31 Março 2011
Adam Przeworski é um dos mais reconhecidos cientistas políticos contemporâneos que estudam os sistemas democráticos na América Latina e no leste europeu. Sua preocupação central são os mecanismos que os cidadãos possuem para fiscalizar os seus governantes. Aqui, o pesquisador debate sobre o significado atual da democracia, seus limites, os conflitos e seus atores. O papel dos governos na América Latina.
A reportagem e a entrevista são de Natalia Aruguete e estão publicadas no jornal Página/12, 28-03-2011. A tradução é do Cepat.
"Ao estabelecer um governo para ser administrado por homens sobre homens, a maior dificuldade reside nisso: é preciso primeiro capacitar o governo para controlar os governados, e, em segundo lugar, obrigá-lo a se autocontrolar". A frase de James Madison, quarto presidente dos Estados Unidos (1809-1817), é eloquente. E não é casual que o cientista político a use para começar o seu livro "Democracia e representação". Com efeito, este cientista político enfatiza a necessidade de produzir mecanismos institucionais que permitam fazer accountable. A sensação de "impotência política" – é assim que a chama – é que não temos instituições para fazer accountable.
As estratégias de accountability social aludem às formas de controle político, aos mecanismos que os cidadãos possuem para fiscalizar os seus governantes. O pesquisador não se resigna. Este aspecto, ainda não suficientemente desenvolvido, se encontra em sua lista de reformas factíveis. E necessárias.
Há pessoas cujas obsessões e deformação profissional são estabelecidas pelos acontecimentos que os marcaram em sua vida. Talvez seja o caso de Adam Przeworski, um dos mais reconhecidos cientistas políticos contemporâneos que se dedicou a estudar os sistemas democráticos nos países da América Latina e do leste europeu.
Nasceu na Polônia em 1943, quando esta foi invadida pelos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. De Varsóvia, em cuja universidade se graduou em filosofia, foi para os Estados Unidos, onde estudou ciências políticas, e acabou parando no Chile, quando começava a "primavera socialista" de Salvador Allende. Desde então, se esmerou em compreender se é possível compatibilizar a democracia, a igualdade, a liberdade e o sentimento de participação social. E mesmo que continue convencido de que a democracia é o melhor dos sistemas políticos, em seu último livro, Qué esperar de la democracia? (Siglo XXI Editores), admite que hoje "é ingênuo" pensar que a democracia conduz à igualdade social e econômica.
Eis a entrevista.
Em seu livro O que esperar da democracia?, você afirma que a democracia não se caracteriza pela igualdade e que, além disso, não foi criada por "democratas". Como conceitualiza a ideia de democracia na atualidade?
Para mim, a democracia é um sistema que constitui um terreno de conflitos, que podem ser resolvidos de maneira pacífica e com liberdade. Isso é a democracia. Não é algo que, em si mesmo, gera igualdade. É um campo de lutas organizadas, que criam incentivos para as forças políticas para obedecer as regras. Quando a democracia funciona, processa vários conflitos em paz e sem violar muito a liberdade.
A uma democracia que não foi capaz de resolver as desigualdades socioeconômicas é possível gerar igualdades políticas?
O mecanismo político mais igualitário é, depois de tudo, o das eleições. Outros mecanismos de disputa política são ainda mais desiguais que as eleições. Porque os recursos econômicos e os recursos organizacionais e ideológicos exercem um papel mais importante. Por isso, creio que a instância das eleições é o mecanismo mais igualitário. Mesmo que não creia que possam ser completamente igualitárias, porque em uma sociedade desigual – do ponto de vista social e econômico –, o dinheiro sempre encontra modos de se infiltrar na política.
Em que sentido?
Em uma sociedade de mercado, na qual existe desigualdade social e econômica, sempre haverá algum nível de desigualdade política. Talvez os países onde há menos desigualdade sejam aqueles que têm sindicatos fortes, onde a classe operária está organizada em um sindicato que tem recursos, que tem seus jornais e suas instituições. Falo, sobretudo, dos países escandinavos, onde os sindicatos têm muito peso frente às empresas. Em outros países há um grau de desigualdade política inegável.
Coma a institucionalidade e o poder dos sindicatos como ator político consegue uma real igualdade no terreno político?
A partir da Primeira Guerra Mundial, na Europa ocidental se construiu algo que se chamou de "compromisso de classe". O compromisso de classe consistia em que os operários organizados em sindicatos não levassem suas ações por demandas salariais ou de outro tipo ao limite. Ou seja, não utilizavam totalmente o seu poder monopolístico no mercado, porque sabiam (pensavam) que enquanto a propriedade dos meios de produção era privada e as decisões de investimentos eram tomadas pelas empresas, então os sindicatos sabiam que os salários atuais constituíam um custo sobre os investimentos e, por conseguinte, sobre o emprego e os futuros salários. Um país na Europa em que não houve greves entre 1936 e 1978 foi a Suécia. Porque os sindicatos eram muito fortes.
Por que os sindicatos suecos não tomaram medidas de força sendo tão fortes? Acaso a greve não era um mecanismo de pressão?
Tinham poder e calculavam obter o que era ótimo para eles. E isto era um compromisso de classe. No período que vai entre os anos 1950 e 1980 foi característico que os aumentos de salários acompanhassem os aumentos de produtividade, em uma relação de um a um. Isto se esgotou com o neoliberalismo. Eu creio que esse conflito de classe habilitou a democracia.
Com a chegada do neoliberalismo, a partir da crise do Estado nos anos 1980, a flexibilização que se instalou no setor do trabalho acarretou um enfraquecimento do sindicalismo em seu sentido tradicional. Que características o ator que quiser reivindicar os direitos dos trabalhadores no novo cenário de relações de trabalho precarizadas deve ter?
Creio que esta pergunta não tem uma resposta geral. Porque mesmo que os sindicatos nos países escandinavos não sejam essencialmente o que eram, e se bem que o sistema de negociação salarial não seja exatamente o que era – no sentido de que se descentralizou e aumentou a desigualdade –, assim mesmo, os sindicatos têm peso nesses países. Por outro lado, em países como os Estados Unidos, Ronald Reagan os destruiu em 1982. Havia uma greve dos controladores de voo, e ele demitiu todos os grevistas. Margaret Thatcher também destruiu os sindicatos em questão de dois anos, o número de filiados caiu pela metade entre 1979 e 1981.
Você menciona dois casos paradigmáticos, mas o que aconteceu no resto das sociedades?
Salvo em alguns países, não há uma força organizada que se possa contrapor ao poder das grandes empresas. Os movimentos ou ONGs são "forcinhas". A luta se fragmentou. Um movimento luta por isto, outra ONG luta por aquilo... já não há uma força centralizada e poderosa, que agrupe 90% dos empregados.
Você menciona as eleições como o momento de maior igualdade política, mas entre uma eleição e outra passa muito tempo. Por que os sistemas democráticos não geraram mecanismos de accountability nos períodos entre eleições?
Um aspecto da questão é o desenho institucional dos sistemas democráticos. Há uma herança histórica que sempre me chama a atenção. Eu creio que uma parte da sensação de impotência política é que não temos instituições para fazer accountable. A burocracia está em falta, quer dizer, as organizações públicas que oferecem estes serviços. Para isto não temos mecanismos. Imagine os professores que não vão à escola, o dinheiro da aposentadoria que não chega, a política que paga propina, o que se pode fazer?
O que você acredita que se pode fazer?
Pode votar contra os representantes que devem controlar as cúpulas da burocracia que, por sua vez, controla os estratos mais baixos da burocracia. É uma cadeia muito comprida que não funciona. Hoje é na rua que se dá a accountable. Esta arquitetura se deve ao fato de que quando as instituições representativas modernas se formaram não havia democracia. O governo não oferecia serviços.
Que caso poderia mencionar para exemplificar instituições representativas sem democracia?
O governo norte-americano, em 1789, tinha 4.500 empregados. Agora, qualquer bairro de Buenos Aires tem 4.500 empregados. Havia uma pequena discussão na Convenção Norte-americana sobre a possibilidade de controlar a República e, de vez em quando, apareciam tentativas de fazê-lo. Uma pesquisadora chilena trabalhou sobre as tentativas na América Latina de criar este tipo de mecanismos de controle local sobre a burocracia local, mas as sociedades não desenvolveram esse aspecto. Creio que muito do sentido de impotência provém desta arquitetura.
Você acredita que é uma limitação estrutural da democracia?
Não. Mas creio que requer reformas. E muitos governos abusam da linguagem de participação e, em vez de pensar como habilitar as pessoas para que possam controlar o Estado, fazem de cima para baixo. Me cheira como suspeito quando um governante diz: "aumentamos a participação". Mas este aspecto está dentro da minha lista de reformas factíveis.
Que grau de efetividade tem a participação na rua em termos de exercício de uma accountability que tenha estabilidade e se possa manter no tempo?
Não é tão fácil. A rua é algo difícil, muitas vezes perigoso e pode levar a coisas muito desagradáveis, como o que aconteceu aqui com as ocupações (N. da R.: referência aos episódios de dezembro). Creio que todos os governos temem a rua porque é a possibilidade de rompimento da ordem pública, é algo que todos os governos têm que tomar em conta. E sempre surgem negociações tratando de enfraquecer ou acalmar as pessoas na rua. Estão fora do marco institucional, mas são efetivas.
Por que acredita que não são os melhores mecanismos?
Duram menos e são menos estáveis. Podem ser acalmadas agora e depois não se fazer nada. E são perigosas porque podem gerar uma espiral de violência. Nenhum governo pode tolerar uma desordem que dure. Norbert Lechner, um pesquisador alemão-chileno, em sua análise sobre a queda de Allende, sua primeira conclusão foi que nenhum governo pode tolerar uma desordem cotidiana. Então, em um primeiro momento, os governos têm a tentação de reprimir. Uma vez que o governo reprime, outra parte responde com violência e se arma algo muito feio e que pode desbordar.
Tendo em conta que você esteve em Buenos Aires durante os episódios das ocupações de diferentes prédios, qual é a sua avaliação sobre como se deu este processo?
Eu não sei se neste caso a democracia é o decisivo. Aparece o fenômeno. No caso de qualquer governo, as estratégias são as mesmas. Um governo democrático tem que se preocupar com as eleições e talvez alguns dos distúrbios são produzidos pensando nas eleições. No entanto, o que fazer? Ceder e reprimir? Reprimir e ceder? Creio que é uma resposta geral, não depende do fato de o governo ser ou não democrático. Na China, estima-se que haja entre 4.000 e 5.000 distúrbios públicos por ano, e os chineses não têm um método e uma instituição para resolver estes assuntos, devem resolver um por um. Em alguns casos, concedem e nada mais. Em outros casos, reprimem e nada mais. No entanto, têm que administrá-los caso a caso. Por isso eu creio que o governo chinês está caminhando pisando em campo minado, que um dia vai explodir. Tem sorte de que o país seja grande e estes distúrbios sejam bastante isolados. Contudo, se um dia se armar uma onda, terão problemas. Mas estes problemas não têm uma receita geral.
E no caso de Buenos Aires, como avalia a gestão que as autoridades fizeram das ocupações, tendo em conta que havia diferenças entre o governo federal e o portenho quando ao modo de resolver esta questão?
Fiquei impressionado com o caso destas ocupações, o governo federal, isto é, a presidente (Cristina Fernández) o manejou bastante bem. Eu detecto um idioma muito machista em algumas análises e comentários políticos. E me impressiona que ela não caiu na armadilha.
Qual armadilha?
No sentido de pensar: eu sou mulher, me acusam de fraca, então vou entrar e pegar com tudo. Não fez isso. Manejou pacientemente.
E, além disso, colocou uma mulher no Ministério da Segurança.
Exatamente. Isso me impressionou.
As políticas de estabilidade restritivas e regressivas que estão sendo implementadas em alguns países da Europa, no marco da crise mundial, acredita que vão afetar em algum grau as democracias?
Não. Eu acreditava há alguns anos e continuo acreditando – mesmo que deva que admitir que alguns colegas não pensam da mesma maneira – que esta crise vai aumentar a intensidade dos conflitos e que, na realidade, pela primeira vez em 30 anos, agora estão acontecendo conflitos de classes na Europa. Creio que a dimensão principal que estes conflitos têm é que são de classe, como aqueles que aconteceram nos anos 1920 e começo dos anos 1930. Entretanto, não me imagino que isto incida sobre a dimensão democrática. Não imagino. Eu acredito que na Europa, a democracia é como a natureza. Não é algo que se possa questionar ou pensar em alternativas. É algo de fato. Está aí.
Mas é uma democracia com que características? Se esta crise faz aflorar conflitos de classe que remetem a 100 anos atrás, pode-se falar de uma democracia que amadureceu?
Não apenas acredito nisso, mas o sei, porque tenho dados sistemáticos: o que mudou nos últimos 40 anos é que os governos perdem eleições. Antes era muito raro que os governos perdessem eleições. Vem um governo e depois outro de orientação política diferente. Em algum sentido, isto faz com que as pessoas continuem acreditando que a democracia é um mecanismo que permite controlar (os governos). Muitas vezes os eleitores se decepcionam, se desencantam. Contudo, continuam a acreditar. Votam no governo no qual acreditam, aparece o desencanto, votam no partido contrário. É uma mostra de que a alternância no governo é muito mais intensa do que era há 50 anos. Isto é uma mudança, é uma maturidade da democracia, porque ninguém pensa que a mudança de governo é algo perigoso. Todos pensam que é natural. É o instrumento democrático que temos.
Você menciona em um de seus trabalhos que as prescrições neoliberais dos anos 1990 fragilizaram as democracias na América Latina. Acredita que houve algum grau de amadurecimento nestas democracias, a partir da recuperação das diferentes crises que eclodiram na região?
É difícil analisar a América Latina. Creio que na Argentina, Chile, Uruguai ou Brasil, as instituições democráticas funcionam tão bem quanto podem. Penso que funcionam melhor que nos Estados Unidos, mas também, que funcionam melhor que em vários países europeus. O fato de que Luiz Inácio Lula da Silva tenha podido ganhar as eleições no Brasil demonstra que as instituições democráticas são fortíssimas. Agora, no Brasil há movimentos feios, fascistas. No entanto, isso era impensável. Ou pensar que Michelle Bachelet tenha podido ser presidente no Chile... com os antecedentes desse país, não de classe, mas de repressão e de idiossincrasia. Isto indica que estas democracias funcionam.
E o caso argentino, como o vê?
Mesmo com a crise que houve na Argentina em 2001, que foi uma crise profunda em nível econômico, social e político, onde houve cinco ou seis presidentes em questão de dias, contudo todos foram selecionados obedecendo as regras institucionais. Nunca a institucionalidade se esgotou. E isso para mim é uma demonstração de que a democracia funciona. Em relação à administração das eleições, creio que no Brasil ou no Chile o sistema funciona muito melhor que nos Estados Unidos.
Se seguimos na ordem do "impensável" em países da América Latina, como você exemplificou, talvez era mais impensável que um senhor como Evo Morales conseguisse ser presidente em um país como a Bolívia, onde antes havia funcionários que, casualmente, falavam em inglês.
Também.
Isso para você entra na ordem do democrático? Porque não o mencionou junto com os outros casos de países democráticos da América Latina.
Sim, claramente. A eleição de Evo Morales é uma revolução democrática. É um sistema forte. É claramente conflitivo, várias vezes chegou ao ponto de explodir. E, de fato, explodiram conflitos violentos, com os movimentos separatistas. E, contudo, é um sistema que funciona.
Até que ponto é possível conseguir uma distribuição mais progressiva e equitativa, uma maior igualdade socioeconômica e um maior sentido de participação democrática mediante os mecanismos institucionais-representativos? Ou é necessário recorrer a ações mais radicais?
Creio que no caso boliviano, a entrada das organizações indígenas na cena política foi um fato revolucionário, e várias das reformas que implementaram têm um impacto sobre a distribuição econômica e o status social. Mas, quanta igualdade isto produziu? Nesse ponto sou mais cético. Se a Bolívia chegar a se parecer com a Argentina, será muito. Gente pobre, sem recursos, sem poder aceder a atividades produtivas que gerem rendas decentes. É algo difícil, porque são muitos anos...
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