09 Março 2011
Se tivesse que escolher o "romance da crise" destes anos de turbocapitalismo global e letal, votaria em Sunset Park. As primeiras páginas do livro de Paul Auster – em que o jovem Miles Heller relata o seu trabalho de "mosqueteiro da desgraça", encarregado de inspecionar por conta dos bancos as casas abandonadas pelos inquilinos morosos e de fotografar as inumeráveis "coisas abandonadas" para sempre pelas famílias expropriadas – são o afresco literário de uma época.
A análise é de Massimo Giannini, publicada no jornal La Repubblica, 08-03-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Spoon River de "um mundo que tomba, de ruína econômica e de dificuldades constantes e crescentes" para milhões de pessoas submersas pela "tempestade perfeita" inciada há mais três anos. Mas agora é publicado também o "ensaio da crise". Não que nestes meses os títulos sobre esse tema tenham sido poucos. Mas o livro que sugiro agora é talvez o mais completo e o mais científico de todos aqueles que li. Estou falando de Finanzcapitalismo, que Luciano Gallino recém entregou à impressão (editora Einaudi).
A viagem de Gallino ocorre por dentro dos delírios cínicos e às vezes até clínicos do mercadismo. Uma viagem que parte de um triunfo hegemônico: um sistema econômico baseado no risco moral (`moral hazard) e na irresponsabilidade do capital, na dívida que gera dívida e no dinheiro que produz dinheiro. E que nos conduz a um ponto final dramático: a completa desvalorização do trabalho, a devastação dos recursos industriais e naturais, a desolação de uma massa de mulheres e de homens que já não são mais "classe média", mas sim "classe pobre".
O que aconteceu desde aquele final dramático de 2007 o sabemos. O que ainda faltava é uma análise histórica e sociológica, além de econômica, do processo que mudou as conotações do sistema. Gallino reconstrói isso a partir do conceito, teorizado por Lewis Mumford, das "megamáquinas sociais": aquelas grandes organizações hierárquicas que usam massas de seres humanos como "componentes ou servo-unidades". Combinação de poder político, econômico e cultural que geraram "monstros" no arco de milênios: das pirâmides egípcias construídas com o sangue dos escravos ao Império Romano, da fábrica de extermínio do Terceiro Reich nazista ao universo concentracionário do comunismo soviético. Agora, estamos na fase mais "evoluída": o "finanzcapitalismo", "megamáquina" desenvolvida com o objetivo de maximizar e acumular, sob forma de capital e poder, "o valor extraível tanto do maior número possível de seres humanos, quanto dos ecossistemas".
E essa "extração de valor" tornou-se o mecanismo totalizante e totalitário que já envolve "cada momento e cada aspecto da existência". Do nascimento à morte: como o velho Welfare, enferrujado e imprestável segundo a vulgata ocidental dominante, que abraçava tempos atrás o indivíduo "do berço ao caixão". O salto de qualidade está na passagem crucial da "produção" à "extração" do valor. "Produz-se" valor quando se constrói uma casa ou uma escola. "Extrai-se" valor quando se impõe um aumento dos preços das casas, manipulando as taxas de juros. "Produz-se" valor quando se cria um posto de trabalho estável e bem remunerado. "Extrai-se"valor quando são contratados trabalhadores temporários mal pagos ou aumentam-se os ritmos de trabalho com o mesmo salário.
Se a "megamáquina" do velho capitalismo industrial fordista tinha como motor a indústria manufatureira, a "megamáquina" do "finanzcapitalismo" tem como motor a indústria financeira. A primeira "girava" graças ao trabalho, que gerava renda, direitos, cidadania. A segunda "gira" graças ao dinheiro, que gera mais dinheiro, e depois ainda mais dinheiro, e sempre e apenas dinheiro. "Finanças criativas", aprendemos a chamá-la nesse inebriante período de culto pagão ao deus mercado. Não nos damos conta de que, enquanto isso, elas se tornaram "finanças destrutivas".
Para nos darmos conta disso, basta examinar, com o sociólogo turinense, o inventário de tudo o que foi destruído nestes últimos anos. Na gigantesca fogueira da Grande Crise, foram queimados os "ativos" do mundo, isto é, a riqueza constituída por ações, obrigações, derivados, casas, edifícios comerciais, plantas industriais, capitais e fundos. Um auto-de-fé estimado entre um mínimo de 25-30 trilhões de dólares (a metade do PIB do planeta) e um máximo de 100 trilhões (1,8 vezes o PIB mundial). Mas, no fogo, com a riqueza, foram "queimadas" pessoas de carne e osso: segundo a OIT, temos hoje 50 milhões de desempregados a mais e 200 milhões de trabalhadores que caíram na área da pobreza extrema.
Além das culpas, sobre as quais Gallino não afunda tanto a faca, há uma imensa obra de reconversão que deveria ser tentada aqui e agora. Para as classes dirigentes, trata-se de sair do pensamento único neoliberal, que teorizou as virtudes do "finanzcapitalismo" e prosperou sobre as suas loucuras. E de reformular a arquitetura financeira: com os instrumentos do narrow banking (a redução drástica das dimensões da atividades de crédito), a revisão, dos critérios de balanço, a poda do mercado dos derivados, a proibição das cartolarizações.
Mas, enquanto enumera os remédios possíveis e indica as tentativas até agora fracassadas principalmente na Europa (mais interessantes são as norte-americanas ligadas ao Dodd-Frank Act), Gallino parece sugerir também a irrealizável inutilidade das "autorreformas". E aqui está, talvez, a fraqueza e a força do livro. A fraqueza, parece-me, está em ver só o dark side das finanças-sombras e em não conceder outras chances ao capitalismo: quase que na sua última reencarnação financeira deve-se considerar exaurido o seu ciclo vital. Sabemos, ao contrário, que, schumpeterianamente, o capitalismo é talvez o único sistema que demonstrou poder morrer e renascer infinitas vezes.
A força, por razões iguais e contrárias, está em apelar à consciência dos seres humanos. Visto que Karl Marx fracassou ao imaginar o nascimento de uma "classe antagonista" capaz de impor um modelo de economia e de sociedade humana e socialmente sustentável, só resta voltar a Karl Polanyi, que invoca "uma reação social e cultura, variada e difusa, ao liberalismo econômico e ao mercado desregulado". Ele falava dos séculos XIX e XX. Mas, para Gallino, a ideia polanyiana dos "contramovimentos" voltaria a ser útil também hoje. Os seres humanos, quase transformados em robôs ou em excesso, deveriam se rebelar. Se o fizessem, privariam a "megamáquina" do "finanzcapitalismo" dos "servo-mecanismos" que a fazem funcionar. Da dimensão individual à coletiva: a missão seria a de derrotar o "demônio" das finanças com o exorcismo da razão. A mais fascinante, mas, infelizmente, a mais difícil das "revoluções".
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Como sair da crise que mudou o mundo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU