12 Dezembro 2011
O Brasil precisa enfrentar a crise internacional dinamizando o seu mercado interno, distribuindo renda e baixando os juros. A visão é do economista Pierre Salama, 69, professor emérito da Universidade de Paris 13. Doutor pela Sorbonne, ele se considera um "brasileiro de coração". Trabalhou com Celso Furtado em Paris. Na sua avaliação, o país vive um processo de desindustrialização precoce e é necessário adotar medidas protecionistas, temporárias e específicas, em relação à China.
Autor de 16 livros, a maioria traduzida para o português, ele analisa a crise europeia e advoga que a sua solução passa pelo abandono parcial da soberania dos Estados. Mas que é preciso garantir a democracia nas decisões.
A entrevista é de Pierre Salama e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, 12-12-2011.
Eis a entrevista.
Como o sr. caracteriza a atual crise financeira no mundo e na Europa?
Ao contrário da crise dos anos 1930, essa não é uma crise sobre investimento nos países avançados, mas uma crise financeira provocada pela desregulamentação selvagem nos mercados. A crise financeira começou por uma crise de dívidas privadas. Os bancos pararam de emprestar uns aos outros e restringiram fortemente os seus empréstimos. As empresas não financeiras enfrentam uma crescente escassez de liquidez. O "credit crunch" transforma a crise financeira em crise econômica. A crise vira sistêmica e afeta até as empresas que tiveram uma gestão prudente, longe da manipulação lucrativa dos derivativos.
E o papel dos Estados?
A intervenção do Estado para salvar o sistema bancário levou ao aumento das dívidas públicas. Não foi apenas a ajuda do Estado ao sistema financeiro que provocou o crescimento do endividamento público. Houve uma contrarrevolução fiscal, iniciada nos anos 1980, visando diminuir a carga fiscal e as receitas. Isso acentuou a regressividade do sistema e produziu uma dupla desigualdade: a) entre os salários e b) entre os salários e os rendimentos de capital. Houve queda das receitas fiscais e há dificuldade de redução das despesas públicas, particularmente das de proteção social. Houve aumento de algumas despesas públicas, como as relativas à ajuda aos desempregados e às empresas em dificuldade. Houve aumento das taxas de juros causado por spreads maiores. Isso provocou a elevação das despesas públicas por causa do serviço da dívida. A esses fatores se soma a ajuda em massa ao sistema bancário.
O que deveria ser feito?
Sem abandono parcial da soberania dos Estados que compõem a eurozona, a moeda única está condenada. A crise da dívida soberana produziu de fato um governo franco-alemão na eurozona. Mas está sendo implementado um federalismo da pior maneira. Em nome da urgência, ele não respeita o jogo democrático. Dirigentes políticos são convocados, e a eles são ditadas as políticas econômicas a serem seguidas. Ultimatos são dados em caso de recusa. Há temor de que o jogo democrático seja exercido na sua plenitude. Os mercados financeiros buscam substituir as vontades das urnas e começam a conseguir isso. Federalismo e democracia podem ser um oxímoro se as decisões continuarem a ser tomadas por um diretório autoproclamado composto pela Alemanha e pela França. A primeira se utiliza da segunda para legitimar o seu poder, a segunda se serve da primeira para evitar uma crise financeira. É necessário um abandono parcial de soberania e as decisões políticas precisam ser tomadas democraticamente.
Qual o futuro do euro?
Uma zona monetária não pode funcionar a longo prazo se não adotar um banco central e um governo que tome as decisões mais importantes. A eurozona não pode funcionar apenas com uma política monetária comum. A única maneira de evitar o fim do euro é consolidar as dívidas dos diferentes Estados e emitir eurobônus, o que exige uma coordenação das políticas fiscais e um abandono parcial de soberania, fazendo com que o Banco Central Europeu seja o avalista de última instância. Sem essa revolução, os Estados mais frágeis continuarão a pagar taxas de juros muito elevadas, tornando impossível o pagamento do serviço das suas dívidas. O acordo que consagra as posições da Alemanha, recusa a emissão de eurobônus e fornece controles e sanções sobre as políticas orçamentárias é insuficiente para viabilizar as condições da zona do euro a longo prazo. Mas esse acordo poderá acalmar os mercados. Até quando?
Qual deve ser o impacto dessa crise no Brasil?
A crise atual ocorre num contexto específico: o da desindustrialização. Na Ásia, crescem o peso da indústria no PIB, o valor adicionado dos bens produzidos e o seu grau de sofisticação. No Brasil, o peso da indústria decresce de maneira relativa e o valor agregado dos produtos cai. O déficit comercial da indústria de transformação cresce, particularmente para os bens de conteúdo tecnológico médio e elevado. O Brasil triplicou o comércio com a China, mas a troca é assimétrica. A China exporta essencialmente produtos manufaturados para o Brasil e compra matérias primas. O crescimento elevado da China puxa em parte o Brasil
O Brasil está frágil?
Com o grau elevado de abertura e o comércio cada vez mais assimétrico, o início da desindustrialização deixa muito frágil a economia brasileira em relação ao mundo. A ampliação da crise terá repercussões na economia chinesa e pode causar o contágio da brasileira. As reservas em divisas não são suficientes para resistir a fugas e, diferentemente do que na China, elas não são constituídas essencialmente por excedentes da balança comercial, mas por entradas de capital. Assim, uma parte importante se caracteriza pela sua volatilidade.
Como explicar a parada do PIB?
A desaceleração começou desde o fim de 2010 e é mais forte do que a prevista. O Brasil vive uma desindustrialização precoce e um saldo negativo na sua balança comercial de produtos da indústria de transformação. Os gastos para melhorar a infraestrutura estão abaixo do necessário e a taxa de investimento se mantém desesperadamente modesta, 19% do PIB, especialmente se comparada à da China (46%) e outros países asiáticos (em torno de 30%). A vulnerabilidade do Brasil é menor que a do passado. Mas menor vulnerabilidade não significa menor fragilidade. As repercussões de uma crise nas economias avançadas podem ser elevadas. O Brasil pratica uma política de austeridade que pesa sobre sua taxa de crescimento. Tem mantido altas taxas de juros, embora tenham sido atenuadas. Tem tentado corrigir as políticas de valorização da moeda. Mas é insuficiente em razão da abundância de dólares.
O que o país deveria fazer sobre o mercado interno?
Para enfrentar a ameaça da crise internacional, o Brasil deveria redinamizar seu mercado interno, como fez o presidente Lula no seu segundo mandato. Isso exige uma redução das taxas de juros, uma depreciação da moeda, uma redistribuição de renda não somente limitada aos extremamente pobres. E medidas protecionistas, direcionadas e temporárias, especialmente em relação à China. O perigo principal hoje não é tanto uma retomada da inflação, mas a aceleração da queda do PIB.
Qual deve ser a estratégia para enfrentar a crise?
Uma política econômica eficaz deve buscar a retomada do crescimento, uma distribuição de renda menos injusta e uma inserção internacional mais positiva. O crescimento não tem sido muito elevado no médio prazo no Brasil e veio acompanhado por uma desindustrialização precoce.
A distribuição de renda é menos desigual graças principalmente ao aumento do salário mínimo, mas as desigualdades continuam num nível extremamente elevado. A inserção internacional do Brasil não é muito positiva. A exceção é o setor aeronáutico. As exportações de produtos industriais do Brasil são sobretudo de produtos de baixa tecnologia para os quais a demanda internacional não é muito dinâmica.
O que o sr. propõe?
Uma política econômica eficaz deve reforçar o dinamismo do mercado interno. Isso pode ser feito criando facilidades de crédito a famílias.
E com distribuição de renda e uma reforma tributária. Além disso, é preciso ampliar os gastos com pesquisa e desenvolvimento para dinamizar as exportações de produtos de tecnologia.
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Contra crise, Brasil deve dinamizar seu mercado. Entrevista com Pierre Salama - Instituto Humanitas Unisinos - IHU