04 Mai 2011
Apesar dos estereótipos segundo os quais a espécie humana fez a si mesmo lutando contra as hostilidades da natureza, pesquisas mais recentes revelam que a longa convivência dos humanos com as outras espécies teve consequências profundas sobre a construção da dimensão antropológica.
A análise é de Roberto Marchesini, estudioso de ciências biológicas e de epistemologia, escritor e ensaísta, que já publicou vários artigos e pesquisas sobre o relacionamento entre humanos e animais nas aplicações didáticas. É presidente da Sociedade Italiana das Ciências Comportamentais Aplicadas e diretor da Scuola di Interazione Uomo Animale. O artigo foi publicado no jornal Il Manifesto, 24-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
A domesticação constitui um dos fundamentos da história da humanidade, embora, hoje, ela seja muitas vezes representada como um evento mítico, realizado de modo autárquico, segundo a iconografia autocelebrativa de um homem que se fez por si mesmo, lutando contra uma natureza hostil. Na realidade, essa leitura é incorreta, especialmente se considerarmos que, com base nas últimas pesquisas paleontológicas e de biologia molecular, foi preciso retrodatar a domesticação do cão para além do fatídico limite dos 50 mil anos atrás.
Práticas de maternagem
Nas brumas do Paleolítico, o homem, ainda coletor nômade, já estava acompanhado pelo cachorro nas suas migrações, e isso 40 mil anos antes da revolução do Neolítico: um dado que nos faz compreender como se deve falar, mais do que de cativeiro, de um processo de aproximação recíproca que transformou a nossa espécie, além de ter extraído o cão do complexo genótipo do lobo.
Hominídeos e lobos compartilhavam o mesmo ambiente, tinham a mesma colocação ecológica, se assemelhavam na organização social: todos esses requisitos (que inevitavelmente facilitaram os encontros e as sobreposições – e indubitavelmente também situações de confronto) levam a pensar que, antes da domesticação, havia uma longa convivência. Uma frequentação que, se de um lado aproximou o lobo aos costumes humanos, criando as premissas para a domesticação, como descobriu Raymond Coppinger, de outro também modificou profundamente os usos e os costumes dos nossos antepassados.
Esse é talvez o aspecto mais interessante destacado pela zooantropologia, disciplina que estuda os empréstimos das outras espécies na construção da dimensão antropológica. De fato, não é possível pensar nos predicados que caracterizam a identidade humana – da música à dança, da moda à tecnologia – como qualidades autofundadas. Demócrito, além disso, já salientou que o homem tinha aprendido grande parte das suas artes observando os animais e imitando suas atividades. Não por acaso todas as mitologias falam de homens adotados por lobos, um fato do qual podemos deduzir que até a licantropia – ou seja, o mestiçamento com o lobo – não desenvolveu um papel secundário nessa abertura do horizonte humano.
Certamente, a adoção de um filhote de lobo, um evento que foi verificado diversas vezes e em áreas geográficas diferentes, como Konrad Lorenz já intuía, significou um salto qualitativo. Com o ingresso efetivo do lobo no grupo humano, as crianças aprendem estilos comportamentais não humanos, dando vida a uma hibridização muito mais profunda e articulada. Resta entender por que essa adoção aconteceu. Mas, estudando as práticas de criação ainda em voga em algumas culturas, por exemplo a Papua ou Nunga, observamos práticas como a maternagem, o aleitamento de filhotes ou o desmame por meio da passagem de alimento de boca em boca, que nos levam a ler a adoção como um evento ligado aos cuidados parentais.
No seu famoso livro In the company of animals [Na companhia de animais], James Serpell salienta que, em todas as populações humanas, estão presentes animais chamados de companhia e como o traço que caracteriza essas relações é precisamente a tendência a tratar e a cuidar dos animais de estimação, a tal ponto que o etólogo norte-americano chega a assumir uma espécie de parasitismo-parentela.
Os animais domésticos, portanto, utilizariam a mesma estratégia do cuco? A comparação não parece se sustentar, porque, enquanto o cuco aperfeiçoou uma estratégia reprodutiva sua, específica sob o perfil da adaptação, no caso dos animais adotados o homem parece ter tentado domesticar qualquer tipo de animal. Assim, se é verdade que nem todos os animais foram domesticados, o limite deve ser atribuído – como observou o fisiologista Jared Diamond – a características não diretamente ligadas à adoção, como a docilidade ou a reprodução controlada.
Um filhote necessitado de cuidados
Konrad Lorenz já havia chamado a atenção para uma série de características pedomórficas (ou seja, típicas das formas juvenis) comuns a todos os mamíferos, como a esfericidade da cabeça, os olhos grandes e lúcidos, o focinho achatado, as patas curtas, que formam uma espécie de linguagem universal dos filhotes. Essas formas juvenis, suscitando comportamentos parentais, compõem uma espécie de esperanto "et-epimelético", termo etológico que, na prática, significa "capaz de mover um comportamento de cuidado". Mas essa evocação será mais forte se, de outro lado, houver alguém realmente sensível a esse apelo, ou seja, com uma forte motivação epimelética (do grego "epimeléomai", "cuidar").
A etologia, de fato, parece dar razão a Martin Heidegger, quando afirma que "o homem é filho do cuidado", enfatizando precisamente a sensibilidade da espécie humana para o apelo et-epimelético. (E o fato de que as formas juvenis tenham um forte apelo para os seres humanos encontra demonstrações contínuas na vida cotidiana, do fascínio dos automóveis de contornos arredondados ao design pedomórfico de Mickey Mouse e do Pato Donald).
Essa tendência epimelética do ser humano deveria ser atribuída à forte necessidade de cuidados parentais do filhote de Homo sapiens que, ao contrário de seus primos chimpanzés, bonobos, gorilas e orangotangos, no nascimento, apresenta uma imaturidade de desenvolvimento – ossos craniais não soldados, volume encefálico de um quinto em comparação aos adultos –, que o torna inepto e, assim, necessitado de cuidados parentais. O recém-nascido humano não só não é capaz de se agarrar como o filhote das outras espécies antropomórficas, mas não é capaz nem de levantar a cabeça. De acordo com o ditado darwiniano, a conclusão é simples: sem uma vocação epimelética contralateral, a nossa espécie teria se extinguido.
Mas, como um gato, por causa do seu ardente instinto predatório, ele acha irresistíveis objetos teoricamente pouco interessantes para ele, como as bolas ou os ponteiros do mouse. Assim, a forte motivação epimelética nos torna vulneráveis também às formas juvenis de outras espécies. Em suma, diante de um filhote somos tomados pela ternura, ou seja, pela vontade de adotá-lo, acudi-lo e de alimentá-lo, a tal ponto que até as crianças, diante de um animal, em primeiro lugar lhe oferecem comida. Portanto, é provável que justamente a ternura, e não um cálculo de utilização, tenha representado o grande intérprete da domesticação, até porque seria muito difícil explicar fenômenos como a maternagem e o desmame bucal fora de um comportamento parental.
A globalização do cavalo
Trata-se, em última instância, de inverter o lugar comum que vê o macho humano como caçador indômito protagonista da captura e da subjugação dos animais. Na realidade, foram as mulheres que deram início à domesticação, abrindo caminho para um processo de hibridização com o não humano que nos transformou na raiz, até chegar ao ciborgue pós-moderno representado por Donna Haraway como condição existencial da contemporaneidade.
A domesticação teria sido, portanto, um efeito colateral do nosso virtuosismo no âmbito do cuidado, uma tendência que, de fato, nos abriu para a contaminação do não humano.
Se Lévi-Strauss sustentou que o animal é, antes de tudo, "bom de pensar", outros estudiosos, como Diamond e Marvin Harris chegaram a reescrever a história da humanidade através das diversas parcerias com os animais domésticos – onde, por exemplo, a domesticação do gado tornou possível o desenvolvimento da mecânica, e a do cavalo foi a primeira forma de globalização. A cultura rural, mesmo nas diversas transformações que a caracterizaram, via uma profunda promiscuidade entre os humanos e as outras espécies, a tal ponto que muitos fisiologistas descobriram a importância da chamada "imunidade cruzada", uma verdadeira vacinação ante litteram que permitiu que o homem se protegesse de certas doenças infecciosas.
Doações e maus tratos
Com a revolução urbana do século XX, o homem se divorciou dos animais domésticos, muitos dos quais acabaram nas criações intensivas, campos de concentração que lhes retiraram a luz do sol, o ar livre, a possibilidade de movimento, e marcaram a sua existência com terríveis vexações. A nos acompanhar nas agitadas metrópoles continuaram sendo apenas o cachorro e o gato, privilegiados só aparentemente, porque, de fato, foram relegados a uma vida que tem bem pouco das satisfações exigidas pelo seu etograma: embora um clichê arraigado veja na antropomorfização dos animais de estimação uma grande doação para eles e se usem termos como viciar ou mimar, não é exagero afirmar que, em muitos casos, trata-se de verdadeiros maus tratos.
Além disso, segundo a tradição disneyana, que, para o bem ou para o mal, formou todas as gerações a partir dos anos 1950, os animais são apenas máscaras sob as quais atua uma personalidade humana. Isso não nos permitem compreender que, em termos de percepção do mundo, de modalidades comunicativas, de interesses e de rituais comportamentais, cada espécie tem os seus traços distintivos e merece ser respeitada como tal.
Porém, é verdade que os animais domésticos representam o último contato com uma realidade não humana que afastamos, mas da qual necessitamos justamente para construir as qualidades mais autênticas da nossa dimensão humana.
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Humanos entre cães e lobos: a história esquecida da domesticação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU