28 Novembro 2012
"Deus Pai Patrão cantado com rebenque e espora? Pode-se cantar, nem que seja só de brincadeirinha, em se tratando de nosso querido Pai do Céu, desse jeito como se canta por aí, às pampas: 'Deus é gaúcho, de espora e mango, foi maragato ou foi chimango?' Traduz isso a imagem que nos deixou Jesus de seu Pai, que ele chamava, em língua aramaica, de Abba, isto é, paizinho?", pergunta Antonio Cechin, irmão marista, militante dos movimentos sociais, autor do livro Empoderamento popular. Uma pedagogia de libertação. Porto Alegre: Estef, 2010.
Eis o artigo.
Hoje, dia 27 de novembro, em Arambaré, no estado do Rio Grande do Sul, convidados que foram, “leigos, diáconos, padres, bispos interessados numa autêntica pastoral gauchesca, para o 9º Encontro Tradicionalista Cristão” estão reunidos desde ontem, dia 26, para um debate, tendo como tema central a Missa Crioula.
É uma pena que um assunto como este, sobre a Missa Crioula, que à primeira vista parece eminentemente litúrgico, não mereça primeiro um debate num encontro de catequistas de larga experiência nos trabalhos de evangelização, quer de crianças, de jovens e de adultos, e que se tenham esforçado, com grande sentido de responsabilidade em serem fiéis ao sujeito, ao conteúdo e ao método de uma autêntica catequese.
A presença de algum bom teólogo junto aos catequistas a debates desse gênero, também é muito importante porque, depois do Vaticano II, qualquer teologia que se preze, deve ser eminentemente pastoral.
O Mestre de Nazaré deu como essencial à Igreja, a Missão de espalhar a Boa Nova do Evangelho. Catequizar ou evangelizar todos os povos a fim de fazer discípulos, ouso afirmar, é muito mais importante do que teologar. Não que menospreze a teologia. Apenas que ela vem depois, em seguimento a uma Catequese que realize primeiro a conversão à Fé Cristã, isto é, um verdadeiro encontro com a pessoa de Cristo.
Através de uma comparação, podemos expressar a relação Catequese-Teologia da seguinte forma. Nas capelas e igrejas antigas sempre havia o púlpito em que, na hora do sermão, o pregador galgava, a fim de fazer as homilias. Então, imaginemos um catequista diante de um grupo de 20 a 30 crianças, nos assentos de uma capela ou igreja. Realiza com capricho seu trabalho de catequizador ou evangelizador.
O teólogo, sem necessariamente ser visto, ficaria no púlpito totalmente concentrado na ação que o catequista realiza na catequese, a fim de observar atentamente e depois ajudar na crítica do trabalho realizado pelo missionário, catequista ou pregador da Boa Nova do Evangelho, com ele buscando um aprimoramento sempre maior da ação catequética. Com o máximo de detalhes valorizar os aspectos positivos e com honestidade chamar a atenção para as falhas, ou estratégias menos corretas segundo seu juízo. Em essência três questionamentos: houve fidelidade ao sujeito da catequese (isto é a cada criança em particular e a todo o grupo enquanto encaminhamentos no sentido de se transformar numa autêntica comunidade)? Houve fidelidade ao conteúdo da catequese que, obrigatoriamente deve ser cristocêntrica? Se houve fidelidade ao método que deve ser diferente segundo a idade, a realidade cultural, econômica, social, etc. em que vivem essas crianças?
Todos os autores de manuais de catequese que conhecemos, nos chamam sempre a atenção de que há, por vezes, dificuldades quase intransponíveis para o despertar de uma fé autêntica, mesmo em crianças. Por exemplo: para uma criança que nunca conheceu uma figura de pai, como explicar a ela que Deus é Pai? Se uma criança tem em casa o testemunho diuturno de um pai-padrasto, que a surra constantemente, como falar a ela que Deus Pai é só Amor?
Essas considerações iniciais nos conduzem à pergunta: Então o que dizer em relação a diáconos, religiosos, padres, bispos, catequistas que quando falam em gauchês às crianças o chamam sempre de patrão? Quando rezam a Deus se colocam em atitude de operário diante de um patrão?
Na Catequese devemos ter o maior cuidado em relação aos arquétipos, que segundo o psicólogo e psicanalista suíço C. G. Jung (1875-1961) são “imagens psíquicas do inconsciente coletivo que são patrimônio comum a toda a humanidade”.
Acham os propagandistas da missa crioula, que se trata de uma balela? De um exagero? Façam uma pesquisa dentro de uma fábrica, ou mesmo num grupo de cristãos da Pastoral Operária, pedindo que, numa folha de papel, coloquem tudo aquilo que lhes vem à mente referente à palavra patrão. Ficarão boquiabertos, até por vezes, uma sequência de palavrões.
Tenho em casa, na biblioteca, um livro intitulado “Pai Patrão” cujo autor é Gavino Ledda que teve a desgraça de ter na própria casa de criança pobre, um legítimo pai-patrão que o surrou constantemente, não só no tempo da infância, mas também no período da adolescência e da juventude. O livro serviu de base para um filme de mesmo nome. O próprio autor Gavino Ledda aparece em algumas cenas como protagonista, dando-lhe assim um caráter de maior autenticidade.
Sobre a cultura gauchesca, há um livro que todos os gauchistas religiosos deveriam pelo menos ler. É uma tese de licenciatura na universidade, de um cidadão baiano chamado Nivaldo Pereira, hoje professor da Universidade de Caxias do Sul, intitulado “Deus morto no Pampa” onde mostra que essa cultura representativa do típico gaúcho das fazendas e do campo, patrão de fazenda, latifundiário figadal inimigo do MST, é totalmente sem Deus e de religiosidade nenhuma. É de tal modo patrão, tão machista que, admitir Deus acima dele seria ser sinal de imaturidade. Inadmissível para ele, algum ser acima e maior do que ele.
A tese desse professor caxiense é que a cultura gauchesca matou o Paraíso Terrestre inicial do Rio Grande que foi a cultura guarani com sua utopia da Terra Sem Males e que, tão logo chegaram os padres evangelizadores e catequistas, aderiu plenamente ao cristianismo Missioneiro.
O tal de MTG nada mais é do que a tentativa de correr atrás do paraíso perdido dos primórdios, com sua economia eminentemente solidária e comunitária, de fazer morrer de inveja a todos quantos hoje costumam participar de Fóruns Sociais Mundiais.
Os heróis Missioneiros com Tiaraju e seus 1.500 companheiros mártires do Caiboaté, por esse pseudo-tradicionalismo totalmente inventado que anda por aí, ficaram substituídos pelos vilões-bandidos-farroupilhas, degoladores dos escravos negros que lutaram na linha de frente na guerra dos farrapos porque lhes havia prometido a liberdade quando findasse a guerra. Não foi o que aconteceu de fato. Preferiram os chefes do levante farrapo, matar todo o regimento dos Lanceiros Negros, a fim de poderem continuar eles, os grandes, escravocratas enrustidos.
A Missa Crioula que conheço não tem absolutamente nenhuma referência a pobre, nem mesmo ao gaúcho empobrecido, ou gaúcho a pé. Sabemos todos que o Deus dos cristãos tem um lado, que é o dos pobres. Os ricos? O Nazareno só dizia maldições contra eles.
Deus Pai Patrão cantado com rebenque e espora? Pode-se cantar, nem que seja só de brincadeirinha, em se tratando de nosso querido Pai do Céu, desse jeito como se canta por aí, às pampas: “Deus é gaúcho, de espora e mango, foi maragato ou foi chimango?” Traduz isso a imagem que nos deixou Jesus de seu Pai, que ele chamava, em língua aramaica, de Abba, isto é, paizinho?
Quando alguns anos atrás aconteceu o Fórum da Igreja Católica do Rio Grande do Sul, dois Institutos Teológicos, o de Santo Ângelo e o de Pelotas, prepararam uma palestra que se destinava a ser uma das mais importantes do evento. Era sobre um tema questionador por excelência, fundamental para qualquer evangelização digna desse nome: Haverá uma cristologia gaúcha?
Os organizadores do Fórum Eclesial Estadual, à última hora, descartaram o trabalho dos dois Institutos que teriam centralizado o evento no que é mais importante para a catequese do nosso Estado. O debate foi remetido para uma simples oficina em que não houve mais de 10 participantes.
Na verdade o gauchismo inventado de MTG, havia de tal modo impregnado os organizadores que até a escolha das datas da realização do Encontro de todas as dioceses do Rio Grande, fizeram coincidir com a Semana Farroupilha que começa sempre no dia 20 de setembro.
Aquele esmerado texto dos dois Institutos citados, num dos trechos conclusivos assinala:
”Não podemos cair na armadilha de, sob pretensão de inculturar o Evangelho, descobrir um rosto gaúcho para Cristo, acabarmos caindo na armadilha da ideologia do gauchismo que nos quer fazer cultuar mais o latifúndio do que o próprio Cristo. Sem dúvidas que esta cristologia promovida, sobretudo pelos padres tradicionalistas e entidades ligadas ao tradicionalismo é uma cristologia possível, e até mais do que isto, existente como absoluta quando se pensa em inculturação no Rio Grande do Sul. Porém, a partir do itinerário que fizemos podemos perceber que ela não é legitima e que posta diante de Jesus sucumbe a partir do sua encarnação no mundo dos pobres, no projeto e na execução da sua missão, da sua própria paixão, morte e ressurreição, bem como dos grupos, movimentos, comunidades que Ele gerou nas raízes do cristianismo e nos diversos grupos marginais da história do Rio Grande do Sul. Vimos ainda que a reação, que se dá dentro do Tradicionalismo sem rejeitá-lo em absoluto, promove uma inculturação perigosa, que facilmente descamba para aquilo que o MTG e seus aliados propõem.
É preciso desmistificar este gaúcho intencionalmente pré-fabricado que está, inclusive, em nossas cabeças e que por isto cria em nós um falso Jesus, também ideologicamente construído com um jeito que não corresponde ao real. Toda esta crítica ao modelo único de se pensar o gaúcho e a sua teologia cristológica parece “chover no molhado”, visto que hoje em dia esta não é mais, ao menos aparentemente, uma questão séria e atual com a qual a Igreja do Rio Grande do Sul deve se confrontar. Não teríamos assuntos mais sérios, atuais, pertinentes a serem enfrentados? Até pode ser que sim, porém, é preciso não esquecer que quando o nosso povo pensa Jesus Cristo gaúcho é com este rosto que o verá, quando chegar a semana farroupilha ou o MTG, os Sindicatos Rurais, a UDR, se encontrarem lá estará novamente a Missa Crioula pregando este Jesus. Aquilo que está presente de forma mais inconsciente, escondida, entranhada em nosso imaginário é o que desempenha maior influência.
Faz-se necessário encontrar o gaúcho real, originário, concreto, diverso deste engodo para que nele se encontre também o Cristo verdadeiro e pouco conhecido, a luz da razão e da representação, por nós gaúchos e gaúchas. Com isto, iremos perceber que o Rio grande do Sul não possui uma cristologia, mas várias, tantas como tão plural é nosso povo.
Após este acerto de contas com este dado distorcido de nossa eclesiologia gaúcha, de nossa pretensão de inculturação teológica e de nossas celebrações litúrgicas carregadas de ideologia, presentes na história de nossa terra poderemos descobrir muitas culturas e situações, e nelas muitas cristologias possíveis. Desde o gaúcho originário, desertor dos exércitos de Espanha e Portugal, mal visto, marginalizado, desrespeitador das cercas e das propriedades, passando pelos gaúchos missioneiros indígenas de uma das melhores experiências mundiais de sociedade igualitária, que foram os sete povos das missões, o gaúcho negro construtor das riquezas deste Estado, os antigos vigários de campanha sensíveis aos dramas dos pobres, até o gaúcho a pé do nossos dias, representado pelos sem-terras, pescadores, catadores, líderes do comunidades, grupos populares, movimentos ecológicos, dentre outros. Certamente cada um destes, traz no bojo de suas práticas, escrito nos livros de suas vidas, muitas facetas do Jesus Cristo que precisam ser lidas, estudadas, publicadas e sobretudo assumidas como um patrimônio do nossa fé”. (Eliezer Santos Oliveira - Professor do ITP/Pelotas-RS)
Concluindo,
1) é uma lástima que no Encontro em realização na cidade de Arambaré, nem ao menos se tenha proposto começar o debate da tal de Missa Crioula, lendo o texto da Missa da Terra Sem Males, produzida pelo modelo latino-americano de Igreja das Comunidades de Base, da Catequese Libertadora e da Teologia da Libertação. Esta é nossa verdadeira Missa Crioulo de um tradicionalismo da gema por ser de raiz;
2) quando se completam 50 anos de Vaticano II e 40 anos de Teologia da Libertação, desinteressar-se de lembrar esses grandes, para não dizer maiúsculos acontecimentos que marcaram para todo o sempre nossa Igreja no século XX e dealbar do XXI, início de um novo milênio;
3) e não é uma aberração trocar nosso tradicionalismo de raiz: o do Povo Guarani e a Catequese das Missões Jesuíticas com sua arrancada missioneira dos Sete Povos do Rio Grande, por esse tradicionalismo inventado desde a estaca zero? Como pode? Desprezar o Paraíso Terrestre inicial do Rio Grande precursor de toda uma economia eminentemente solidária que hoje estamos construindo particularmente por nossas Comunidades Eclesiais de Base e da Teologia da Libertação? Pode?
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Apelidar de Patrão o Deus Amor Pai de Jesus Cristo não é uma blasfêmia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU