15 Março 2016
O jornal "La Repubblica" publicou, dia 09 de março, a introdução ao quinto volume das obras completas do teólogo Hans Küng, no qual foi reimpresso seu famoso "Infallibile? Una domanda" (Queriniana, 1970), juntamente com os escritos relativos ao acalorado debate que provocou. O texto põe em questão a doutrina da infalibilidade papal, e esteve na origem do inquérito que levou à retirada da autorização de ensinar teologia católica. Küng, no entanto, manteve-se como padre da igreja católica. Na publicação referida acima, que teve ampla ressonância internacional, o teólogo queria repropor essa questão como crucial para a reforma iniciada pelo Papa Francisco. Hoje, 10 de março, "Repubblica" apresenta um artigo de Alberto Melloni que, contextualiza historicamente a doutrina da infalibilidade, seu alcance e seu efetivo uso no magistério.
"Há pelo menos duas maneiras de ler a prerrogativa da infalibilidade pessoal do pontífice romano, definida no Concílio Vaticano I, em 1870: uma excitante e outra rigorosa" escreve Alberto Melloni, historiador da Igreja italiano, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII de Bolonha, em artigo publicado por La Repubblica, 10-03-2016. A tradução é de Ramiro Mincato.
A primeira forma, não estranha a Pio IX, é a que coloca a ênfase nesta definição, fazendo da infalibilidade pessoal uma infalibilidade tout court. Maximalistas do tempo e do espaço, estes leitores do Vaticano I apesentam, ora por razões apologéticas, ora polêmicas, o dogma da infalibilidade como um poder, não nascido da luta do século XIX entre igreja e modernidade, mas de uma necessidade teológica.
Pio IX - mas não foi o primeiro nem o último - não via naquela luta a agonia do regime de cristandade, que tinha dado poder à igreja, mas tinha conspurcado sua "autenticidade evangélica”, mas a via apenas como uma ameaça. Se, então, fosse dado o caso de uma perversão geral da Igreja, teria permanecido no "papa solus" todo o poder para dizer de forma solene, portanto, "ex cathedra", a verdade da fé. Isto, de acordo com os maximalistas, mudou o estatuto mesmo do papado: tornava, em suma, indispensável até mesmo alguma "devoção ao papa", como último guardião do tesouro essencialíssimo das verdades da fé e da moral. Mas, sobre este ponto, estava de certo modo de acordo também quem - como Hans Küng - nos anos setenta, via na infalibilidade o entrave para o ecumenismo e a consagração do regime monárquico do catolicismo, que inspirou, em parte, os últimos dez séculos.
A outra maneira de pensar a infalibilidade do papa foi e é menos emocionante: não excita o super-papismo e não agrada tanto nem mesmo aqueles críticos que veem ali o núcleo identitário do catolicismo. É o modo dos que sublinham que na definição do Vaticano I não se cria nada: na verdade, delimita-se tal prerrogativa tão bem, que a torna praticamente inutilizável.
Desde o direito canônico medieval se discutia sobre a possibilidade de que na apostasia geral, o Espírito guardaria a fé de alguns, muito poucos, ou, como pensava Ockham, de um só. E foram precisamente os franciscanos, ditos “espirituais", ligados à prática rigorosa da pobreza sancionada pelo papa, que apoiaram e defenderam a irreformabilidade das primeiras decisões papais contra aquelas mais permissivas tomadas pelos sucessores. Então, para proteger o princípio do pauperismo extremo, tiveram que tornar-se extremamente "papistas".
Mais tarde, no Concílio de Florença, de 1438-1439, foi codificado o princípio que a "infalibilidade da Igreja em crer pudesse concentrar-se, em circunstâncias extremas, no único papa de Roma: e, a partir daí, foi possível, no Vaticano I, chegar a uma definição bem pouco utilizável. Porque, como diz a história, na verdade, a infalibilidade pessoal do pontífice nunca foi praticamente usada, nas condições extremas previstas por Pio IX.
O dogma da Assunção de Maria - também comum no Oriente cristão, que o chama de "dormição" - foi proclamado por Pio XII, no Ano Santo de 1950, mas não com a infalibilidade pessoal. A Munificentissimus Deus, do Papa Pacelli, diz de fato: o dogma responde "ao consenso singular" dos bispos e fiéis, ao "consenso universal" do magistério e dos cristãos e ao "quase unanime consenso" do episcopado consultado. Não, portanto, uma infalibilidade pessoal e solitária do papa, mas uma concordância à qual o Papa dá voz.
Muito menos o pontificado sucessivo usou dessa prerrogativa, que o Vaticano II reconduz para dentro do leito de uma concepção de Igreja como comunhão. Apenas uma linha da Evangelium Vitae - aquela em que João Paulo II diz querer "confirmar" que o aborto é "desordem moral grave"- pode ser considerada infalível. Muitos afirmam que foi mérito de Joseph Ratzinger ter circunscrito com aspas as três palavras da declaração papal. Porém o crisma da solenidade doutrinária ou da infalibilidade pessoal foi aplicado a um princípio compartilhado pelos teólogos.
O perímetro tão apertado da infalibilidade tem, de fato, impedido que a condenação da contracepção hormonal ou mecânica, de Paulo VI, fosse lida, como alguém tentou fazer, como declaração infalível. E empurrou o próprio Ratzinger, como prefeito de cúria, a construir uma terceira figura - a do magistério "definitivo" - na ilusão de proteger no abrigo de um adjetivo diferente, temas, na sua opinião, muito relevantes, e que, ao invés disso, como notava, não sem alguma mágoa num discurso do ano 2000 que, exatamente por isto, foram discutidos e muitas vezes desconstruídos pelos teólogos.
Por isso é difícil de acreditar que o problema das reformas do Papa Francisco passe do impensável cancelamento de um ato conciliar de 1870. É no máximo a compreensão histórica daquele texto e da sua eficácia que pode mudar o "funcionamento" também no sentido ecumênico. Porque quando Francisco diz que o bispo tem que estar ora na frente, ora no meio, ora atrás de um rebanho de que reconhece a intuição de fé (o "sensus fidei"), está desenhando uma outra forma de exercício do múnus episcopal e, portanto, também da função do bispo de Roma e do ministério como papa, na comunhão entre as igrejas, que deixa aquelas discussões de uma temporada violenta da vida católica - aquela das condenações do pós-Concílio, das quais, Küng foi um alvo retrorrefletivo - e aspira por uma temporada em que a infalibilidade da igreja volte a expressar-se no consenso que o esforço de comunhão das igrejas encontra.
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O que significa infalibilidade? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU