31 Março 2016
"A opção neoconservadora idealiza uma Igreja clerical e hierárquica que epitomiza uma não recepção do Vaticano II. A opção ortodoxa radical idealiza uma Igreja cuja teologia, na verdade, aprendeu com a praça pública e com a interação no domínio da política (a ideia de liberdade religiosa, só para mencionar um exemplo). Essa eclesiologia tende a enxergar a Igreja como uma contrassociedade que mascara a tentação de uma Igreja como societas perfecta", escreve Massimo Faggioli, professor de história do cristianismo e diretor do Institute for Catholicism and Citizenship, na University of St. Thomas, nos EUA. O artigo foi publicado por Global Pulse, 29-03-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Segundo Faggioli, "o fim do alinhamento ideológico entre um conservadorismo político-religioso e a Igreja Católica vai além do cenário americano. Ele faz parte da globalização da Igreja Católica. É um processo que acarreta levar a sério a esfera política, o que esta é e como tem mudado em diferentes regiões do mundo, bem como o que ela significa para o catolicismo".
Eis o artigo.
Os católicos se familiarizaram com a expressão “o longo século XIX”, período que, na verdade, começou para a Igreja em 1789 com o choque da Revolução Francesa e que só terminou depois da Segunda Guerra Mundial. Realmente, um século muito longo.
Em seu livro magistral What Happened at Vatican II (2008), o teólogo e historiador jesuíta John O’Malley identifica este período com uma teologia católica abafada que era incapaz de entender a modernidade até pouco tempo atrás, quer dizer, em meados do século XX.
Parece que uma extensão deste conceito também se deu com os alinhamentos político-ideológicos dentro do catolicismo de língua inglesa.
Talvez estejamos testemunhando neste momento o final atrasado do século XX.
Por um lado, o pontificado do Papa Francisco e, por outro, a crise do conservadorismo americano são uma prova concreta do fim de uma era tanto na política americana como na Igreja. Existe um paralelo evidente entre o desalinho do conservadorismo americano ainda identificado com a agenda política de Reagan e as divisões entre os católicos do país.
Os latinos costumavam dizer: “simul stabunt, simul cadent”, quer dizer, as pessoas permanecem unidas e elas caem unidas. O desmoronamento do castelo de cartas do conservadorismo político no final do século XX faz parte da crise dentro da cultura política das lideranças católicas nestes últimos 30 anos. Isso fica claro nos Estados Unidos da América, mas na verdade é uma crise mais ampla.
Ele faz parte da história ainda não escrita mais ampla do período do pós-Vaticano II com a proposta neoconservadora de alterar a direção do comando na Igreja Católica.
Entre as décadas de 1980 e 1990, intelectuais católicos destacados como Richard John Neuhaus, George Weigel, Michael Novak e membros do Acton Institute retrataram o papa, João Paulo II, como alguém plenamente alinhado com a opinião deles sobre a economia, a sociedade e o papel da Igreja na praça pública.
Anthony Annett recentemente resumiu este tema de forma cristalina em um artigo publicado na Commonweal. [1]
A narrativa do alinhamento entre um João Paulo II supostamente “americanista” e a direita evangélica da política americana acompanhou a remodelagem do episcopado nos EUA e empurrou os líderes eclesiásticos americanos para dentro dos braços do Partido Republicano. Oficialmente tratava-se de uma oposição ao aborto legal, mas visivelmente tinha a ver com algo mais também.
O que aconteceu foi um aprofundamento da divisão dentro do país e dentro da Igreja – uma divisão que não é somente entre progressistas x conservadores, mas que igualmente diz respeito a todos os males que uma visão de mundo individualista (e que diz que a “sociedade não existe”) dá à luz.
O colapso simultâneo dos alinhamentos eclesiástico e político não é novidade na história.
O que está acontecendo nos EUA neste momento aconteceu de um jeito parecido na Itália no começo da década de 1960 com João XXIII, cujo pontificado (e a sua decisão de convocar o Concílio Vaticano II) levou a uma reavaliação da aliança aparentemente inviolável entre um partido católico e a direita política na Itália posteriormente à Segunda Guerra Mundial.
Em menor escala, o mesmo igualmente se passou no período pós-João Paulo II e pós-Bento XVI na Itália, onde o establishment da direita cessou basicamente de existir sem o apoio vital eclesiástico.
Não se trata de um momento do tipo “eu avisei”. Em vez disso, é um momento do tipo “e agora?”. O caos dentro da direita política nos EUA não tinha, até o momento, uma equivalência na Igreja Católica. Os bispos do país têm sido relutantes em reconhecer as mudanças que estão havendo na Igreja sob o comando do Papa Francisco – ou melhor, eles têm se recusado a fazê-las acontecer por aqui. No entanto, claramente este é o fim de um alinhamento antigo e que trará consequências.
Provavelmente os bispos já perceberam que o sistema americano de dois partidos torna a Igreja vulnerável ao hiperpartidarismo que, hoje, assola a política nacional. Mas a questão não se resume só e exclusivamente aos bispos. O fim deste alinhamento é uma oportunidade de repensar um jeito de modelar a Igreja – e isso não vale somente para o catolicismo conservador.
As divisões criadas e favorecidas pelo alinhamento entre as lideranças eclesiásticas e a direita política alimentaram, na verdade, duas ideologias político-religiosas diferentes e opostas nestas últimas décadas.
Por um lado, existe o que podemos chamar de uma ideologia religiosa neoconservadora. Esta é uma teologia que se apresenta cética a respeito de muitos dos desdobramentos do Vaticano II e é substanciada por uma mensagem política de fé em uma economia desenfreada de livre mercado. Esta teologia é também alérgica à virtude da solidariedade (exceto para a caridade voluntária) caso esta solidariedade seja canalizada por meio de serviços sociais fornecidos pelo governo. Ela é moralista ao enquadrar questões morais como atos puramente individuais que estão completamente separados do pecado social (o aborto é apenas um exemplo). Esta ideologia religiosa baseia-se no nacionalismo que vê o excepcionalismo americano como parte do excepcionalismo católico americano. [2] E, finalmente, ela é institucionalista e clerical em sua visão de Igreja.
Por outro lado – isto é, no lado esquerdo do espectro político – existe uma eclesiologia que se aproxima da chamada “ortodoxia radical” e consiste em uma rejeição das perversões da ideologia neoconservadora. Esta rejeita a ideia de um intercâmbio frutífero entre a Igreja e a esfera política, que é percebida como necessariamente envenenadora do caráter cristão da Igreja. Na rejeição do alinhamento com o conservadorismo, esta teologia defende uma Igreja que seja mais comunitária do que uma Igreja em sociedade; uma Igreja bastante ativa socialmente, mas que se retira do engajamento político por medo de se contaminar.
O problema com estas duas visões (resumidas aqui muito brevemente) é que elas alimentam uma eclesiologia que tende a idealizar a Igreja e, portanto, torná-la uma ideologia.
A opção neoconservadora idealiza uma Igreja clerical e hierárquica que epitomiza uma não recepção do Vaticano II.
A opção ortodoxa radical idealiza uma Igreja cuja teologia, na verdade, aprendeu com a praça pública e com a interação no domínio da política (a ideia de liberdade religiosa, só para mencionar um exemplo). Essa eclesiologia tende a enxergar a Igreja como uma contrassociedade que mascara a tentação de uma Igreja como societas perfecta.
O fim do alinhamento ideológico entre um conservadorismo político-religioso e a Igreja Católica vai além do cenário americano. Ele faz parte da globalização da Igreja Católica. É um processo que acarreta levar a sério a esfera política, o que esta é e como tem mudado em diferentes regiões do mundo, bem como o que ela significa para o catolicismo.
Notas
[1] Conferir o texto, em inglês, disponível aqui.
[2] Excepcionalismo americano é a crença ou teoria segundo a qual EUA é qualitativamente diferente de outras nações.
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A crise dos alinhamentos político-religiosos dentro do catolicismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU