02 Janeiro 2011
"A encarnação está no próprio coração do anúncio cristão, que é – juntamente com a ressurreição – quase que o seu símbolo temático."
A opinião é de Gianfranco Ravasi, cardeal presidente do Pontifício Conselho da Cultura, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 19-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Uma década depois da publicação, em 1982, o escritor lombardo Giovanni Testori – após um encontro público em Milão, dedicado a um livro sobre Maria Madalena ao qual ambos colaboramos – me enviou uma obra sua pouco conhecida, intitulada La maestà della vita. Di lì a poco egli sarebbe morto (em 1993).
Agora, folheando novamente essas páginas, me deparo com este parágrafo: "O Natal é o nascimento absoluto que reflete e assume, ilumina e redime, abençoa e consagrada todos os nascimentos de antes e todos os nascimentos de depois. Todo ser humano que vem à luz repete o milagre do Natal de Cristo, porque é Deus que decide esse nascimento. É Ele que quer essa vida. É justamente cada um desses nascimentos, cada uma dessas vidas, sem excluir nenhuma, que O levou a encarnar-se desde sempre".
São palavras que convidam espontaneamente a refletir justamente sobre esse verbo final típico do cristianismo, o "encarnar-se" de Deus. Não é por nada que se repete frequentemente que a "encarnação" está no próprio coração do anúncio cristão, que é – juntamente com a ressurreição – quase que o seu símbolo temático.
A definição imediata, despojada de tecnicismos teológicos, poderia ser assim definida no rastro das linhas de Testori: o Filho de Deus nasceu, quis ter um início no tempo, ele que era e que continua sendo eterno, justamente para compartilhar realmente conosco a história, a "carne". Como todos nós, ele também teve um fim no tempo, uma morte. Com esse ingresso na sequência temporal, depôs em todos os nascimentos e em todas as mortes uma semente divina, que transcende o próprio tempo. Como escreve Testori, o Natal do Filho de Deus "reflete e assume, ilumina e redime, abençoa e consagrada todos os nascimentos", todas as vidas.
A "encarnação" está inserida na memória de todos, também de quem é agnóstico, com uma frase lapidar do célebre prólogo do Evangelho de João, um texto que foi definido como "uma parábola teândrica", justamente pelo entrecruzamento inextrincável que propõe entre divindade e humanidade.
De um lado, de fato, está o Logos que existe "no princípio" – como se diz do Criador no próprio começo da Bíblia (Gênesis 1, 1: "No princípio, Deus criou o céu e a terra..."). Ele está "junto de Deus" e é Deus. Do outro lado, porém, esse Logos divino, perfeito, criador, absoluto – que é Wort, Palavra, Kraft, Poder, Sinn, Significado, Tat, Ato, para usar a famosa definição semântica oferecida por Goethe no seu Fausto – se assenta no horizonte contingente e mutável do tempo e do espaço: "O Logos se fez carne e habitou entre nós" (1,14). O Verbo eterno e divino assume a sarx, ou seja, a caducidade temporal, tornando-se hóspede nômade do nosso espaço: como se sabe, o texto originário joanino usa, de fato, o verbo grego eskénosen, que é o termo do "fazer tenda", do acampar entre os homens que migram de lugar em lugar. Naturalmente, a alusão de João não ignora o valor simbólico da "tenda", que era o santuário móvel do Israel peregrino no Sinai, "tenda do encontro" entre Deus e Israel, mas, ao mesmo tempo, tenda da "presença" divina: em hebraico, "presença" é shekinah, vocábulo curiosamente fundamentado nas mesmas três consoantes (s-k-n) do "fazer tenda" grego (skenoun).
Continua sendo grandioso, no entanto, o paradoxo. Não está mais em cena uma tela ou um edifício simbólico: essa nova residência divina é "carnal". Levando-se em conta que a sarx, "carne", é a definição ideal do hebraico basar, o âmbito em que Deus se assenta e do qual torna-se plenamente partícipe é a condição humana, carregada de caducidade e de finitude. Ela é assumida sem reservas, tem no nascimento o seu emblema, mas pressupõe também todo o arco da existência, feito de uma mistura de riso e lágrimas, esperança e desilusão, saúde e doença, sentimentos e humores, atos e palavras, afetos e traições, experiências e silêncios.
Sob essa luz, é sugestiva a retomada do tema que Jorge Luis Borges propôs na sua poesia emblematicamente intitulada João 1, 14, presente na coleção Elogio da sombra (1969):
Eu que sou o É, o Foi e o Será / volto a condescender à linguagem / que é tempo sucessivo e emblema... / Vivi enfeitiçado, encarcerado em um corpo / e na humildade de uma alma... / Conheci a vigília, o sono, os sonhos, / a ignorância, a carne, / os torpes labirintos da razão, / a amizade dos homens, / a misteriosa devoção dos cães. / Fui amado, compreendido, louvado e pendi de uma cruz.
Muito se poderia refletir sobre esse ponto de ouro no qual "até o sobrenatural é carnal", como afirmava Charles Péguy no seu poema Eva (1913). Lá, o Filho de Deus torna-se "fruto de um ventre carnal", assumindo e reassumindo em si toda a humanidade feita de carne e de sangue. Além disso, se poderia localizar o tecido das alusões e das referências evocadas por João no seu texto: ele toca nas categorias "Palavra" e "Sabedoria", caras ao Antigo Testamento, sem excluir totalmente, porém, sinais ao Logos grego, que havia se infiltrado no próprio judaísmo de Filão de Alexandria, do Egito, célebre pensador judeu-helênico do século I.
Assim, seria possível portanto reencontrar uma sutil mas eficaz ponta polêmica contra a aparição, na cristandade das origens, de tentações gnósticas ou docéticas. Elas – como bem se deduz dos próprios termos de matriz grega que evocam a "gnose", o conhecimento alto e puro, e a "aparência", o dokéin – rejeitavam o "peso" da "encarnação", daquele "tornar-se carne". No máximo, a aceitavam como metáfora da epifania do Logos no seu mostrar-se exterior, do seu "aparecer", ou como expressão mítica do agir atemporal de Deus, mero revestimento simbólico do Ser transcendente.
O evangelista João não cessará de contrastar essa visão que enfraquece a presença histórica de Deus e que torna exangue o rosto de Cristo, e fará isso principalmente nas suas Cartas, reforçando que é possível uma experiência auditiva, visível e tátil do "Verbo da Vida" (1 João 1, 1-3), para a qual a discriminante da autêntica teologia cristã é clara: "Todo espírito que reconhece que Jesus Cristo se encarnou é de Deus; e todo espírito que não reconhece Jesus, esse não é de Deus, mas é o espírito do Anticristo" (4,2-3). "Apareceram muitos sedutores que não reconhecem Jesus Cristo que se encarnou" (2 João 7).
O realismo da "encarnação" torna-se, portanto, uma espécie de papel de tornassol da autenticidade da própria profissão de fé cristã, embora o termo grego específico sárkosis, "encarnação", não apareça diretamente no Novo Testamento e será adotado pela primeira vez no século II pelo Padre da Igreja Irineu, na sua obra Contra as heresias (3, 18,3; 19, 1-2) e se tornará comum só a partir do século IV, quando se acentuarão as discussões e as diatribes cristológicas. Queremos agora acenar brevemente só a duas questões contextuais, semelhantes a círculos que se abrem ao redor desse tema teológico joanino.
O primeiro círculo que isolamos é o mais restrito, e é o que remete ao resto do Novo Testamento, antecedente ao quarto Evangelho em nível cronológico. Certamente, não podemos identificar nele a explicitação que João faz do tema, mas os preâmbulos são totalmente evidentes. No que se refere aos outros Evangelhos, isto é, os Sinóticos, a sua própria impostação narrativa, que parte da genealogia e do relato do nascimento de Jesus (Mateus e Lucas) e se desenvolve segundo uma trama histórica de eventos para chegar a uma morte, é a atestação mais límpida do laço íntimo de Cristo com a "carne" feita justamente de acontecimentos, tempo, espaço, existência. Ele é, por excelência, o Emanuel, Deus conosco, que caminha lado a lado com a humanidade, permanecendo "conosco todos os dias até o fim do mundo" (veja-se Mateus 1,23 e 28,20). Interessante, em nível mais teórico, é – ainda nesse círculo – o pensamento de São Paulo.
Não podemos, obviamente, aprofundar os percursos temáticos que ele nos oferece a respeito e que são sempre um espelho da complexidade e da riqueza do seu pensamento. É, portanto, fácil encontrar no seu corpus epistolar algumas declarações indiretas: "Deus enviou seu próprio Filho em uma carne semelhante à do pecado" (Romanos 8, 3); "Deus enviou seu Filho, que nasceu de uma mulher e nasceu submetido à Lei" (Gálatas 4, 4); "há um só mediador entre Deus e os homens: o homem Jesus Cristo...; ele foi manifestado na carne humana" (1 Timóteo 2, 5; 3, 16); "nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade" (Colossenses 2, 9); "o Filho de Deus nasceu descendente de Davi quanto à carne... e dos Israelitas descende Cristo, segundo a carne" (Romanos 1, 3; 9, 5). Essa sequência textual fala por si só. Reservemos, porém, um sinal específico ao hino – talvez pré-paulino – que o Apóstolo insere na sua Carta aos amados cristãos da cidade grega da Filipos.
Nesse texto, o elemento capital para o nosso discurso está em um contraste esboçado pelo Apóstolo. De um lado, está a descida humilhante do Filho de Deus quando se encarna. Ele desce até o "esvaziamento" (em grego, kénosis) de toda a sua glória divina na morte de cruz, o suplício do escravo, isto é, do último dos homens, para, desse modo, poder estar perto e ser irmão de toda a humanidade.
De outro lado, eis a ascensão triunfal que se realiza na Páscoa, quando Cristo se representa no resplandor da sua divindade, na "exaltação" gloriosa celebrada por todo o cosmos e por toda a história já redimida. Essa visão grandiosa apresenta, em forma de hino, tanto a humanidade quanto a divindade de Cristo e "enfatiza com solene imediaticidade – como escreve o teólogo Giuseppe Mazza, da Pontifícia Universidade Gregoriana – o escandaloso movimento do esvaziamento que se faz espoliação, rebaixamento e auto-humilhação", para que o Filho de Deus possa "participar da natureza humana, diferente da divina".
Citemos, portanto, as palavras da descrição paulina do movimento "descensional" da Encarnação: "Cristo, mesmo sendo de condição divina, não reteve como um privilégio o ser como Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo uma condição de servo, assemelhando-se aos homens. E, sendo exteriormente reconhecido como homem, humilhou-se, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz" (Filipenses 2, 6-8).
Há, porém, um eventual segundo círculo contextual mais amplo e fluido que seria o veterotestamentário, ligado a categorias relevantes como as citadas Palavra e Sabedoria de Deus, as quais são realidades transcendentes que entram e agem nas coordenadas da história e do cosmos. Nós, porém, queremos também fazer referência ao círculo ainda maior e de contornos vagos, o das culturas religiosas do antigo Oriente Próximo e da classicidade grega. A epifania da divindade sob formas ou aparências humanas é conhecidas também delas, mas continua sendo desconhecido o conceito explícito de "encarnação".
Dito em outros termos, nenhuma divindade grega torna-se "um homem" no sentido verdadeiro da palavra. Adônis, Tamuz, Osíris descem ao além e de lá ressurgem sem, porém, assumir a natureza e a condição humana, só para representar miticamente o céu naturístico sazonal.
A "encaração" continua sendo, por isso, um unicum cristão, distante também de um paralelo remoto, evocado às vezes, o hinduísta dos avatares que são a assunção de uma forma corpórea humana ou animal por parte da divindade, assunção variada e multíplice, rítmica e cíclica segundo a sucessão das eras. Falta, portanto, nessa visão, toda inserção pontual e direta na trama do tempo e na realidade de uma pessoa humana, própria do evento Jesus Cristo.
Escrevia significativamente no seu Diário o filósofo Ludwig Wittgenstein: "O cristianismo não é uma doutrina, não é uma teoria sobre o que aconteceu e virá a acontecer à alma humana, mas é a descrição de um evento real na vida humana".
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O realismo de nascer na história - Instituto Humanitas Unisinos - IHU