27 Novembro 2012
Ler o novo livro do papa significa ser transportado para o mundo de Bento XVI, âmbito que, na maioria das vezes, parece distante do nosso mundo. As preocupações do papa não são as nossas, assim como os nossos problemas não são os dele.
A análise é do filósofo e biblista italiano Piero Stefani, especialista em judaísmo, um dos principais protagonistas do diálogo judaico-cristão na Itália e ex-professor das universidades de Urbino e de Ferrara. O artigo foi publicado no blog Il Pensiero della Settimana, 23-09-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O Preâmbulo do último livro de Joseph Ratzinger-Bento XVI, A Infância de Jesus, termina com estas palavras: "Espero que o pequeno livro, apesar dos seus limites, possa ajudar muitas pessoas no seu caminho com e para Jesus". Não há razão para duvidar de que essa declaração constitua a efetiva intenção do papa. No entanto, talvez ainda mais do que os dois volumes anteriores dedicados a Jesus de Nazaré (2007 e 2011), este último parece guiar o leitor não tanto para a compreensão do Jesus dos Evangelhos, mas sim para o conhecimento do pensamento de Joseph Ratzinger.
Isso ocorre, em boa parte, por causa do fato de que Bento XVI aplica aos dois evangelhos da infância, segundo Mateus e segundo Lucas, os mesmos critérios adotados para descrever a vida pública de Jesus Pouco espaço é dado à reflexão sobre o seu peculiar gênero literário e nenhuma atenção é reservada ao fato de que o evangelho mais antigo, o de Marcos, ignora qualquer referência à infância de Jesus
Ler essas páginas significa ser transportado para o mundo de Bento XVI, âmbito que, na maioria das vezes, parece distante do nosso mundo. As preocupações do papa não são as nossas, assim como os nossos problemas não são os dele. Várias vezes Ratzinger defende que as histórias contidas nos primeiros capítulos de Mateus e Lucas prospectam a concreta descida do universal a um tempo específico e a um lugar determinado. O autor da Infância de Jesus parece, ao invés, distante do tempo e do mundo em que é chamado a agir. A atitude teria traços de nobreza se fosse consciente. Ao contrário, torna-se evanescente se pretende, como deixa entender o autor, fornecer respostas convincentes para os problemas contemporâneos.
Se as reflexões contidas no texto respeitassem rigorosamente um gênero literário de tipo homilético-espiritual, o leitor encontraria nelas belas inspirações, algumas das quais seriam, com efeito, capazes de ajudá-lo a progredir no seu caminho de fé. No entanto, mesmo essas passagens são enfraquecidas pela pretensão do livro de ser não tanto uma meditação, mas sim uma apresentação histórica da primeira parte da vida de Jesus.
O alvo constante do livro de Ratzinger, muitas vezes declarado explicitamente, é a posição, compartilhada por grande parte da pesquisa bíblica atual, de que as histórias da infância de Jesus não são históricas no sentido factual do termo. Elas se apresentam, ao invés, como relatos teológicos, que não são verdadeiros porque correspondem aos acontecimentos como tais, mas sim porque enriquecem a compreensão da mensagem evangélica. O seu estilo se assemelharia, por isso, ao do midrash narrativo. Além disso, com base na polissemia própria do gênero – e este é o segundo grande objetivo polêmico de Bento XVI –, os de Mateus e Lucas são entendidos como dois relatos diferentes, significativos justamente por causa da sua irredutível diversidade.
A simples leitura do índice do livro atesta que a posição de Bento XVI é uma espécie de reproposição, em chave devota, do gênero do século XIX das "vidas de Jesus". O discurso, de fato, se desenrola através de uma espécie de sucessão cronológica de histórias provenientes tanto de Mateus quanto de Lucas. Com efeito, aqui e ali, o autor assinala algumas discrepâncias entre os dois evangelhos, mas, em todo o caso, estas são sempre reciprocamente compatíveis. A razão disso é simples: todas têm nas costas os mesmos eventos que efetivamente aconteceram.
O procedimento de Bento XVI é diametralmente oposto ao da pesquisa bíblica, que parte das fontes, as avalia, para depois se perguntar se, através delas, é possível remontar aos acontecimentos. Ratzinger parte, ao invés, do pressuposto de que os acontecimentos são verdadeiros em sentido factual e, no máximo, concede algumas diversidades nos modos pelos quais eles são teologicamente interpretados.
Tudo aconteceu na ordem dos fatos: a aparição do anjo a Zacarias no templo, a anunciação na casa de Nazaré, os sonhos de José, o nascimento em Belém, os reis magos, a fuga para o Egito, o massacre dos inocentes, e assim por diante. Na verdade, são justamente esses acontecimentos que revelam o autêntico significado das antigas profecias que permaneceram por séculos como "palavras à espera". O vaticínio de Isaías pronunciado em 733 a.C., relacionado a uma virgem dará à luz um filho, esperou por séculos para ser explicado. Toda tentativa de lhe dar razão permaneceu, no entanto, frustrado até o momento em que a passagem é citada por Mateus com relação ao nascimento de Jesus (de passagem, Ratzinger não se preocupa, de fato, em especificar que 'almah, em hebraico, significa mulher jovem; virgem se diz betulah) (cf. p.60-62).
Pode-se dizer que, durante séculos, pensou-se assim como Bento XVI faz agora. A afirmação não parece totalmente evidente. Basta dizer que uma grande parte da iconografia das histórias da infância deriva dos evangelhos apócrifos (em particular, o chamado Proto-Evangelho de Tiago). Quando ela era retratada, ninguém se preocupava se a palma que se inclinou para a pequena família em fuga para o Egito (representada em vários mosaicos antigos) correspondia ou não a um fato histórico. O mesmo vale para "o casamento da Virgem", tornado celebérrimo por Rafael.
Não se pode dizer explicitamente qual é o pensamento de Ratzinger a respeito (em todo o livro, não há nenhuma referência aos apócrifos), mas parece razoável considerar que nem ele daria crédito a essas narrações, que, não por acaso, são justamente apócrifas. Bento XVI, além disso, declara abertamente a historicidade do profeta não judeu Balaão (p. 107), enquanto se cala sobre o fato de se o mesmo critério também pode ser estendido para a sua jumenta falante (Nm 22, 22-35).
Ratzinger insiste muitas vezes sobre o fato de que o texto evangélico deve falar também a nós. Esse pressuposto hermenêutico relativizaria o porte do acesso histórico que esses escritos permitiram a um passado remoto. Trata-se de um argumento reversível como uma luva. A instância de obter uma compreensão histórica é, de fato, tipicamente nossa. O texto bíblico não pode falar para nós, modernos, independentemente desse tipo de abordagem que, é óbvio, não é, nem quer ser, absoluto. Além disso, todo documento deve ser considerado em si mesmo histórico, não no sentido de sempre narrar eventos que realmente aconteceram, mas sim enquanto testemunha as convicções de quem os produziu. Justamente o pressuposto de que esses textos devem nos falar induz a considerá-los como narrações teológicas.
Se o interesse pelo livro fosse circunscrito àqueles que se ocupam do pensamento do seu autor, esse terceiro e conclusivo volume sobre Jesus seria até útil. Infelizmente, as coisas, com toda a probabilidade, ocorrerão de modo diferente. Isso acontecerá por causa do silêncio público (e da discordância privada) manifestada por muitos biblistas. Eles não se sentirão livres para falar e aceitarão sem replicar os golpes que, de modo brusco, Joseph Ratzinger inflige – nesse caso, com pouca humildade – contra estudos realizados com perspicácia e erudição imensos. Visto nessa ótica, o sintoma é grave.
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O mundo de Joseph Ratzinger - Instituto Humanitas Unisinos - IHU