11 Abril 2011
A tecnologia tornou-se um sistema autorregulado que se reproduz sem intervenção externa. Ela evoluiu a um organismo vivo, uma segunda natureza que cria as condições para a sociedade perfeita. Uma realidade isenta de conflitos e na qual os artefatos ajudam a desenvolver as faculdades cognitivas dos indivíduos e a redução da fadiga do trabalho.
A reportagem é de Benedetto Vecchi, publicada no jornal Il Manifesto, 09-04-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O fio condutor do ambicioso livro de Kevin Kelly (foto), Quel che vuole la tecnologia [O que a tecnologia quer] (Ed. Codice), tem as tonalidades das cores pastéis, agradáveis de ver, mas também combinadas de tal forma que a aproximação pode produzir um inesperado sentimento de estranhamento, justamente a partir da tese que ele apresenta sobre a "natureza das tecnologias".
O autor sustenta, na abertura do livro, que entre tecnologia e animal humano há uma ligação de interdependência, no sentido de que a evolução de um favorece a evolução do outro e vice-versa. Mas esse assunto constitui a premissa para avançar em territórios cheios de insídias, porque Kevin Kelly chega a defender que as tecnologias estão adquirindo as características de um organismo vivo, como o título também sugere – Quel che vuole la tecnologia (Ed. Codice, 401 páginas) –, quase como se as máquinas tivessem vida própria.
Um ponto de vista que projeta o leitor em um futuro muito próximo, onde Kelly defende que, daqui a alguns anos, os artefatos mecânicos ou digitais poderão se reproduzir sem a intervenção humana. Com esse livro, portanto, estamos em um campo em que a tecnologia adquiriu uma autonomia de quem até agora a produziu e a usou. Isto é, tornou-se technium, um sistema que tem vida própria e consequentes hierarquias internas específicas, que determinam algumas linhas de desenvolvimento ao invés de outras.
A representação mais poderosa e, assim, imediata na recepção do technium é a Rede. A citação da Internet não só como cérebro coletivo, mas também como verdadeiro organismo vivo, não admira, dada a biografia de Kevin Kelly. A Internet é, portanto, uma network global, mas também o habitat no qual a evolução da tecnologia pode manifestar lógicas "autônomas" das humanas.
Utopia nômade
O sentimento mais recorrente na leitura desse livro é, portanto, de estranhamento, mas também de curiosidade, porque a tecnologia não é mais o resultado da atividade cognitiva dos humanos ou das relações sociais dominantes, mas sim um organismo vivo potencialmente capaz de determinar ou, melhor, de condicionar a fusão dos seres humanos com as máquinas.
O technium irá produzir, portanto, um novo tipo de humano, uma espécie de ciborgue que terá todo o tempo para se dedicar à expansão da mente. Em outros termos, todo sentimento hostil com relação às máquinas está fora de lugar, porque as máquinas amplificam tanto as capacidades físicas dos humanos – a fadiga não irá desaparecer, mas homens e mulheres poderão desenvolver trabalhos muito cansativos – quanto as mentais.
Nada de novo, irá afirmar o bem informado, relegando Kevin Kelly à categoria dos estudiosos que leram muita ficção científica. Não é assim, porque Kelly não descreve mundos futurísticos ou "virtuais", mas propõe, sim, uma visão "holística" da tecnologia e, por meio dela, uma leitura "harmônica" das sociedades contemporâneas.
Uma análise coerente com a biografia de quem a propõe. Kevin Kelly é, de fato, uma figura muito conhecida entre os cultores da Rede. Por anos, ele foi o diretor da Wired, revista que contou a chamada "revolução do silício", considerando a nova realidade produzida pela difusão do computador e da Internet como uma espécie de terra prometida ou, visto os tons messiânicos presentes em muitas páginas, como uma versão pós-moderna de Utopia, isto é, daquele mundo imaginado por Thomas More há séculos.
Porém, Kevin Kelly indica continuamente que ele jamais foi fascinado pela tecnologia e que, na sua vida cotidiana, faz dela um uso sóbrio, quase ascético. Com prazer e com uma boa dose de orientalismo, ele lembra a sua juventude como mochileiro, que, com pouco dinheiro, um par de calças jeans e poucas outras indumentárias, se aventurava em continentes desconhecidos para ele.
A Ásia, em primeiro lugar, terra de pobreza, mas também de um espiritualismo que Kelly considera como uma das descobertas mais importantes da sua vida. E visitou e se encontrou com muitos mosteiros e gurus nos seus anos de nômade. Mas o que ele trouxe para casa, assim que voltou para os Estados Unidos, foi aquela relação instrumental e, porém, impregnada de um respeito quase reverencial com relação aos artefatos que marca a relação com as máquinas nas sociedades principalmente agrícolas da Ásia. Tecnologias que permitam, segundo Kelly, viver uma vida menos exposta ao acaso. Não se sabe se ele voltou para esses lugares, que se tornaram, ao longo do tempo, locais para aquela world factory em que a tecnologia não coincide mais com poucos artefatos, mas entrou prepotentemente na vida social, tanto nas cidades como na zona rural.
Quando Kelly começa a colaborar com as primeiras revistas de informática ou a administrar as primeiras redes telemáticas – a mítica e californiana Well –, ele continua acreditando que a tecnologia é sempre um instrumento nas mãos dos humanos.
Cérebros de silício
Esse é o momento em que a vida de Kelly muda de verdade. Ele é sempre mais chamado a falar da "revolução do silício", e o público que se encontra diante dele não é mais constituído por jovens entusiastas do computador pessoal, mas também de profissionais e empresários que consideram a sua visão da nascente Internet como uma espécie de boa nova que redimensiona todas as inquietações e os temores com relação a uma tecnologia, a informática, que tem as potencialidades para reproduzir a vida da mente.
Kelly tranquiliza a todos: a Rede é o medium de um cérebro coletivo que ajuda os humanos. A década que fecha o século XIX são os anos em que Kelly exemplifica essa visão holística da Terra – a "grande mãe terra" – e da natureza humana que não é prerrogativa só de uma subcultura ingênua e resistente às intempéries que atingiram a sociedade norte-americana. Há, de fato, pesquisadores e historiadores da ciência estimados que a propõem.
No fundo, Fritjof Capra defende teses não muito distantes da que Kevin Kelly expressava naquele tempo. Diferentemente de muitos deles, porém, ele olha para a nova realidade produzida pela revolução do silício não como uma ameaça, mas como uma nova terra prometida.
Uma posição objeto de muitas críticas e de acusações pelo seu determinismo tecnológico e pelo seu cientificismo de sabor vagamente new age. Esse ensaio não quer, entretanto, conceder nada ao improviso. Quer ser uma crônica documentada do presente, porque é uma longa viagem para trás na história humana, do aparecimento do Homo Sapiens aos nossos dias, com o objetivo de explicar por que a tecnologia tornou-se technium.
Saltos de civilização
Por milhares de anos, a bagagem tecnológica dos humanos foi escassa, até quando começaram a falar. Isto é, a linguagem foi uma "tecnologia" que permitiu um salto de civilização. Por meio da linguagem, as informações podiam ser socializadas, colocando em ação assim mecanismos inovadores.
E, uma vez colocado em ação o desenvolvimento da tecnologia e de inovações relativas a ela, é impossível que ele seja detido. A palavra escrita, a imprensa, a circulação das informações, portanto, andaram lado a lado com a evolução das sociedades humanas.
Kelly está convencido disso, chamando para confirmar a sua tese antropólogos e um Charles Darwin que certamente jamais imaginaria que os seus estudos levariam a escrever uma frase como: "O ciclotron do melhoramento social é alimentado pela tecnologia".
Darwin, como se sabe, estava interessado na evolução e não na tecnologia, mas não é a primeira vez que a sua teoria da evolução é usada para explicar o desenvolvimento da tecnologia. Basta lembrar o livro de Brian Arthur La natura della tecnologia (Ed. Codice).
Mas Kelly leva essa homologia até o extremo, virando-a de cabeça para baixo. Rejeita, por exemplo, a centralidade em conferir a um indivíduo esta ou aquela descoberta científica, porque a descoberta se coloca sempre em um contexto em que as ideias vão pelo mundo até que alguém se defronta quase casualmente com elas, talvez porque estava trabalhando em outras coisas e consegue traduzi-las e sistematizá-las.
Usando a palavra convergência como uma varinha mágica, toda descoberta científica é fruto de percursos acidentais que têm como bússolas saberes nem sempre coincidentes, senão antitéticos.
Em outros termos, as descobertas científicas permitem aquela serendipity que Robert K. Merton considerou como a chave interpretativa da pesquisa científica. Apenas que a acidentalidade, a casualidade das descobertas científicas aceleram a constituição de um sistema autorregulado, fazendo com que a tecnologia se torne a locomotiva do agir social, político, econômico.
Ou seja, torna-se technium, uma "segunda natureza" que, enquanto tal, influi na evolução do animal humano. Como confirmação dessa interpretação, Kelly cita a famosa frase de Karl Marx – que estabelece o desenvolvimento das máquinas com o tipo de sociedade em que nós, humanos, vivemos.
Assim, se o moinho é funcional à sociedade feudal, a máquina a vapor dá vida ao capitalista. As tecnologias atuais, seguindo esse raciocínio, deram vida a um mundo harmônico, porque o computador, a Rede, as biotecnologias são tecnologias da harmonia.
Omitindo esse discutível curto-circuito teórico sobre o suposto determinismo tecnológico de Marx, não é muito produtivo indagar sobre a genealogia cultural das teses de Kevin Kelly. O que é interessante é a mudança de sinal que ele dá a elaborações teóricas – a megamáquina à la Serge Latouche, ou o sistema técnico do francês Jacques Ellul – que criticaram a tecnologia, fazendo-as se tornar elementos constitutivos de uma legitimação do "sétimo reino da vida".
Desse ponto de vista, é interessante a leitura dos capítulos em que são analisados atentamente os textos de Theodore Kaczynski, mais conhecido como Unabomber.
Na companhia do Unabomber
Provocativamente, Kelly declara o seu consenso com o que foi defendido pelo matemático Kaczynski sobre o poder da técnica nas sociedades modernas.
Mas, diferentemente do Unabomber, ele vê no poder da técnica – que certamente tem efeitos colaterais negativos, mas transitórios ou ligados a contingências específicas – a alavanca para uma sociedade que bane a alienação para fora dos seus muros.
Uma clássica operação de "mudança de sinal" de uma tese que apontava para uma crítica radical do "sistema técnico". O discutível, mas embora sempre antagonista primitivismo do Unabomber, é propedêutico para exaltar o mundo atual. Operação intelectual que ajuda a enquadrar melhor esse ensaio que tem a ambição de oferecer uma tese que reavalia o conceito de progresso como uma linha de desenvolvimento das sociedades que tendem sempre para o melhor e que, ao mesmo tempo, busca desenvolver um corpus analítico que responda às críticas sempre mais difundidas ao papel da Rede como catalizadora de novas infelicidades e principalmente de novas alienações.
Kelly, de fato, está convencido de que a web é um cérebro coletivo que reforça as capacidades cognitivas dos indivíduos e é, também, o protótipo de um "vivo" em que tecnologia e humanos se fundem.
Isto é, um ciborgue sem próteses mecânicas, mas que o é porque o "sétimo céu da vida" tornou-se o contexto que permite a tão cobiçada reconciliação com a natureza e em que as capacidades cognitivas dos indivíduos é quase ilimitada.
Nenhuma crítica da tecnologia como dispositivo funcional à sociedade do controle. Nenhuma leitura do conhecimento como produto da cooperação social. Enfim, nenhuma dúvida de que o nexo de causa e efeito entre desenvolvimento tecnológico e evolução humana possa ser lido como uma mudança antropológica em que alguns elementos tornam-se centrais a despeito de outros.
Em outros termos, podemos também estabelecer que Quello che vuole la tecnologia é um melhoramento das condições de vida, mas continua sendo uma hipótese que deveria ser verificada dentro de um quadro analítico em que a tecnologia é interpretada à luz das assimetrias de poder existentes na sociedade.
Porque só há melhoramento das condições de vida se o technium deixar de ser uma realidade diferente da humana.
Em busca de uma mente coletiva para tornar a humanidade livre
Escritor, fotógrafo e ensaísta, Kevin Kelly é uma figura típica da "cultura digital" norte-americana. Cofundador e diretor por muitos anos da revista símbolo da revolução do silício, a Wired, Kelly ganhou o prêmio National Magazine Award pela "Excelência global do produto".
O seu primeiro livro, já esgotado, traduzido para o italiano, em 1995, era Out of control, no qual o estudioso norte-americano prefigurava o desenvolvimento da Rede enquanto "cérebro coletivo".
Kelly também dirigiu revistas como Whole Earth Review, CoEvolution Quarterly, Signal. Com o fundador de Whole Earth Review, Stewart Brand, Kelly participou da criação de Well, a primeira "comunidade virtual".
Atualmente, Kelly promove um inventário de todas as espécies vivas, um projeto conhecido também como Linnaean Enterprise. O objetivo é realizar um catálogo na Internet de todas as espécies existentes em uma única geração (dentro de 25 anos).
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Máquinas da harmonia: a doce fusão entre humano e artificial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU