17 Fevereiro 2016
Encontramos Yanis Varoufakis no dia depois do lançamento do Movimento pela Democracia na Europa (DiEM 25) na Volksbühne de Berlim. É a oportunidade para fazer um balanço dos temas que foram discutidos nos últimos dias e também para examinar com ele os pontos que nos parecem mais delicados e controversos. Começamos a conversa pedindo-lhe para iniciar por uma breve descrição do projeto.
A reportagem é de Marco Bascetta e Sandro Mezzadra, publicada no sítio EuroNomade, 14-02-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Em 2015, tivemos na Europa uma espécie de tempestade perfeita, pela soma de múltiplos fatores de crise: o choque entre o governo grego e a troika, os refugiados, a ausência de uma política externa europeia sobre o que acontece na África do Norte e na Síria, mas também na Ucrânia. Essas crises têm duas consequências essenciais: elas aceleram uma tendência à desintegração da União Europeia, mas, ao mesmo tempo, e essa é uma boa notícia, põem em alerta também aqueles que, nesses anos, não tiveram posições críticas sobre a Europa: muitos democráticos liberais, moderados, afeiçoados à democracia, dificilmente podem se sentir à vontade nessa União Europeia depois do que aconteceu em 2015. Esse desconforto abre caminho para novas coalizões, entre democráticos liberais, social-democratas, radicais de esquerda, verdes, ativistas, como, por exemplo, os da rede Blockupy. É uma possibilidade que não vai durar muito tempo. Se não a aproveitarmos, se não construirmos um movimento "paneuropeu", capaz de interromper a tendência à desintegração da Europa, ao ressurgimento dos nacionalismos, acho que faltaremos com uma tarefa decisiva. O DiEM tenta fazer precisamente isso."
Eis a entrevista.
O projeto e o manifesto do DiEM põem no centro a questão da democracia. Mas como vocês pretendem superar essa crise da democracia representativa que é tão evidente não só em nível europeu, mas também nos Estados-membros individuais? Parece-nos que existem razões estruturais que levam para a emergência de processos de governo "pós-democráticos". E que, portanto, a referência à democracia deve ser qualificada de maneira radicalmente inovadora.
Acredito que devemos distinguir dois aspectos. Há uma crise geral da democracia, na época do capitalismo financeirizado. O capital financeiro é inimigo da democracia, em toda a parte do mundo, nos Estados Unidos assim como na Europa. O problema é universal, por assim dizer. Mas há uma especificidade tóxica no que diz respeito à Europa: não temos uma federação com instituições democráticas específicas, o mesmo Banco Central Europeu tem um estatuto absolutamente único, não comparável, por exemplo, com o do Federal Reserve. Certamente, há uma crise da democracia também nos Estados Unidos, e, no fundo, o crescimento de Bernie Sanders é um sintoma positivo disso, que interpreta a desafeição em relação ao establishment (assim como, por outro lado, o crescimento de Donald Trump é um sintoma de um sinal totalmente diferente disso).
Mas, na Europa, não temos nem os checks and balances de base que caracterizam as democracias. Em suma, há duas questões que eu acredito que devem ser distinguidas. A primeira é a pergunta sobre se a democracia pode continuar existindo e se desenvolvendo nas condições do capitalismo contemporâneo. Estou convencido de que a resposta é negativa. A segunda diz respeito especificamente à Europa: aqui a democracia está simplesmente ausente. A mesma crise da democracia nos Estados nacionais está conectada com o modo como a União funciona: esta toma todas as decisões que importam para um país como a Itália, por exemplo, e o demos não tem nenhuma possibilidade de intervir. Os seus representantes nacionais não têm nenhuma poder para cumprir as suas promessas, como vimos na Grécia.
No entanto, parece-nos que, desse modo, não é contornada a dificuldade de repropor em nível europeu soluções institucionais centradas em torno da representação, no momento em que esta se encontra diante de fatores de crise que você definiu como "universais". Esses fatores, e particularmente a relação antagônica entre capital financeiro e democracia, talvez não comprometem a eficácia de um processo democrático tradicional em qualquer nível que se queira propê-lo?
Eu não sou um federalista no sentido conservador do termo, não acho que a solução consiste simplesmente no fato de que os governos se reúnem e decidem qualquer tipo de federação. Penso, por exemplo, nas propostas de Schäuble: elas não determinariam a democracia, mas a autocracia, levariam a uma espécie de despotismo fiscal. Eu insisto no fato de que a união política não é necessariamente democrática, temos muitos exemplos, a partir da União Soviética...
O ponto fundamental é precisamente este: nós não pensamos que a democratização pode vir de cima! Ela só pode vir de baixo, e essa convicção é o que faz do DiEM um movimento, e não qualquer tipo de think tank ou partido federalista europeu. A primeira passagem, para nós, é a transparência dos processos de tomada de decisão: estamos fortemente convencidos de que esse ponto não é nada marginal, que ele pode realmente mudar as regras do jogo. A segunda prioridade, para discutir de forma sensata a democratização da União Europeia, é remover os fatores que estão determinando a sua desintegração. Penso em medidas radicais sobre a dívida, sobre o sistema bancário, sobre a baixa taxa de investimentos, sobre a pobreza e sobre as migrações.
É possível fazer isso reinterpretando as regras existentes, não simplesmente invocando "flexibilidades", como faz Renzi, ou seja, a gentil concessão de não seguir as regras. Devemos reorganizar as instituições existentes, mudar a política do BCE, do Banco Europeu de Investimento. É possível trabalhar dentro das regras, mas as reinterpretando radicalmente: Schäuble, além disso, faz isso o tempo todo, do seu modo, para, depois, apresentar a urgência de uma assembleia constituinte.
A desintegração da Europa, de que você falou, tem, entre outros, aspectos que podem ser definidos em termos geográficos. À divisão entre Norte e Sul, acrescenta-se agora, de maneira muito amarga, a divisão entre Leste e Oeste, que não diz respeito apenas à questão dos refugiados, mas à própria ideia da relação entre governantes e governados. Nessas condições, como pode se desenvolver uma iniciativa "paneuropeia"?
A ruptura entre Leste e Oeste atravessa, de fato, todos os âmbitos, do tema dos migrantes ao da organização da zona do euro, além da política externa. Muitos países do Leste exigem uma política agressiva, militarista contra a Rússia, reivindicam a nossa solidariedade nesse campo, sem oferecer nada em questões como a reestruturação da dívida pública. Como podemos construir pontes entre Leste e Oeste? O único modo é através de movimentos capazes de envolver os democráticos, os progressistas da Hungria aos Países Bálticos, oferecendo-lhes uma oportunidade.
Imaginem ser jovens dissidentes húngaros, não têm uma iniciativa, um sujeito a aderir. O Partido da Esquerda Europeia não aceita inscrições diretas, é uma confederação de partidos nacionais, e os seus representantes em países como a Hungria ou a República Tcheca são amplamente desacreditados. Se o DiEM conseguir, através do seu manifesto e das suas campanhas, a se afirmar como um ponto de referência credível e atraente para os democráticos no Leste Europeu, isso pode construir pontes.
A questão da relação com a Rússia nos parece crucial e repleto de perigos. Atrás dela, está a questão da relação entre a União Europeia e os Estados Unidos, e em particular o papel da Otan. O que você pensa a respeito?
Eu trabalhei por muito tempo nos Estados Unidos e tive colegas que, no passado, tinham colaborado com a Otan. Muitos deles estão convencidos de que a Otan esgotou a sua função. Se eles pensam isso, o que nós devemos dizer? O problema é que a Otan está em uma busca constante de razões que legitimam a sua existência, depois do fim da sua razão de ser. Ela deve inventar constantemente novos inimigos. É isso que queremos na Europa? Eu acho que não. Tomemos Putin. Eu o considero um criminoso de guerra, não para a Ucrânia, mas por aquilo que ele fez na Chechênia.
O maior presente para a carreira política de Putin foi a expansão da Otan para o leste. Ele pode dizer ao seu povo que o autoritarismo na Rússia é justificado pela incumbência do inimigo. Hoje, a Otan oferece um senso de segurança fictício para países como a Estônia, a Geórgia, a Ucrânia. Na realidade, a sua expansão para o leste envolve militarização e contínuas ocasiões de conflito com a Rússia. A União Europeia, conscientes dos próprios interesses, simplesmente não deveria participar desse jogo.
O objetivo de longo prazo do DiEM é a convocação de uma assembleia constituinte na Europa. Mas quais são as condições para dar esse passo que, na história, sempre se seguiu a grandes rupturas e convulsões sociais? Quais são as energias sociais já em movimento que podem determinar a ruptura necessária para abrir o espaço constitucional?
A minha companheira, uma artista, uma vez me disse: porque nos aviões há uma caixa preta que nos poderá dizer depois da catástrofe por que razões estamos mortos? Não seria melhor ter uma caixa preta para ser aberta antes do acidente, de modo que ele não aconteça? Parece-me uma ótima pergunta: por que devemos esperar o desastre para organizar uma assembleia constituinte e não fazer isso, ao contrário, para que ele não aconteça? As condições objetivas para uma assembleia constituinte estão dadas na Europa pela fragmentação diante da qual nos encontramos.
Precisamos de um conjunto de movimentos que imponham às instituições europeias uma agenda de estabilização no sentido que eu tentei explicar antes. Só sobre essa base se pode criar um sistema eleitoral inclusivo e realmente europeu para a eleição da assembleia constituinte. Os alemães, por exemplo, devem ter a possibilidade de votar em candidatos italianos ou franceses (e, naturalmente, vice-versa). Uma boa fonte de inspiração podem ser os projetos de pesquisa financiados pela Comissão nas universidades europeias: se você quiser pedir um financiamento, você deve criar um consórcio entre universidades de, ao menos, sete países. Por que, então, não imaginar que, para se candidatar para a assembleia constituinte, seja necessário formar listas com candidatos de, ao menos, 10 ou 15 países diferentes?
Você falou nesses dias da austeridade como uma forma de "guerra de classes" de cima. Mas quais forças hoje podem ser postas em prática a partir de baixo, não só para se defender do ataque, mas para exercer um poder constituinte real? Para nós, parece uma pergunta inevitável, que obriga a acertar as contas com as profundas transformações da composição do trabalho e das formas de vida. Essas transformações impõem a busca de instrumentos políticos e organizacionais diferentes dos do passado.
Muitos companheiros e amigos me criticaram por uma referência genérica demais à democracia. Mas pensem na definição que Aristóteles lhe deu, ele que certamente não era um democrático: o governo dos livres e dos pobres. É uma boa definição: os pobres, os subalternos, os explorados são, de fato, a maioria. E, portanto, uma democracia real só pode ser dominada pelos movimentos dos pobres. As democracias liberais, que têm as suas raízes na tradição da Magna Carta, certamente foram outra coisa. A Magna Carta é uma carta dos barões, dos proprietários de terras contra o rei, que lhes garantia o fato de terem os seus próprios servos e de não verem-nos sendo levados embora pelo soberano. A democracia liberal tem esse pedigree. Leiam o Federalist, por exemplo, e verão claramente que o problema é como impedir que a multidão governe. Essa democracia chegou aos seus limites com o capitalismo financeirizado. Um movimento democrático hoje é, por definição, um movimento que visa a pôr fim à guerra de classes de cima, organizando um contra-ataque de baixo.
Isso levanta o problema, fundamental para nós, de pensar em uma nova articulação entre movimento democrático e luta de classes. Como você pensa, concretamente, em tal articulação? Como podem se cruzar positivamente as insurgências sociais e diversas formas de ação institucional?
Se, como eu dizia, o problema básico na Europa for a estabilização, está não é possível sem o crescimento tumultuoso de um movimento democrático. Os poderes existentes não são capazes disso. Um exemplo simples e absolutamente concreto: imaginem um movimento que imponha que o Banco Central comece a comprar a dívida do Banco Europeu de Investimento, em vez do alemão ou italiano, para financiar um ambicioso Green New Deal para a Europa. Assim, em vez de imprimir moeda para os circuitos do capital financeiro, a criação de moeda iria financiar a cooperação produtiva, criar postos de trabalho em setores inovadores, pondo as condições favoráveis, ao mesmo tempo, para a organização e a luta dos trabalhadores e combatendo a mercantilização e a precarização do trabalho.
O DiEM tem a ambição de construir uma força transnacional de novo tipo, conectando ativistas, políticos, intelectuais, artistas, sindicalistas em um campo imediatamente "paneuropeu". Não é uma aposta fácil, e são poucos os modelos para se inspirar. Qual é o processo inovador que você tem em mente?
A desintegração da União Europeia é algo inédito, contradiz uma história fundada no progressivo avanço da integração. É para enfrentar esse problema que precisamos de um instrumento absolutamente novo. Os partidos de esquerda europeus têm a sua base nos Estados nacionais, e o GUE [Esquerda Unitária Europeia] constitui uma espécie de confederação deles, que não põe em discussão esse fundamento nacional. Essa é uma das razões da sua impotência.
Não é uma questão de má vontade: o fato é que, pela sua ação em escala nacional, eles são obrigados a articular programas de governo que nunca poderão ser implementados. Se esse diagnóstico estiver correto, uma plataforma comum para os democráticos na Europa deve ser construída de forma diferente, por meio de uma ação política que não tenha a sua base nos Estados nacionais. E não pode ser um partido, porque um partido é, por definição, hierárquico. Os militantes dos partidos de esquerda podem aderir ao DiEM e continuar militando no seu partido nacional.
Mas, no DiEM, enfrentamos os nossos problemas comuns, independentemente da filiação partidária ou das convicções filosóficas que cada um legitimamente traz consigo. A resposta à pergunta de vocês só poderá ser encontrada gradualmente. É um trabalho em progresso. Como dizia Brian Eno na Volksbühne, na terça-feira passada, se você não tiver uma receita, comece a cozinhar, e a receita virá.
Para concluir, quais serão os próximos passos do DiEM?
Já anunciamos um abaixo-assinado, dirigida aos presidentes do Eurogrupo, do Conselho Europeu e do Banco Central Europeu, pedindo para que assegurem o streaming das suas reuniões (com exceção do BCE, ao qual pedimos para fazer aquilo que o Federal Reserve faz, ou seja, tornar públicas as atas das reuniões duas semanas depois de terem sido realizadas). Também será uma oportunidade para começar a organizar o movimento em torno de uma campanha concreta. Estamos nos preparando para constituir grupos de trabalho para desenvolver uma plataforma digital eficiente e segura, que nos permita intervir no debate público e articular o nosso trabalho.
Depois, identificamos cinco áreas temáticas, de crucial importância para o futuro da Europa: o Green New Deal de que falei antes, a questão da dívida e do sistema bancário, as migrações e as fronteiras, a transparência e o tipo de Constituição de que a Europa precisa. Queremos chegar, dentro de um ano, a ter cinco policy papers sobre esses temas. Começaremos compondo uma lista de problemas e de perguntas para cada uma dessas áreas temáticas, para depois lançar uma grande campanha de consulta em diversos locais e em diversos países.
A partir dessas reuniões, vão surgir propostas que serão "filtradas" e "recombinadas" por grupos de trabalho que submeterão o resultado a grandes assembleias temáticas. Essas assembleias votarão um documento final, que depois será submetido ao julgamento de todos os membros do DiEM. É um processo que pode ser definido como democracia em ação, a partir do qual vai emergir um verdadeiro Manifesto do DiEM, e não uma simples declaração de princípios.
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A democracia dos livres e dos pobres na Europa. Entrevista com Yanis Varoufakis - Instituto Humanitas Unisinos - IHU