15 Fevereiro 2016
Em um encontro histórico que, em certo sentido, foi gestado durante séculos, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill, da Igreja Ortodoxa Russa, se encontraram sexta-feira (12-02-2016) em Havana, emitindo uma declaração conjunta comprometendo as duas igrejas a “caminharem juntas”.
Este foi o primeiro encontro entre os líderes das igrejas católica romana e ortodoxa russa, os dois maiores grupos cristãos em cada um dos lados da ruptura entre o cristianismo oriental e ocidental convencionalmente datado de 1054.
“Nós falamos como irmãos, temos o mesmo batismo, somos bispos”, disse Francisco. “Falamos das nossas Igrejas e concordamos que a unidade se faz a caminhar”.
A reportagem é de John L. Allen Jr. e Inés San Martín, publicada por Crux, 12-02-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
“Durante duas horas tivemos uma discussão aberta, com pleno entendimento da responsabilidade de nossas igrejas com nosso povo crente, o futuro do cristianismo e o futuro da civilização humana”, disse Kirill. “Os resultados da conversa permitem assegurar que atualmente as duas igrejas podem cooperar defendendo os cristãos de todo o mundo, e com plena responsabilidade, trabalhando juntas”.
Francisco iniciou os trabalhos mesmo antes de o encontro começar. Perguntado a bordo do voo para Havana sobre quando iria à Rússia ou à China, o pontífice falou: “A Rússia e a China, eu as carrego aqui”, pondo as mãos sobre o coração.
Francisco também tuitou na sexta-feira que “hoje é um dia de graça”, descrevendo o encontro com Kirill como um “dom de Deus”.
Enquanto isso, a agência noticiosa russa TASS informou que Kirill disse ao presidente cubano Raul Castro no início da sexta-feira que colocava uma “grande esperança” no encontro com Francisco e que os sinais de uma melhoria nas relações entre as duas igrejas aparentemente já se faziam visíveis.
Na quinta-feira, dia 11 de fevereiro, o líder da Igreja Católica Maronita do Líbano e um representante do Patriarcado de Moscou se reuniram em Bekerke, Líbano, na sede do líder maronita.
Os pontos-chave presentes na declaração assinada por Francisco e Kirill na sexta-feira incluem:
• Um reconhecimento de que “estamos divididos por feridas causadas por conflitos dum passado distante ou recente, por divergências – herdadas dos nossos antepassados”.
• Uma profunda preocupação pelos “cristãos [que] são vítimas de perseguição”. Os dois líderes disseram: “Em muitos países do Médio Oriente e do Norte da África, os nossos irmãos e irmãs em Cristo veem exterminadas as suas famílias, aldeias e cidades inteiras. As suas igrejas são barbaramente devastadas e saqueadas; os seus objetos sagrados profanados, os seus monumentos destruídos”.
• Um apelo a um maior diálogo inter-religioso: “As diferenças na compreensão das verdades religiosas não devem impedir que pessoas de crenças diversas vivam em paz e harmonia”, afirmaram.
• Uma preocupação com a hostilidade secular à religião: “Constatamos que a transformação de alguns países em sociedades secularizadas, alheias a qualquer referência a Deus e à sua verdade, constitui uma grave ameaça à liberdade religiosa. É fonte de inquietação para nós a limitação atual dos direitos dos cristãos, se não mesmo a sua discriminação”.
• Uma defesa dos imigrantes e refugiados: “Não podemos ficar indiferentes à sorte de milhões de migrantes e refugiados que batem à porta dos países ricos”, disseram.
• Um forte chamado à preservação da “família natural” baseada na união entre um homem e uma mulher e ao “direito à vida”, incluindo uma oposição ao aborto e à eutanásia.
• Um convite à “prudência, à solidariedade social e à atividade de construir a paz” na Ucrânia.
O encontro durou um pouco mais de duas horas, e aconteceu no Aeroporto Internacional José Martí, em Havana.
A ênfase nos cristãos perseguidos no Oriente Médio presente na declaração é particularmente válida de nota, conforme foi citado antes do encontro por representante de ambas as igrejas.
O Pew Forum estima haver cerca de 5,6 milhões de católicos e 5,5 milhões de ortodoxos no Oriente Médio e no Norte da África, algo em torno de 1 e 2% da população da região.
“A situação que está se configurando no Oriente Médio, nas regiões norte e central da África e em algumas áreas onde os extremistas estão levando a cabo um verdadeiro genocídio da população cristã exige medidas urgentes e, até mesmo, uma cooperação mais próxima”, disse o Metropolita Hilarion Alfeyev, da Igreja Ortodoxa Russa, um dia antes do encontro.
Historicamente, a Rússia tem sido vista como a padroeira e protetora dos cristãos no Oriente Médio, especialmente dos ortodoxos. Francisco tem denunciado as ameaças enfrentadas pelos cristãos em lugares tais como o Iraque e a Síria, dizendo que o fato de que várias denominações cristãs estão sofrendo juntas cria um “ecumenismo de sangue”.
Ainda que os esforços para pôr juntos o papa e o patriarca venham ocorrendo há décadas, o anúncio do encontro dessa sexta-feira veio somente a uma semana atrás em um documento conjunto emitido pelo Vaticano e pelo Patriarcado de Moscou. O momento contou com a vantagem do fato de que Kirill já tinha programado para estar em Cuba no mesmo momento em que Francisco estaria em rota para o México, tornando viável um encontro dos dois.
Analistas dizem que a decisão do papa em fazer uma escala em Havana foi também pensada para ser um sinal de graça, posto que muitos russos ainda pensam de Cuba como sendo a “sua própria casa” no hemisfério ocidental.
Os papas têm se reunido com os líderes ortodoxos há décadas, sendo o primeiro encontro na era moderna entre o Papa Paulo VI e o Patriarca de Constantinopla, Atenágoras I, em Jerusalém em 1964.
A Igreja Ortodoxa Russa, no entanto, alega ter aproximadamente dois terços dos 225 milhões de cristãos ortodoxos no mundo, e há muito tem uma visão cautelosa de um encontro entre o seu líder espiritual e um papa, o que é um vestígio das suspeitas de que os católicos querem converter os ortodoxos.
São João Paulo II, o primeiro papa eslavo da histórica, sonhou em reunir o cristianismo oriental e ocidental, e por muitos anos durante as décadas de 1980, 1990 e 2000 ele expressou um desejo de ou visitar a Rússia, ou se encontrar com o Patriarca de Moscou em um lugar neutro.
Por motivos teológicos e políticos, um tal encontro nunca ocorreu.
Apesar da natureza histórica do encontro dessa sexta-feira, poucos especialistas em ecumenismo acreditam que a ocasião levará a uma restauração da plena unidade entre o catolicismo e a ortodoxia russa.
Alguns momentos anteriores ao encontro trouxeram lembretes das divisões teológicas e políticas.
No dia 5 de fevereiro, o Metropolita Hilarion Alfeyev, da Igreja Ortodoxa Russa, disse aos jornalistas que o encontro aconteceria “apesar do problema dos uniates”, referência às 22 igrejas orientais em comunhão com Roma, as quais alguns líderes ortodoxos consideram como “cavalos de troia” projetados para influenciar os fiéis ortodoxos.
Hilarion também tomou as dores para insistir que não haveria nenhuma oração conjunta entre o papa e o patriarca, observando que o encontro aconteceria não numa igreja, mas numa sala de embarque do aeroporto.
“Existem certos grupos muito conservadores na ortodoxia russa que ainda mantêm uma visão negativa da validade sacramental das outras igrejas, incluindo a nossa”, disse Robert Taft, jesuíta americano professor há décadas no Pontifício Instituto Oriental de Roma e que é considerado um dos mais destacados especialistas católicos sobre o culto ortodoxo.
Dado os séculos de lutas sangrentas – sem mencionar as disputas contemporâneas em temas tais como a incursão da Rússia no leste da Ucrânia, que foi apoiado pelo clero ortodoxo russo, mas criticado por Francisco –, alguns se perguntam como, afinal, foi possível esse encontro em Havana.
Taft disse acreditar que a personalidade e a visão teológica de Francisco ajudaram a fazer isso acontecer.
“Acho que o principal motivo é que estamos lidando com um papa que é completamente diferente”, disse Taft.
“Lembra quando ele disse: ‘Quem sou eu para julgar?’ O papado fez do julgar as pessoas na face da terra um negócio, e aqui temos alguém que muda esse paradigma em um piscar de olhos”.
“Tudo isso diminui a fúria, ou o medo, que os ortodoxos sentem ao ver a aproximação de Roma junto a eles”, disse. “A Rússia está começando a entender que a Igreja Católica a vê como uma Igreja irmã, não como alguém que se separou da única Igreja verdadeira”. “É uma situação completamente diferente”.
Por outro lado, nem todo mundo estava preparado para celebrar o encontro de sexta-feira, especialmente na Ucrânia, lar da Igreja Católica Grega com 5 milhões de fiéis, país que vem sendo um marco zero para as tensões entre católicos e ortodoxos russos.
Embora dando as boas-vindas ao encontro e rezando pelo seu “fruto espiritual”, o Bispo Borys Gudziak, da Igreja Católica Grega ucraniana, advertiu, em um comunicado emitido dois dias antes, que este encontro não deveria ser “hiperbolizado”.
Em parte, argumentou Gudziak, porque a Igreja Ortodoxa Russa está carregando uma bagagem significativa.
“Nos anos de Putin, a liderança da Igreja Ortodoxa Russa, cada vez mais apegados ao poder estatal, tem sacrificado a sua liberdade minado a vocação profética enquanto recebe um apoio governamental lucrativo”, disse.
Gudziak também deu a entender que Moscou tem motivos políticos dentro do mundo ortodoxo para explorar uma plataforma com o papa.
“A Igreja Ortodoxa Russa se apresenta como a maior igreja ortodoxa, mas cerca da metade do rebanho que reivindica possuir está na Ucrânia”, disse. “Os ortodoxos ucranianos estão manifestando o desejo deles por independência de Moscou, motivo pelo qual uma guerra está sendo travada contra eles”.
“A independência é algo que tanto Putin quanto Kirill estão lutando, a todo custo, para evitar”, afirmou Gudziak. “A assimetria do encontro entre o papa e o patriarca – quem eles representam e o que defendem – precisa ser compreendida a fim de se evitar uma compreensão equivocada da natureza e do impacto do encontro de Havana”.
Em um ensaio publicado, um outro clérigo católico grego, Andriy Chirovsky, de Ottowa, Canadá, manifestou uma inquietação semelhante em que tanto Putin quanto o patriarca poderiam buscar fazer do tête-à-tête com o papa uma jogada de relações públicas.
“Não acho que o Papa Francisco vai se deixar levar e ser manipulado”, escreveu Chirovsky. Mas a minha confiança na capacidade do Vaticano em superar a máquina propagandista do Kremlin é muito mais frágil”.
Independentemente de quais sejam os desafios, Taft diz que a Igreja Católica se beneficia ao buscar estreitar os laços. “O que a Igreja ganha é uma visão mais honesta de si e de seu lugar no mundo”, declarou.
“Não é verdade que, no começo, tínhamos uma Igreja centrada em Roma, e então por vários motivos históricos certos grupos se desligaram”, continuou. “É simplesmente o contrário. No começo, tínhamos várias igrejas, conforme o cristianismo se desenvolvia aqui e ali e em alguns outros lugares. Aos poucos, unidades diferentes começaram a se formar”.
“É essa a realidade”, disse Taft, “e nós temos de aceitá-la”.
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Papa Francisco e Patriarca Kirill se abraçam em encontro histórico - Instituto Humanitas Unisinos - IHU