06 Janeiro 2008
"Soa demagógica e no fundo falsa a alternativa colocada publicamente pelo Presidente: entre o bispo e os 12 milhões de nordestinos sedentos eu, Presidente, fico do lado dos 12 milhões. A alternativa é outra: entre o agronegócio e os 34 milhões de sedentos que podem ser atendidos, o bispo fica do lado dos 34 milhões", afirma Leonardo Boff, teólogo, comentando a greve de fome de D. Frei Luiz Flávio Cappio, em artigo publicado no Jornal do Brasil, 25-12-2007. Segundo o teólogo, "o governo foi autoritário, pouco democrático e republicano".
Eis o artigo.
"A liberação das obras de transposição das águas do Rio São Francisco pelo Supremo Tribunal Federal e a suspensão do jejum do Bispo dom Luiz Flávio Cappio aparentemente produziu calmaria na discussão acerca deste megaprojeto. Mas ela seguramente continuará. O jejum e as orações do bispo não foram totalmente em vão. Sobre 8 pontos apresentados ao Planalto pelo bispo e seu grupo de apoio, 6 foram acolhidos, o que facilitou sua tomada de decisão.
Estimo que a atriz Letícia Sabatella que sempre apoiou a causa do bispo, indo ao local do jejum, interpretou o sentimento de muitos, em sua resposta à carta aberta ao deputado Ciro Gomes, publicada em O Globo do dia 21 de dezembro:”no dia 19 de dezembro de 2007, o que presenciei na Praça dos Três Poderes, em Brasília, foi a insensibilidade dos Poder Judiciário, a instransigência do Poder Executivo e a omissão do Congresso Nacional”.
Há um transfundo nesta questão que ficou ocultado no debate e que deve ser explicitado. Ninguém é contra levar água aos sedentos do semi-árido, muito menos o bispo que, livremente, há 30 anos optou viver entre os mais pobres dos pobres, ribeirinhos, quilombolas, indígenas e camponeses. Ele conhece como poucos os problemas do semi-árido e as alternativas de convivência com ele, maduradas pelos movimentos sociais da bacia do rio e apoiadas pelos estudos de notáveis pesquisadores da área. O que ele questiona é o modo como isso vem sendo conduzido.
Por detrás de tudo estão duas visões de mundo e de política que se confrontam.
O governo busca o grande, um crescimento que atende primeiramente os interesses de grupos do agronegócio e das indústrias e em seguida as necessidades do povo sofredor, o que configura falta de equidade. Os dados falam por si: 70% da água deve ser destinada a projetos de irrigação, 26% para abastecimento urbano e 4% para populações rurais do semi-árido. Esta posição é chamada de modernização conservadora, teórica e práticamente superada.
O bispo dom Capppio encarna o pequeno, com uma postura ética que visa a dar centralidade ao social especialmente àquelas populações que sempre foram preteridas pelas políticas públicas. Apoia os projetos que sejam amplamente inclusivos e que preservem o patrimônio social, cultural e ecológico da bacia do rio São Francisco.
Esses projetos existem. A Agência Nacional de Águas (ANA) no seu Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Agua mostrou que o projeto do governo custaria R$ 6,6 bilhões, atenderia apenas a quatro Estados e beneficiaria 12 milhões de pessoas de 391 municípios. Enquanto o projeto alternativo da ANA custaria 3,3 bilhões, atingiria nove Estados e beneficiaria 34 milhões de pessoas de 1356 municípios. Existe ainda o projeto da Articulação do Semi-Arido (ASA) que prevê a construção de um milhão de cisternas, sendo que 220 mil já foram construidas com o apoio de 800 entidades e também do Governo que a partir de setembro deste ano retirou sua contribuição.
Por que o governo não levou à discussão estes projetos alternativos? Eles são muito mais baratos e mais includentes. Essa desconsideração levou o bispo ao jejum de protesto. Suspeitamos, pois esta é a lógica de nosso estado, historicamente refém dos interesses de poucos, que subjacentes estejam volumosos capitais, grandes empreiteiras e aqueles industriais ligados ao comércio de exportação que teriam vergado o governo para o seu lado.
Por isso soa demagógica e no fundo falsa a alternativa colocada publicamente pelo Presidente: entre o bispo e os 12 milhões de nordestinos sedentos eu, Presidente, fico do lado dos 12 milhões. A alternativa é outra: entre o agronegócio e os 34 milhões de sedentos que podem ser atendidos, o bispo fica do lado dos 34 milhões.
Esta é a questão de fundo que mereceria ampla discussão pública, profunda discussão no Parlamento e eventualmente um plebiscito por envolver vários estados e um grande símbolo nacional que é o Velho Chico.
Neste ponto o governo foi autoritário, pouco democrático e republicano negando-se a este percurso.
O bispo dom Cappio com seu jejum quis chamar atenção para esta questão ocultada nas iniciativas do governo. E o fez de forma consciente e serena, pois é um franciscano de eminente santidade pessoal que associou sua vida e destino àqueles que injustamente menos vida tém e que são condenados a morrer antes do tempo. Os projetos devem servir às pessoas e não as pessoas aos projetos.
Para ler mais:
`Dai a César o que é de César...` Fé e Política em discussão. Artigo de Luiz Alberto Gómez de Souza
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O que está em jogo entre dom Cappio e o Governo? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU