18 Outubro 2008
“Os escritos de Marx nos permitem entender que o desenvolvimento capitalista é o caminho para a destruição da própria humanidade”, assegura Paulo Nakatani, economista e presidente da Sociedade Brasileira de Economia Política - SEP. Na entrevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele afirma que a atual crise pode gerar conseqüências ainda mais negativas, principalmente para o mundo do trabalho. No contexto em que aparentemente há uma redução das desigualdades sociais e da miséria, a precarização do trabalho tende a aumentar com “a elevação da taxa de exploração do trabalho pela maior intensidade do trabalho, a super-exploração de trabalhadores da periferia do sistema pela deslocalização das firmas e pelo aumento da extensão da jornada de trabalho”, aponta o pesquisador. Além de estar “em guerra quase permanentemente em algum lugar do planeta, há décadas”, a crise do capitalismo ainda vai “destruir ferozmente uma massa gigantesca de recursos naturais”, afirma.
Formado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Paraná - UFPR, Nakatani cursou mestrado na Université de Paris X, doutorado na Université de Picardie e pós-doutorado na Université de Paris XIII. Membro do conselho editorial da Revista de Economia Critica, Nakatani também é professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). O pesquisador é responsável pela organização do livro Crise ou regulação. Ensaios sobre a teoria da regulação (Vitória: Editora da Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1994).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Por que hoje muitos retomam Marx como o centro das atenções no debate sobre a crise financeira internacional? Em que sentido as teorias marxistas contribuem para compreendermos a crise no sistema financeiro?
Paulo Nakatani – Como nenhuma das correntes da teoria econômica burguesa tem resposta para as crises econômicas ou suas respostas são insuficientes, alguns economistas e cientistas sociais tentam encontrar em Marx respostas para a crise financeira atual. Outros o fazem por oportunismo. O que chamo de teoria econômica burguesa é constituída por todas as correntes derivadas do neoclassicismo e inclusive os keynesianos e pós-keynesianos. Todas elas defendem o capitalismo e não vislumbram nenhuma saída para a crise fora do modo de produção capitalista.
Clássicos econômicos ainda podem explicar as crise?
Um dos fundamentos da teoria neoclássica é o equilíbrio. Portanto, não pode haver crise, a não ser por fatores externos. Quer dizer, a “culpa” é sempre dos outros, nunca do capital. São estes economistas, naturalmente junto com políticos no poder, escolas, meios de comunicação etc. que capitanearam as idéias, proposições e políticas econômicas chamadas de neoliberais que nos conduziram à situação atual. Eles estão incrustados em todos os níveis e esferas da economia e do Estado, defendendo essas idéias, sugerindo as atuais medidas de intervenção e agravando ainda mais a crise do capital.
Os keynesianos e pós-keynesianos acreditam, em maior ou menor grau, que o capitalismo pode ser regulado pelas intervenções do Estado. O principal equívoco deles, nesse caso, é que eles consideram que o Estado e o Mercado são instituições distintas e que uma pode intervir ou interferir na outra. Ao contrário das teorias marxistas do Estado, nas quais a sociedade capitalista é uma totalidade contraditória em sua própria natureza.
Em síntese, a busca ou o retorno a Marx é a necessidade que alguns têm de compreender a natureza da crise. Isso porque Marx demonstrou há mais de um século que o capitalismo é uma forma de organização da sociedade que traz em si mesma as crises periódicas. Ou seja, a crise faz parte do modo de existência da sociedade e do modo de produção capitalista.
Além disso, Marx é o teórico que estabeleceu os fundamentos que considero mais adequados para a compreensão das crises financeiras, infelizmente no livro III de O capital, que poucos marxistas leram com atenção. Nessa parte de O capital, ele desvenda todos os mecanismos da esfera financeira e como a expansão dessa esfera produz os fundamentos de uma crise financeira capitalista. Naturalmente, em razão das condições do desenvolvimento do capitalismo no século XIX, há ainda muita coisa a desenvolver a partir dos fundamentos teóricos que Marx apresentou. A categoria teórica fundamental é a do capital fictício, presente nos dias de hoje na gigantesca dívida pública, no enorme crescimento do valor acionário das empresas e no monumental volume de crédito criado pelas instituições financeiras.
IHU On-Line - Em que sentido Marx pode ser visto como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista?
Paulo Nakatani – Para Marx, o desenvolvimento capitalista é o desenvolvimento da sua contradição fundamental entre as forças produtivas e das relações de produção. Vivemos hoje uma época em que as forças produtivas desenvolvidas pelo capital permitiriam a supressão da miséria, da fome, das desigualdades etc. Mas as relações capitalistas de produção, ou seja, a apropriação privada da riqueza produzida impede a organização de uma forma de sociedade mais eqüitativa e igualitária. É exatamente essa contradição, entre produção e apropriação da riqueza que está se manifestando através da crise financeira.
Além disso, o desenvolvimento do modo de produção capitalista é extremamente predador tanto da força de trabalho quanto da natureza. Os escritos de Marx nos permitem entender que o desenvolvimento capitalista é o caminho para a destruição da própria humanidade. Por exemplo, o padrão de consumo atual, criado pelo capital, é inviável no longo prazo. Ele só é possível nos dias de hoje, porque é restrito a apenas 20% da população mundial.
IHU On-Line – A crise atual pode alterar o valor trabalho?
Paulo Nakatani – A crise atual não altera em nada a teoria do valor trabalho. A riqueza capitalista continua sendo, e continuará enquanto o modo de produção capitalista for dominante, baseada na exploração do trabalho. O que a crise pode alterar, como ocorreu nas crises anteriores, é a elevação da taxa de exploração do trabalho pela maior intensidade do trabalho, a super-exploração de trabalhadores da periferia do sistema pela deslocalização das firmas e pelo aumento da extensão da jornada de trabalho. Junto a isso podemos acrescentar a precarização do trabalho. Por exemplo, antes desse pico de desvalorização do capital fictício nas bolsas, os ministros do trabalho da União Européia já haviam decidido implementar em seus respectivos países uma jornada de trabalho de até 65 horas semanais. Isso é um indicador de que o que Marx definiu como aumento da taxa de exploração através da mais-valia relativa está encontrando alguns limites e, portanto, é necessário aumentá-la através da forma absoluta de exploração da força de trabalho, um retorno aos séculos XVIII e XIX, com toda a propalada ideologia da economia do conhecimento, das novas tecnologias, das tecnologias de informação e comunicação etc.
IHU On-Line - Em que sentido Marx nos ajuda a entender as profundas contradições do mundo atual no que se refere às crises econômicas e mundo do trabalho?
Paulo Nakatani – Para Marx, as crises capitalistas decorrem do excesso de produção, ao contrário das crises pré-capitalistas, quando ocorriam devido às insuficiências na produção. Em última instância, a crise capitalista é o resultado do excesso de produção de capital e de bens de consumo. Assim, mesmo que haja milhões de pessoas morrendo de fome há superprodução, porque as pessoas não dispõem de renda para comprar. Paralelamente, o excesso de capital acumulado, não encontrando espaços de acumulação na esfera real, onde se produz mercadorias para atender as necessidades humanas, dirige-se à esfera financeira. Essa, parafraseando Marx, aparentemente “cria dinheiro como uma pereira produz peras”. Só que o dinheiro no capitalismo contemporâneo é muito mais complexo do que na época de Marx, mas ele já havia avançado no livro III de O capital todos os elementos para sua compreensão. O dinheiro hoje é dinheiro de crédito e como crédito é, em sua essência, capital portador de juros.
Em relação ao chamado “mundo do trabalho”, não é exatamente uma categoria marxista. Pode-se dizer que é uma expressão criada pela corrente pós-moderna para escapar da categoria proletariado, que acabou sendo adotada por muito marxistas e costumamos utilizá-la correntemente. Essa é uma discussão mais complexa, na qual o ponto principal é a perda do proletariado em seu papel de principal protagonista na luta de classes e da revolução.
O que posso dizer nesse curto espaço é que o trabalho sempre foi e continua sendo uma categoria fundamental do marxismo e da realidade da exploração capitalista. As mudanças ocorridas na esfera da produção com a introdução de novas máquinas, comandadas por computador, e novas formas de organização do trabalho não mudaram significativamente as relações entre capital e trabalho e a exploração dos trabalhadores. O que aconteceu é que essas transformações ocorridas na esfera produtiva aumentaram aceleradamente a taxa de exploração da força de trabalho, precarizaram o trabalho produtivo e ampliaram as atividades além do que era realizado pelos operários industriais. Esses foram freqüentemente confundidos com o proletariado, ou seja, esta categoria é muito mais ampla do que a do operariado industrial.
IHU On-Line - A crise financeira internacional já atingiu a economia real? Que transformações podem ocorrer na economia brasileira caso a crise persista?
Paulo Nakatani – A crise financeira é só a manifestação da crise da sociedade capitalista. Ela só ocupou o centro das atenções porque está destruindo vorazmente uma massa enorme de capital fictício e levando à falência muitos capitalistas.
A crise do capitalismo já está presente na esfera real há muito tempo. Ela já produziu bilhões de seres humanos que devem viver abaixo da linha da pobreza e da miséria, destruiu ferozmente uma massa gigantesca de recursos naturais e está em guerra quase permanente, em algum lugar do planeta, há décadas.
Risco Brasil
Em termos mais específicos, a crise financeira já atingiu a produção e o emprego tanto na Europa quanto nos Estados Unidos e Japão. Ou seja, o desemprego está crescendo e a produção diminuindo. O mesmo está ocorrendo no Brasil, com um agravante que é a pressão sobre a inflação decorrente da acelerada desvalorização cambial ocorrida entre setembro e outubro.
Caso ela continue dessa forma por mais tempo, a vulnerabilidade externa tenderá a crescer e as reservas internacionais não serão suficientes para evitar uma maior desvalorização do real e novas pressões inflacionárias. Um aspecto positivo é que a queda no índice da bolsa está desvalorizando os ativos financeiros dos capitalistas estrangeiros que possuíam mais de US$ 230 bilhões em carteira na BMF-BOVESPA no final de agosto.
Além disso, as indústrias brasileiras que dependem de insumos importados já programaram férias coletivas para seus operários, os produtos importados já aumentaram de preço, e todas as estimativas apontam para uma queda no crescimento do PIB.
No curto prazo, não deverá ocorrer nenhuma grande transformação, e como sempre os trabalhadores serão os mais penalizados na medida em que as perdas dos capitalistas serão pagas pelos trabalhadores, através do Estado, como está ocorrendo nos países do centro do capitalismo. A política econômica do Governo Lula privilegia há muito tempo os capitalistas e especuladores internacionais e não deve ser agora que irá ser mudada.
No longo prazo não é possível ter nenhuma avaliação, tudo vai depender do desenrolar da crise e do papel dos movimentos sociais. Refiro-me aos movimentos sociais porque os maiores e principais partidos de esquerda no Brasil abandonaram a luta pelo socialismo e aderiram de uma forma ou de outra à ideologia neoliberal. Isso não exclui a possibilidade de algum partido, ainda pequeno, possa assumir a liderança e fazer avançar a luta pelo socialismo.
IHU On-Line - Quais as principais transformações que o capitalismo neoliberal provocou na estrutura de classes da sociedade brasileira? Que projeções podemos vislumbrar para o futuro, levando em consideração o atual momento financeiro?
Paulo Nakatani – A estrutura de classes não foi fundamentalmente modificada pelo neoliberalismo. As novas tecnologias e formas de organização da produção foram muito mais importantes para as modificações no seio dos trabalhadores assalariados. As técnicas de organização da produção introduzidas desde os anos 1970 transferiram para o próprio trabalhador a tarefa de controlar e vigiar a si próprio e a seus colegas de trabalho, permitindo aos capitalistas suprimirem as funções de vigia e controle da produção, como ocorria no período dominado pela organização fordista/taylorista.
Assim, sua manifestação concreta atual aparece muito mais complexa e diversificada. Por isso, o projeto neoliberal conseguiu dividir cada vez mais a classe trabalhadora, na qual cada fração acaba enfrentando-se contra outra, beneficiando ao capital em detrimento dos trabalhadores. Por essas razões, qualquer projeção sobre o futuro é muito arriscada. Eu espero que as condições objetivas permitam que os movimentos sociais e os partidos revolucionários avancem na luta de classes e conduzam a uma transformação revolucionária da sociedade brasileira.
IHU On-Line - Em que medida a interferência do Estado pode evitar colapsos como este que está abalando o sistema financeiro?
Paulo Nakatani – O ponto de vista dos reformistas e sociais democratas é que é possível que o Estado possa regular o capital e transformar o capitalismo em uma sociedade menos desigual e mais justa. Do ponto de vista do marxismo, isso não é possível. Somente uma revolução poderá fundar as bases para a construção de uma nova forma de sociedade mais justa, igualitária e solidária.
A intervenção do Estado tem como limite as leis próprias à acumulação do capital. Assim, o Estado não pode suprimir as crises do capital, mas pode acelerar ou amenizar seus efeitos estendendo-a no tempo. Mais ainda, o desenvolvimento das contradições internas do próprio capital não permite mais que a ação do Estado possa vir a gerar um novo ciclo virtuoso de expansão da economia mundial. O que ainda pode ocorrer são períodos de expansão limitados no tempo e em algumas regiões particulares. É o que alguns autores, como Samir Amin (1) e Jorge Beinstein (2), chamaram de fase de senilidade do capitalismo.
IHU On-Line - O senhor acredita que a atual crise irá suscitar uma renovação política mundial? Em que sentido o senhor vislumbra mudanças?
Paulo Nakatani – Eu não acredito em qualquer mudança significativa nessas elites políticas e econômicas, nem vislumbro nenhuma mudança em suas políticas, projetos, propostas e soluções. Eles têm necessariamente que agir em função das necessidades de reprodução do capital. Além disso, as condições objetivas da crise capitalista exigem que eles se mantenham como são, pois as tentativas de reforma do capital encontram suas barreiras na própria crise do capital.
Segundo Marx, os processos históricos não ocorrem de forma espontânea e em uma seqüência definida, como muitos acreditavam. A construção de uma nova sociedade só pode ocorrer quando a classe trabalhadora assumir a tarefa de efetuar essa construção. Os caminhos desse processo não estão pré-determinados, será um processo de busca de alternativas, com erros e acertos, onde todo o poder deve ser exercido pela maioria da população organizada de forma mais democrática possível.
Nesse sentido, considero que alguns países latino-americanos estão, nesse momento, na vanguarda dos processos de enfrentamento ao capital e aos imperialismos norte-americano e europeu. Refiro-me em particular à Cuba, Venezuela, Bolívia e ao Equador. Nos três últimos países, a luta de classes apresenta-se de forma mais aberta e aguda nos quais se observa a interferência direta dos interesses imperialistas associados às burguesias nacionais. A maior novidade nesses países é que os trabalhadores organizados estão assumindo o poder do Estado capitalista para efetuar a revolução socialista e nesse sentido, a crise financeira é um momento em que esses países podem avançar ainda mais seus processos de transformação.
Notas
1.- Samir Amin (1931): economista egípcio neo-marxisita. Realizou estudos sobre política, estatística e economia, em Paris. Entre 1960 e 1963, atuou como conselheiro do governo de Mali, e em 1970 foi diretor do Instituto Africano de Desenvolvimento Econômico e Planejamento, em Dakar, Senegal. Atualmente, é diretor do Fórum do Terceiro Mundo, uma associação internacional formada por intelectuais da África, Ásia e América Latina, também localizada em Dakar.
2.- Jorge Beinstein: economista e professor de Economia da Universidade de Buenos Aires.
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A crise financeira é a manifestação da crise da sociedade capitalista. Entrevista especial com Paulo Nakatani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU