendo que cerca de 50 palestrantes das mais diversas entidades foram convidados, 31 aceitaram participar, mas apenas 17 compareceram. “Quiçá tenhamos que fazer condução coercitiva da próxima vez”, ironizou.
“A Campanha foi pressionada a questionar a realização do seminário. Muitas entidades não consideraram a composição ampla. Mas nunca deixaríamos de vir e apresentar nossa posição”, disse Daniel Cara, completando: “A obrigação de todo mundo que trabalha com educação é procurar o conceito mais fundamental que explique a forma como a sociedade se constrói. Educação é apropriação de cultura, no sentido de que cultura é tudo aquilo que o homem produz: ciência, artes, linguagem; tudo. A educação deve se esmerar em fazer com que os alunos tenham capacidade de se apropriar dessa cultura. (...) Um projeto que fala de Escola sem Partido exclui um elemento fundamental da vida pública. Em termos claros: Escola sem Partido é a escola sem educação, o que é paradoxal. Não dá para eliminar no processo de ensino-aprendizagem todas as possibilidades de construção do pensamento humano. Não tenho dúvida que podemos garantir educação de melhor qualidade, mas restringir o debate não é o caminho”.
“Aqui no DF o Escola sem Partido é conhecida como a ‘lei da mordaça’. É um projeto que lança mão de um discurso ultraconservador para colocar uma cortina de fumaça nos problemas reais da educação. Com esse discurso da doutrinação, o que o projeto quer é jogar toda a culpa da péssima qualidade da educação no país exclusivamente sobre os professores que lutamos, ao contrário, por uma escola inclusiva, democrática”, disse Luciana Custódio, diretora do Sindicato dos Professores do Distrito Federal (Sinpro-DF), entidade que se organizou para protestar durante o seminário. Ela questionou o fato de nenhuma representação dos trabalhadores da educação ter sido convidada para compor nenhuma mesa do evento.
“O que a Casa procura fazer é mais uma vez passar a mensagem de que estudantes, professores e todos aqueles que lutam podem ser criminalizados, quem diz que a educação não pode ser ideologizada, mas quer impor uma ideologia de restrição de direitos”, criticou o deputado federal Glauber Braga (PSOL-RJ), que apontou ainda a seletividade na definição de “ideologia” presente nos parlamentares que defendem o Escola sem Partido. “Como se as falas que nós ouvimos cotidianamente nessa Comissão e por parte dos senhores ideológicas não fossem. É uma representação clara da parte de muitos da determinação de uma ideologia: da ideologia de mercado, da ideologia da opressão, de uma ideologia que quer garantir que você não tenha uma educação que seja emancipadora, que seja libertadora”, acrescentou
Para Paulo César Ribeiro, diretor da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), também presente no evento, o seminário foi útil para reconhecer e mapear de maneira mais objetiva as forças que estão se organizando para atuar na educação e incluir suas posições na proposta da Base Nacional. “São setores ligados à direita, que participaram diretamente dos movimentos que apoiaram o golpe, e querem incluir propostas regressivas, que buscam retirar das escolas a possibilidade de estimular a formação de indivíduos autônomos, cerceando e criminalizando professores que apresentem uma visão crítica sobre a realidade social. Ficou claro que esse enfrentamento será extremamente importante para que a proposta que ainda traz muitas incertezas não assuma um caráter ultraconservador”, avalia.
Mesmo que não seja através da BNCC – que Ribeiro alerta, já está bastante permeável a pautas de grupos empresariais nacionais e multinacionais presentes no Movimento pela Base Comum –, a agenda conservadora na educação se multiplica em diversas iniciativas no Congresso. “Precisamos acompanhar esses movimentos e propostas e nos posicionar de forma clara contra esses retrocessos”, reforça.
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“Escola sem partido é escola sem educação” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU