13 Novembro 2008
Em plena crise do petróleo, dentre outras tantas crises que vive o planeta, a Petrobras encontra a maior reserva do país, o que colocará o Brasil entre os dez maiores possuidores desse recurso natural no mundo. A camada de pré-sal tem cerca de 800 quilômetros e se estende de Florianópolis/SC até o sul da Bahia. Compreender como ela se formou e explorá-la hoje envolve especialistas das mais diferentes áreas, fazendo-nos refletir acerca da biogeografia e geodiversidade brasileira. A IHU On-Line entrevistou, por e-mail, o entomologista Claudio Carvalho e o geólogo Cássio Roberto da Silva justamente para tratar de questões como a formação da camada de sal, sobre as condições ecológicas do país e sobre os estudos acerca dos fatores climáticos e sua interferência no nosso meio ambiente.
O professor Claudio, ao falar da relação entre ciência e fé, nos diz que, cientificamente, a Bíblia pode ser considerada o primeiro livro de biogeografia, “pois indica um centro de origem de todas as espécies e um modo de dispersão deste centro de origem para lugares onde as espécies não ocorriam”. Já o professor Cássio nos conta que “a retirada do petróleo em águas profundas exige uma complexa tecnologia, devido ao ambiente em geral inóspito ao ser humano. Sendo que, nesse processo até a chegada no continente, oferece riscos ao meio ambiente e alguns acidentes têm ocorrido. Entretanto, esse é o preço que pagamos para o nosso bem-estar (chuveiro quente, combustível para o automóvel, fogão etc.)”.
Claudio José Barros de Carvalho é graduado em Ciências Biológicas, pelas Faculdades de Humanidades Pedro II, no Rio de Janeiro. Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), realizou mestrado e doutorado em Entomologia. É também pós-doutor pela The Natural History Museum, na Inglaterra. Atualmente, é professor na UFPR e presidente da Sociedade Brasileira de Entomologia, além de consultor da Sociedade Brasileira de Zoologia.
Cássio Roberto da Silva é graduado em Geologia e mestre, pelo Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo. Atualmente, é doutorando em Geologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É geólogo do Serviço Geológico do Brasil. Organizou o livro Geologia médica no Brasil (Rio de Janeiro: CPRM-Serviço Geológico do Brasil, 2006).
Confira as entrevistas.
Entrevista com Claudio José Barros de Carvalho
IHU On-Line – De que forma o estudo da biogeografia brasileira, ao longo de todos esses anos, contribui nas pesquisas para a exploração do pré-sal e, principalmente, na questão do uso que será dado a ele?
Claudio José Barros de Carvalho – A biogeografia é a ciência que estuda a distribuição geográfica dos seres vivos no espaço através do tempo. Esta definição é acurada, mas esconde uma complexidade de métodos e procedimentos que procura entender onde e como os organismos vivem no local onde ocorrem. No Brasil, os estudos biogeográficos foram incrementados nos últimos 50-60 anos com o conhecimento mais preciso da distribuição dos organismos e como este padrão poderia ser analisado e entendido. Foram e estão também sendo investigados processos que podem ter originado esses padrões. A camada do pré-sal foi formada há 150 milhões de anos com o início da fragmentação do Gondwana [1], supercontinente que se quebrou para a formação de diversos continentes atuais como a América do Sul, África, Antártica e Austrália. A melhor utilização do uso desta camada deve ser estudada por pesquisadores de outras áreas do conhecimento, como a Geologia, por exemplo.
IHU On-Line – Em sua opinião, que condições ecológicas vive o Brasil hoje?
Claudio José Barros de Carvalho – Esta pergunta é difícil de responder e com certeza poderia ser desenvolvida em livros e tratados. Biogeograficamente falando, estamos perdendo um grande número de espécies a cada ano pela destruição de grandes áreas. Isto é um fato palpável, mas pouco entendido e dimensionado biologicamente, ou melhor, biogeograficamente. Estão sendo perdidas espécies mesmo antes de conhecê-las. Sem pensar nas espécies introduzidas pelo homem, a ocorrência de qualquer organismo em qualquer lugar não se dá por acaso, isto é, fatores históricos e também ecológicos indicam esta localização. A biogeografia ensina que o espaço não é um conceito absoluto, mas relativo. Isto é, apenas faz sentido o espaço (ou área) se utilizar também a componente forma (a variação de todos os atributos dos organismos) e o tempo (como ele afetou a distribuição desses organismos). Por isso, temos de usar a história para entender a distribuição dos organismos no presente.
IHU On-Line – Quais as principais diferenças entre biogeografia e ecogeografia?
Claudio José Barros de Carvalho – A biogeografia pode ser dividida academicamente em dois grandes níveis, em termos de escala, padrão e processos envolvidos na formação desses padrões: o nível histórico estudado pela biogeografia histórica e o nível ecológico estudado pela biogeografia ecológica. Enquanto que no primeiro nível destaca-se o estudo do padrão de distribuição congruente de táxons distintos, o segundo destaca-se pelo padrão de distribuição individual dos organismos. Penso que qualquer ação integrativa de planejamento deve ser calçada nos conhecimentos destes dois níveis, tendo como objetivo a melhor utilização do ambiente.
IHU On-Line – De que forma os fatores climáticos atuais interferem na biogeografia brasileira?
Claudio José Barros de Carvalho – Já existem algoritmos genéticos para estimar a expansão e redução de áreas de distribuição de organismos. Sem entrar em detalhes se essas variações climáticas são decorrentes da ação humana ou natural, não podemos deixar de entender que as variações climáticas na Terra ocorrem há milhões e milhões de anos, desde que o mundo é mundo. A biogeografia histórica nos ensina a entender isto. Saber como estas variações climáticas ocorreram e como afetaram os organismos no passado nos dará subsídios para saber como afetará os organismos atualmente.
IHU On-Line – Qual a importância dos estudos que Alfred Russel Wallace [2] fez na Amazônia para a biogeografia brasileira?
Claudio José Barros de Carvalho – A viagem de Alfred Wallace, junto com seu amigo Henry Bates [3], à Amazônia, revolucionou a biogeografia, não apenas brasileira, mas também a mundial. Pela primeira vez, foi constatada a importância de conhecer a exata localização das espécies. Com ela, foi possível conceituar as áreas de endemismos da Amazônia, hipóteses que estão sendo refinadas deste então, mas que começaram com as viagens de Wallace pelos Rios Amazonas e Negro. A partir desses estudos, foi indicado como os grandes rios podem ser barreiras efetivas na distribuição das espécies, dando lugar mesmo ao entendimento de como toda a biota amazônica evoluiu. Esta foi a primeira explicação biogeográfica dos padrões de distribuições dos organismos amazônicos.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a relação das concepções religiosas como a biogeografia?
Claudio José Barros de Carvalho – Ciência e religião são áreas que normalmente atuam em lados diferentes. Uma é a razão (aceitação geral, métodos, ciência) a outra é a fé (aceitação pessoal, crença, religião). Cientificamente falando, a Bíblia é o primeiro livro de biogeografia, pois indica um centro de origem de todas as espécies e um modo de dispersão deste centro de origem para lugares onde as espécies não ocorriam. Esta visão foi repetida também na Arca de Noé e mesmo na concepção da Torre de Babel. Biogeograficamente, esta visão ficou conhecida como uma linha de pensamento chamada Biogeografia dispersionista onde a explicação de qualquer padrão de distribuição passava sempre por um local de origem e dispersão dos membros para outras áreas. Esta visão mudou apenas há 50 anos com a concepção da vicariância [4] onde a fragmentação da área podia também alterar/modificar os organismos que ocorriam nesta área. É sempre bom lembrar que, biogeograficamente, a área é um conceito relativo onde apenas faz sentido com os componentes de forma (a variação dos atributos dos organismos) e de tempo (como ele afetou a distribuição desses organismos).
Entrevista com Cássio Roberto da Silva
IHU On-Line – De que forma o estudo da geodiversidade brasileira, ao longo de todos esses anos, contribui nas pesquisas para a exploração do pré-sal e, principalmente, na questão do uso que será dado a ele?
Cássio Roberto da Silva – A geodiversidade compreende o estudo da natureza abiótica (meio físico), a qual é constituída por uma variedade de ambientes, composição, fenômenos e processos geológicos que dão origem às paisagens, rochas, minerais, águas, fósseis, solos, clima e outros depósitos superficiais, que propiciam o desenvolvimento da vida na Terra, tendo como valores intrínsecos a cultura, o estético, o econômico, o científico, o educativo e o turístico. Nesse estudo, tem-se a prospecção e a exploração do pré-sal e, neste caso, supõe-se que o seu uso seja efetivado em bases sustentáveis.
IHU On-Line – Em sua opinião, quais são as condições ecológicas do Brasil hoje?
Cássio Roberto da Silva – Certamente, as condições ecológicas atuais são bem melhores do que há 15 anos, antes da Rio 92 [5]. Ou seja, os cuidados com o meio ambiente têm avançado significativamente. Todas as empresas de grande e médio porte da mineração possuem o seu setor ambiental. Como exemplo, verifica-se que cerca de 80% das empresas de mineração de grande porte e 37% das de médio porte possuem a ISO 14000 [6], relativa à certificação ambiental de seus processos de extração de minérios. Todas as mineradoras de grande porte têm implantado o Sistema de Gestão Ambiental (SGA) e acerca de 75% as de médio porte.
IHU On-Line - O que acontece com o meio ambiente quando o petróleo é retirado? Qual é o ambiente propício para a formação do petróleo?
Cássio Roberto da Silva - A retirada do petróleo em águas profundas exige uma complexa tecnologia, devido ao ambiente em geral inóspito ao ser humano. Sendo que, nesse processo, até a chegada no continente, oferece riscos ao meio ambiente e alguns acidentes têm ocorrido. Entretanto, esse é o preço que pagamos para o nosso bem-estar (chuveiro quente, combustível para o automóvel, fogão etc.). O petróleo é formado há milhões de anos, precisando para tanto a rocha geradora (quantidade grande de material carbonoso e pressão e temperatura adequadas para transformar esse material em óleo e/ou gás) e a rocha reservatório, onde o óleo se acumula.
IHU On-Line - Para o senhor, o que significa, em relação à geologia brasileira, o descobrimento dessa quantidade de petróleo na costa brasileira?
Cássio Roberto da Silva - A geologia brasileira é riquíssima. Temos rochas com idade 3,6 milhões de anos até os dias atuais e registros de seres vivos desde 1,2 bilhões de anos. Também temos quantidades expressivas de metais metálicos, não-metálicos, industriais, radiativos, água mineral, rochas ornamentais, gemas, minerais preciosos e materiais para a construção civil. E mais: possuímos uma imensa quantidade de águas nas bacias hidrográficas e de águas subterrâneas (como o aqüífero Guarani). As paisagens são originadas por processos geológicos. Também o nosso país é privilegiado nesse sentido, as quais atualmente vêm sendo muito difundidas através do geoturismo.
Sem sombra de dúvida, essa quantidade de petróleo é uma dádiva para o povo brasileiro. Se considerarmos que este bem mineral é a nossa principal matriz energética, poderemos dar um grande passo para nos tornarmos uma rica nação, a qual espero que tenha o mínimo de diferenças sociais. Aqui devemos registrar a competência e insistência do quadro de geólogos da Petrobras, que levaram a empresa a ser reconhecida mundialmente e agora também contribuindo para a melhoria do nosso país.
IHU On-Line - De que forma os fatores climáticos atuais interferiram na geodiversidade brasileira?
Cássio Roberto da Silva - Apesar das críticas ao modelo do IPCC por não considerar os dados das ciências da Terra e estabelecer cenários que suscitam algumas dúvidas, a intervenção do homem no meio ambiente é notória e, assim, no Brasil, deve-se já ir pensando na adaptação com vistas a se adequar aos impactos causados pela mudança global do clima, por meio da formulação e implementação de um conjunto de estratégias setoriais. Essa adequação se baseia na identificação da vulnerabilidade dos biomas brasileiros ao aumento da concentração de gases de efeito estufa e dos impactos decorrentes na sociedade brasileira, particularmente nas áreas de zonas costeiras, saúde, biodiversidade, agropecuária, florestas, recursos hídricos e energia. O aumento populacional no planeta não condiz com o aumento na demanda por recursos hídricos e energia, sendo que essa tem aumentado nos últimos 70 anos, três vezes mais do que a população. Há necessidade de mudança de hábitos de consumo, ou seja, mudança de paradigmas. A gestão dos recursos hídricos, uso racional de energia e o planejamento do desenvolvimento, principalmente o urbano, são estratégias para essa mudança.
Notas:
[1] O supercontinente do sul Gondwana incluía a maior parte das zonas de terra firme que hoje constituem os continentes do Hemisfério Sul, incluindo a Antártida, América do Sul, África, Madagáscar, Seychelles, Índia, Austrália, Nova Guiné, Nova Zelândia, e Nova Caledónia. Foi formado durante o período Jurássico Superior há cerca de 200 milhões de anos atrás, pela separação do Pangea. Os outros continentes, nessa altura a América do Norte e Euroásia, ainda estavam ligados, formando o super continente de Laurásia.
[2] Alfred Russel Wallace foi um naturalista, geógrafo, antropólogo e biólogo britânico. 1858, durante uma jornada de pesquisa nas ilhas Molucas, Indonésia, Wallace escreveu um ensaio no qual praticamente definia as bases da teoria da evolução e enviou-o a Charles Darwin, com quem mantinha correspondência. Wallace foi o primeiro a propor uma "geografia" das espécies animais e, como tal, é considerado um dos precursores da ecologia e da biogeografia e, por vezes, chamado de "Pai da Biogeografia”. Em 1848, Wallace e Henry Bates partiram para o Brasil com a intenção de coletar insetos e outros espécimes animais na floresta amazônica e vendê-los à colecionadores na Inglaterra. Também esperavam juntar evidências da transmutação das espécies.
[3] Henry Walter Bates foi um entomólogo e naturalista inglês. Ficou famoso por sua viagem à Amazônia, junto com Alfred Russel Wallace, com o objetivo de recolher material zoológico e botânico para o Museu de História Natural de Londres. Permaneceu no Brasil durante onze anos, enviando cerca de 14.712 espécies (8000 delas novas), a maior parte insetos para a Inglaterra.
[4] Vicariância é o mecanismo evolutivo no qual ocorre uma fragmentação de uma área biótica, separando populações de determinadas espécies. A falta de fluxo génico entre as duas sub-populações agora formadas fará com que elas fiquem cada vez mais diferentes e, mantendo-se a barreira por tempo suficiente, levará à especiação. Estas barreiras podem ser geográficas, como a formação de montanhas devido ao movimento de placas tectônicas, uma falha causada pelo distanciamento de duas placas, o surgimento de um rio etc. As barreiras também podem ser ecológicas, como quando a área entre duas populações torna-se imprópria para a reprodução da espécie. Em ambientes aquáticos, elevações rochosas nos fundos de oceanos podem separar populações de uma mesma espécie que se manterão isoladas, sofrendo todo o processo de diferenciação génica separadamente.
[5] A Rio-92 é o nome pelo qual é mais conhecida a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento realizada em junho de 1992 no Rio de Janeiro. O seu objetivo principal era buscar meios de conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a conservação e proteção dos ecossistemas da Terra. Essa conferência consagrou o conceito de desenvolvimento sustentável e contribuiu para a mais ampla conscientização de que os danos ao meio ambiente eram majoritariamente de responsabilidade dos países desenvolvidos. Reconheceu-se, ao mesmo tempo, a necessidade de os países em desenvolvimento receberem apoio financeiro e tecnológico para avançarem na direção do desenvolvimento sustentável.
[6] ISO 14000 é uma série de normas desenvolvidas pela International Organization for Standardization (ISO) e que estabelecem diretrizes sobre a área de gestão ambiental dentro de empresas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A cara do Brasil: um olhar da biogeografia e da geologia do país. Entrevista especial com Claudio Carvalho e Cássio Roberto da Silva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU