16 Abril 2011
Da análise da relação entre Norte e Sul do planeta à crise ecológica, passando pelas transformações no mundo do trabalho, o livro do estudioso Razmig Keucheyan, Hémisphère gauche, é um mapa da reflexão crítica sobre o capitalismo e um guia refletido sobre linhas de pesquisas teóricas que se colocam em relação com os movimentos sociais.
A reportagem é de Teresa Pullano, publicada no jornal Il Manifesto, 15-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Um paradoxo perpassa a Europa: os movimentos sociais florescem à sombra da crise, enquanto que o continente vira inexoravelmente à direita, e o pensamento crítico abandona a universidade e as ruas e se refugia na trincheira acadêmica dos câmpus norte-americanos. Enquanto isso, as revoltas do Maghreb fazem com que a revolução volte novamente à atualidade, apagada dos dicionários políticos desde a queda do Muro.
O estudioso Razmig Keucheyan está convencido disso e abordou essas questões à luz de seu livro Hemisphère gauche, que representa a mais exauriente radiografia do pensamento crítico mundial em circulação hoje. Keucheyan é ao mesmo tempo um teórico (leciona na Sorbonne de Paris) e um ativista político (não faz mistério sobre a sua militância no Novo Partido Anticapitalista). Uma escolha, em poucas palavras, contracorrente, visto o conservadorismo que domina o panorama intelectual acadêmico na França, e talvez mais alinhado com o que acontece fora das universidades, onde os movimentos sociais ainda estão presentes e são capazes de ações radicais de protesto, basta pensar nos estudantes ingleses ou nos antinuclearistas alemães.
Eis a entrevista.
No seu livro "Hemisphère gauche", o senhor faz uma detalhada radiografia do pensamento crítico mundial. Como se inseririam nele as revoltas no Maghreb?
Em um artigo no Le Monde, o filósofo francês Alain Badiou escreveu que os eventos revolucionários podem acontecer de modo inesperado, a partir de uma centelha, como o dar-se fogo do ambulante tunisiano de Sidi Bouzid. Eu penso, ao contrário, que as revoltas na Tunísia e no Egito são o fruto de movimentos sociais que se preparavam há muito tempo. A relação entre o desenvolvimento econômico e a construção de ideias críticas não é linear, mas contém pontos problemáticos.
Uma das novidades, no caso do mundo árabe, se encontra na relação entre religião islâmica e pensamento crítico. É preciso, de fato, perguntar-se sobre qual é o papel do Islã nessas revoltas. Penso, por exemplo, que há uma tendência a um movimento islamista de libertação, análogo à operação teórica e política proposta pela teologia da libertação na América Latina. Nesse sentido, as revoltas do mundo árabe não são redutíveis a revoluções democráticas (mesmo também sendo isso) e apresentam componentes diferentes das revoltas históricas do movimento operário.
Além disso, são o primeiro processo revolucionário em escala continental depois da queda do muro de Berlim: um efeito para as esquerdas ocidentais será a possibilidade de dizer novamente que a revolução existe. Produz-se assim uma mudança que age no nível do sentido do possível. Um pensamento crítico como pensamento concreto, que tem um forte laço com a realidade, age de fato na construção do laço entre o que acontece e o que é possível pensar.
O senhor defende que o pensamento revolucionário abandonou a Europa. As manifestações contra os planos de austeridade nos países europeus, de Londres à Grécia, contradizem essa hipótese? Na Europa, algo também está se movendo para o futuro da esquerda?
A sociedade europeia e a sua classe política estão indo para a direita. O fato de que Londres, Atenas, Roma, Madri confrontem-se com a crise implica em um quadro de referência comum. É necessário, de fato, sublinhar que o capitalismo e o neoliberalismo são um sistema, e – aqui não digo nada de novo – que é o capital que unifica as lutas. Um dos limites dos movimentos altermundistas que se manifestaram no final do século XX e o início deste milênio foi o seu componente anti-intelectual e a tendência a privilegiar a dimensão da prática com relação à teoria. Devemos novamente nos fazer a pergunta de como conciliar pensamento e prática.
O paradoxo diante do qual nos encontramos vê uma Europa ainda capaz de manifestações e protestos, como na França contra a reforma das aposentadorias, mas um panorama acadêmico envelhecido e distante do que ocorre na sociedade. Nos Estados Unidos, ao invés, as universidades mais nobres dão amplo espaço para a elaboração de um pensamento radical, que se encontra, porém, confinado em uma torre de marfim ou na incapacidade de construir uma relação com movimentos sociais, além disso, exíguos.
Os processos de emancipação devem ser considerados no longo prazo, e a elaboração de um pensamento crítico que tenha consciência dos mecanismos por meio dos quais o sistema capitalista opera e que saiba abrir espaço para uma alternativa concreta deve dar-se o tempo para elaborar uma reflexão e categorias de pensamento adequadas às mudanças das condições políticas e sociais concretas.
Os atores sociais e políticos de hoje são, de fato, diferentes dos que Marx se confrontava e da classe operária. Os sujeitos da emancipação hoje são diversos e plurais. A sua composição e os seus objetivos se transformaram.
Pode dar alguns exemplos?
O movimento francês dos intermitentes do espetáculo, que era composto por precários da arte, do teatro, da música e do cinema, procurou elaborar formas de reivindicação inovadoras. A questão do trabalho precário é central para toda forma de emancipação contemporânea.
O senhor pensa que a questão do trabalho e da precariedade das suas condições deve ser central para a esquerda hoje?
Não. O tema da precariedade é fundamental, mas é uma questão a ser enfrentada juntamente com outras. Particularmente, as questões do pós-colonialismo e do feminismo e, portanto, da identidade me parecem inevitáveis. Dou-me conta de que há uma contradição entre o diagnóstico que eu proponho do capitalismo contemporâneo como um sistema organizado e unitário e a afirmação que a questão do trabalho hoje não é mais a central, como ao invés podia ser no passado. O problema das condições de trabalho dos imigrantes e da sua exploração conjuga a reflexão sobre a identidade pós-colonial e a questão do trabalho.
A intervenção militar ocidental na Líbia levantou uma ampla discussão na esquerda radical europeia e nos movimentos. O que o senhor pensa a respeito?
Sigo a abordagem de Gilbert Achcar: os interesses imperialistas dos países ocidentais são um motor evidente e inegável da intervenção, mas, ao mesmo tempo, acredito que em Bengasi houvesse o dever de intervir logo, não era possível se opôr à resolução da ONU. Há, porém, contradições evidentes entre os países europeus e entre a Europa e os EUA. As forças interessadas em um projeto de esquerda na Europa e no mundo devem se servir delas e utilizá-las para transformar a situação em seu próprio favor. Considero que uma das fraquezas do pensamento e das forças políticas da esquerda de hoje é a falta de reflexão estratégica.
Depois da catástrofe que atingiu o Japão, a questão ecológica voltou a ser de grande atualidade, e o pensamento crítico ambientalista adquiriu uma força renovada. Na Alemanha, os Verdes tornam-se uma das principais forças do país.
Na tradição marxista, domina o problema da produção, com escassa atenção para a questão da natureza e da sua produção. Hoje, trata-se, ao invés, de conjugar pensamento anticapitalista e questão ecológica. Além disso, o problema ambiental se conjuga frequentemente com problemas mais clássicos, como a guerra. O conflito em Darfur é um exemplo disso: o processo de desertificação do território, gerado pelas mudanças climáticas, unido à guerra, obriga continuamente milhares de pessoas a se deslocar sem descanso. A questão energética, associada à ecológica, implica, além disso, no fim de um modus vivendi e apresenta o problema de repensar a vida cotidiana a partir de uma crítica qualitativa, como defendia o geógrafo e pensador marxista francês Henri Lefebvre. Parece-me uma das pistas mais promissoras para o pensamento crítico do futuro.
Da crítica pós-colonial ao "capitalismo fóssil"
Razmig Keucheyan, jovem sociólogo de origem suíça (nasceu em Genebra), vive em Paris há mais de 10 anos e leciona sociologia na Sorbonne. Em 2007, publicou um livro sobre a história do construtivismo: Constructivisme. Des origines à nos jours (Ed. Harmattan). Em 2010, foi publicado Hémisphère gauche. Une cartographie des nouvelles pensées critiques (Ed. La Decouverte).
Para um mapeamento dos movimentos sociais pós-no-global, veja-se também Anarchy in the Eu, de Alex Foti (Ed. Agenzia X). No que se refere à constelação analisada por Keucheyan, devem ser lembrados alguns escritos de David Harvey (Crisi della modernità e Breve storia del neoliberalismo, ambos pela editora Saggiatore), de Paul Gilroy (Dopo l`impero e The Black Atlantic, pela editora Meltemi), de Edward Said (Orientalismo e Nel segno dell`esilio, editora Feltrinelli), de Negri e Hardt (Comune, Ed. Rizzoli), de Federic Jameson (Il desiderio chiamato utopia, Ed. Feltrinelli, Postmodernismo, ovvero La logica culturale del tardo capitalismo, Ed. Fazi, Brecht e il metodo, Ed. Cronopio).
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Galáxia intermitente: um caminho acidentado na crise do liberalismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU