11 Fevereiro 2016
A impunidade desfrutada durante 25 anos pelos assassinosmassacre de 1989 em El Salvador começou a acabar em 5 de fevereiro depois que um juiz dos EUA ordenou que um dos suspeitos, vivendo nesse país, fosse extraditado para a Espanha a fim de ser processado por um dos crimes mais notáveis da guerra civil salvadorenha.
A reportagem é de Linda Cooper e James Hodge, publicada por National Catholic Reporter, 08-02-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Poucas horas depois que a decisão de extraditar o Col. Inocente Orlando Montano foi tornada pública, a Polícia Civil Nacional, de El Salvador, começou a vasculhar as casas de outros suspeitos também procurados pela Espanha por tramar e realizar o massacre de 1989. Cinco dos seis sacerdotes mortos eram cidadãos espanhóis.
Em 2011, o juiz da Corte Nacional espanhola Eloy Velasco Nunez indiciou vinte militares salvadorenhos relacionados com o massacre e, em seguida, encaminhou pedidos de prisão à Interpol. Porém as autoridades salvadorenhas se recusaram a fazer as prisões, citando uma polêmica lei de anistia salvadorenha de 1993 que garante proteção a criminosos de guerra.
Fontes conhecedoras do caso disseram que a decisão histórica da magistrada americana Kimberly Swank, no caso de Montano, provavelmente dê às autoridades salvadorenhas a cobertura de que precisavam para começar a prender ex-oficiais do alto escalão em um país onde os militares ainda possuem um poder enorme.
Montano é a mais alta autoridade na história recente a ser extraditada dos EUA por violações dos direitos humanos. Na época do massacre, Montano atuava como vice-ministro da Defesa para a Segurança Pública, estando no comando da Polícia Nacional, da Polícia do Tesouro e da Guarda Nacional.
Em sua decisão de 23 páginas, Swank disse que as evidências mostram que Montano participou de assassinatos “terroristas” e que esteve presente em reuniões fundamentais onde o alto comando tramou o assassinato do padre jesuíta Ignacio Ellacuría, reitor da Universidade Centro-Americana.
Ellacuría vinha também trabalhando como negociador buscando mediar um acordo de paz entre o governo salvadorenho apoiado pelos EUA e a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional – FMLN. As negociações de paz incluíam discussões sobre tirar os militares daqueles cargos ligados a atrocidades.
A operação para eliminar Ellacuría e todas as testemunhas foi levada a cabo no dia 16 de novembro de 1989 por uma unidade antiterrorista treinada pelos americanos, que invadiu a Universidade Centro-Americana, em San Salvador, e estourou os miolos dos jesuítas com armas de alta potência. Os assassinos em seguida executaram a trabalhadora doméstica dos religiosos, Julia Elba Ramos, e sua filha Celina.
Ellacuría e os padres jesuítas Ignacio Martín-Baró, Segundo Montes, Juan Ramón Moreno e Amando López eram cidadãos espanhóis. O sexto padre, Joaquín López y López, era de El Salvador.
Em sua decisão no caso Montano, Swank conclui que “um oficial do governo que age em colaboração com outros do lado de fora do escopo de sua autoridade legal [para cometer um crime hediondo] pode, com razão, ser considerado membro de uma gangue armada sob o estatuto de assassinato terrorista espanhol”.
As conclusões da juíza foram “completos, eruditos e abrangentes em seu escopo”, disse Patty Blum, assessora jurídica do Center for Justice and Accountability – CJA, organização americana de direitos humanos sem fins lucrativos. A CJA foi quem entrou com o pedido de extradição original junto à corte espanhola em 2008, com a ajuda da Associação Espanhola para os Direitos Humanos.
Ao caracterizar Montano como um terrorista, segundo Blum, a decisão do tribunal se constitui numa “resposta aos anos de luta do povo salvadorenho contra militares repressores que tentaram inverter a realidade chamando qualquer um que a desafiasse – inclusive os padres jesuítas – de terrorista”.
Montano se formou em engenharia pela universidade jesuíta onde o massacre ocorreu. Ele também se formou na Escola das Américas, instituição do exército americano, em Fort Benning, Geórgia, atualmente conhecida como Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança.
Na decisão, Swank detalha meticulosamente o papel de Montano no massacre.
No dia 9 de novembro de 1989, o presidente salvadorenho Alfredo Cristiani convida Ellacuría, que então estava de visita à Espanha, para retornar a El Salvador a fim de se juntar a uma investigação sobre o bombardeio a uma confederação de trabalhadores. Ele concordou e enviou ao governo o seu itinerário. Em 11 de novembro, o rádio oficial do governo – supervisionada por Montano – faz ameaças contra Ellacuría, acusando-o de “ser um terrorista armado e um líder intelectual da FMLN”
No dia 12 de novembro, uma unidade militar vasculha a universidade e isola a área. No dia seguinte, o Batalhão Atlacatl, treinado pelo exército americano, é enviado pelo subordinado de Montano a vasculhar as unidades habitacionais dos sacerdotes jesuítas. Ellacuría havia retornado ao campus e era a única pessoa com permissão dos militares para entrar nas instalações universitárias. No dia 15 de novembro, Montano estava na presença de quatro oficiais quando o Col. Rene Emilio Ponce emite uma ordem ao Col. Guillermo Alfredo Benavides para matar Ellacuría.
Montano fornece informações sobre o paradeiro de Ellacuría, e nas primeiras horas da manhã do dia seguinte, os padres são executados.
Nos dias que se seguiram, escreve Swank, Montano conspirou com outras autoridades do governo na tentativa de ocultar responsabilidade dos militares pelo massacre. Enquanto Benavides ordenava a destruição dos diários que mostravam a movimentação do Batalhão Atlacatl, Montano “ameaçava a esposa de uma testemunha que se perguntava como seria possível que o governo emitisse uma ordem para matar os jesuítas”.
Montano, 73, nega qualquer papel no massacre.
Mas ele também negou que tenha servido o exército. É isso o que falsamente alegou nos documentos apresentados à imigração nos EUA em 2002 e, novamente, em outros documentos produzidos para manter o seu Status de Protegido Temporário.
Em 2011, a CJA o descobriu escondido em Boston. Montano foi, mais tarde, detido e condenado em 2013 por fraude imigratória e perjúrio, tendo ficado 21 meses preso na Carolina do Norte. Swank, magistrada de um tribunal federal no Distrito do Leste, na Carolina do Norte, ordenou que autoridades americanas o levassem sob custódia para a extradição pendente.
A procuradora internacional Almudena Bernabeu, que irá estar presente no caso em Madri por parte da CJA, declarou: “Responsabilizar um oficial militar do alto escalão pelo massacre dos jesuítas é significativo em vários níveis. Primeiro, teremos condições de encontrar a [plena] verdade que os jesuítas e os salvadorenhos vêm exigindo há tanto tempo. A verdade e a responsabilização darão força a todos aqueles que estão tentando pôr um fim ao ciclo de violência em El Salvador, algo que ressurgiu em níveis não vistos desde a guerra civil.
A decisão da juíza Swank é uma reafirmação dos esforços feitos pelo juiz espanhol Eloy Velasco de manter viva a jurisdição universal daquele país [a Espanha], de desafiar a impunidade e de processar os violadores dos direitos humanos”.
As incursões da Polícia Civil Nacional em El Salvador, que começaram poucas horas depois que a decisão de Swank foi protocolada, até agora prendeu quatro dos outros 16 procurados pelo tribunal espanhol além de Montano.
Originalmente, Velasco indiciou vinte salvadorenhos, mas dois concordaram em cooperar com o tribunal e o terceiro, o Col. Rene Emilio Ponce, chefe do Estado-Maior, morreu em 2011. Foi Ponce, formado pela Escola das Américas – que, mais tarde, se tornaria ministro da Defesa –, quem deu as ordens para matar Ellacuría.
Entre os quatro detidos está o Col. Guillermo Benavides.
Segundo uma Comissão da Verdade de 1993, das Nações Unidas, Benavides era o diretor do Colégio Militar que recebeu as ordens de Ponce para assassinar Ellacuría e não deixar nenhuma testemunha. Benavides, por sua vez, deu a ordem aos oficiais sob o seu comando e, mais tarde, substituiu os canos das armas do crime de forma que não fossem identificados nos testes balísticos. Benavides também ordenou que fossem queimados todos os livros de registro com as entradas e saídas do Colégio Militar. Em uma ação judicial no ano de 1991, ele foi considerado culpado de todos os assassinatos e por investigar e conspirar para cometer atos de terrorismo. Ele e o tenente Yusshy René Mendoza Vallecillos foram os únicos a irem para a prisão pelas atrocidades.
A citada Comissão da Verdade afirmou que a prisão deles era “injusta (…) quando as pessoas responsáveis por planejar os assassinatos e a pessoa que deu a ordem para assassinar continuam em liberdade”.
Com o desenrolar das ações, os dois foram soltos em 1993 como o resultado da lei de anistia que foi empurrada para aprovação da legislatura salvadorenha pelo partido de direita Aliança Republicana Nacionalista – ARENA, apenas cindo cias depois que a Comissão da Verdade anunciou que os militares salvadorenhos e os seus esquadrões da morte tinham cometido 85% das piores atrocidades da guerra.
Em 2012, a Corte Interamericana dos Direitos Humanos decidiu que uma lei de anistia não pode proteger perpetradores de crimes de guerra. Mas a Suprema Corte de El Salvador ainda terá de se pronunciar a respeito de uma ação que contesta a lei de anistia, ação impetrada pelo Instituto dos Direitos Humanos da Universidade Centro-Americana e outros grupos.
As prisões em curso no caso jesuíta devem forçar a Suprema Corte a emitir uma decisão não só com respeito à lei de anistia, mas também relativa aos pedidos de extradição espanhóis.
Além de Benavides, os outros três detidos são os sargentos-adjuntos Tomas Zarpate Castillo e Jose Antonio Ramiro Avalos Vargas e o cabo Corporal Angel Pérez Vásquez.
De acordo com a Comissão da Verdade, Zarpate Castillo atirou e feriu a trabalhadora doméstica do padre jesuíta, Julia Elva Ramos e sua filha de 16 anos, Celina; Avalos Vargas atirou e matou os padres López e Moreno; e Pérez Vásquez atirou e matou o Pe. Joaquín López y López. Avalos Vargas e Pérez Vásquez são formados na Escola das Américas.
Os pedidos de prisão à Interpol foram originalmente emitidos pelo Maj. Carlos Camilo Hernández Barahona e pelo tenente Rene Yusshy Mendoza Vallecillos. Os dois decidiram colaborar com as investigações via delação premiada.
Hernández Barahona era vice-diretor do Colégio Militar na época. Segundo a ONU, ele organizou a operação para matar Ellacuría e, com outros, arranjou para que fosse assassinado com um rifle AK-47 capturado da FMLN para pôr a responsabilidade no lado da organização guerrilheira.
Mendoza Vallecillos era um dos comandantes da operação. Foi condenado em 1991 pelo assassinato da filha da trabalhadora doméstica, sendo solto da prisão com Benavides tão logo aprovaram a lei de anistia.
Entre a dúzia de suspeitos ainda em curso estão ex-membros do alto comando, incluindo os generais Juan Orlando Zepeda e Rafael Humberto Larios.
Zepeda, formado na Escola das Américas em Operações Contrainsurgência, era vice-ministro da Defesa. Ainda de acordo com a Comissão da Verdade, ele publicamente acusou a universidade jesuíta de ser o centro de operações para sessões de guerrilha e estratégia terrorista.
A Comissão da Verdade disse que ele e Larios – outro formado na Escola das Américas que era ministro da Defesa quando os jesuítas foram assassinados – estiveram reunidos no dia 15 de novembro, quando se planejou o massacre.
Roy Bourgeois, ex-padre Maryknoll fundador da organização SOA Watch, deu as boas-vindas à notícia de que as autoridades estão, finalmente, dando passos para levar à justiça os assassinos dos jesuítas.
Foi o massacre destes religiosos, disse ele, que deu à luz a SOA Watch (organização para a defesa dos direitos humanos), isso a 25 anos atrás. Esse evento ajudou a lançar uma luz sobre aquela escola do exército americano e sobre o seu papel extenso na formação dos militares latino-americanos, incluídos aqui os assassinos dos seis jesuítas, de Dom Oscar Romero e de quatro missionárias americanas, além de dezenas de milhares de civis sem nome.
“Com o passar dos anos, ouvimos histórias de tantos latino-americanos sobre os seus medos, os sofrimentos, as mortes de seus entes queridos”, disse ele. “No entanto, essas pessoas sempre mantiveram a esperança. Era difícil entender. Mas elas sempre tiveram a esperança de que, um dia, a verdade viria à tona, que a justiça seria feita, que as mentiras não poderiam continuar sendo encobertas para sempre. Me dá alegria saber elas estavam certas, mas é triste que, depois de todos esses anos, tantas pessoas não vão ver isso acontecer”.
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Ordem de extradição por assassinato de padres jesuítas pode levar a mais prisões - Instituto Humanitas Unisinos - IHU