26 Novembro 2012
Na Ação Penal 470, "a autonomia do Poder Judiciário experimentou o seu batismo de fogo, podendo-se sustentar que agora completamos, cabalmente, a passagem do tipo de Direito Repressivo, em que o direito se encontra subordinado aos fins do poder político, para o do Direito Autônomo, um governo de leis, e não de homens", escreve Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da PUC-RJ, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 25-11-2012.
Segundo ele, "a sociedade, seus três Poderes, partidos, sua esfera pública não saem iguais ao que eram antes dessa Ação Penal 470. Decerto que não foi uma revolução, que, entre nós, nunca merece esse nome" mas "ficou à vista de todos que já passou a hora da reforma de nossas instituições políticas, de criarmos partidos representativos da nossa rica vida social de hoje".
Eis o artigo.
Dois importantes processos da vida republicana, a sucessão municipal e a Ação Penal 470, já são deixados para trás, páginas viradas do nosso folhetim, mas que deixam boas lições para que se recuperem os fios dessa obra coletiva que tem sido a nossa História desde a democratização do País nos idos de 1985. A melhor delas está na oportunidade para o pleno assentamento da República e de suas instituições, na esteira de um julgamento, pela mais alta Corte do Judiciário, de membros influentes da coalizão partidária governamental, quase todos condenados a penas severas, sendo, como notório, que oito dos seus magistrados foram selecionados, para a aprovação do Senado Federal, por livre discrição da chefia do Poder Executivo sob comando do PT.
Nesse episódio, a autonomia do Poder Judiciário experimentou o seu batismo de fogo, podendo-se sustentar - tal como na modelagem da pequena obra-prima de Philippe Nonet e Philip Selznick, Direito e Sociedade: a Transição ao Sistema Jurídico Responsivo (Editora Revan, Rio de Janeiro, 2010) - que agora completamos, cabalmente, a passagem do tipo de Direito Repressivo, em que o direito se encontra subordinado aos fins do poder político, para o do Direito Autônomo, um governo de leis, e não de homens. Sempre se pode tentar desqualificar o ineditismo dessa passagem com o fato de que é da tradição das nossas Constituições republicanas dispor sobre o princípio da autonomia do Judiciário. Mas uma coisa é o caráter simbólico das leis e algo bem diverso, a sua efetiva eficácia, como agora, quando que elas se impuseram, diante de uma circunstância concreta e por fatos delituosos determinados, a um poder político vitorioso em três sucessões presidenciais consecutivas, submetendo a julgamento e condenando vários dos seus dirigentes.
Os efeitos em cascata dessa decisão devem reforçar as instâncias de controle do poder, como o Ministério Público e os Tribunais de Contas. Mas, sobretudo, em razão da alta voltagem com que a opinião pública se envolveu no curso da longa tramitação do julgamento, ora em finalização, no Supremo Tribunal Federal (STF), já consagram a Carta de 88 e o papel da Corte Suprema como seu guardião, uma vez que, bem para além de se manifestarem sobre um caso penal concreto, os juízes se detiveram nas suas repercussões sobre a concepção de República na forma que o poder extraordinário do constituinte deu à luz, em que muitos pareciam estar presentes numa sessão do Senado Romano.
Os maus presságios sobre a Carta Magna, em que tantos identificaram mais um instrumento simbólico, do tipo das Constituições programáticas, características dos tempos de fastígio do Welfare State (Estado de bem-estar social), se já tinham sido infirmados de modo robusto pela prática política, inclusive pela ação do PT - partido que, na verdade, foi um dos principais responsáveis por conceder vida a muitos dos seus novos institutos, como o das ações de controle de constitucionalidade das leis e o das ações civis públicas, com frequência consorciado ao Ministério Público -, se dissiparam no ar. A nossa Lei Maior e as suas instituições, com o processo da Ação Penal 470, foram, afinal, recepcionadas, para brincar com as palavras, pela opinião pública.
Os sinais emitidos pela sucessão municipal, por sua vez, com seus resultados, em boa parte, favoráveis a candidatos e partidos de programas orientados por agendas de políticas públicas socialmente inclusivas, puseram em evidência que os canais e instrumentos da democracia política são aptos a conceder passagem às expectativas por mudança social, dispensando atalhos, em particular os sombrios. Deve-se interpretar a firme defesa de princípios e valores que se fez ouvir do plenário do STF, bem longe de uma chave moralista vazia de conteúdo, como a confirmação dos rumos traçados pelo constituinte, inequívocos em sua disposição farta de meios para que os fins da democratização social venham a ser atingidos pela via da República e de suas instituições.
Nesse sentido, contrariamente ao que muitos sugerem, o episódio que ora se encerra não guarda relação com o intrincado tema da judicialização da política. Em linguagem de Jürgen Habermas, um inimigo notório de intervenções judiciais no campo da política, o julgamento do Supremo Tribunal, tudo bem contado, fixou-se na salvaguarda do "núcleo dogmático" - uma expressão dele - de uma Constituição democrática, qual seja nos procedimentos que garantam uma livre e igual competição política a fim de que a soberania popular não seja contaminada, ou pior, colonizada pelo poder da administração e do sistema econômico.
Daí o paradoxo irônico desse julgamento, uma vez que as razões emitidas em seus votos pelos magistrados, membros de uma Corte não poucas vezes acusada de usurpar poderes do Legislativo - o caso do reconhecimento civil da união afetiva das relações homoeróticas, entre outros, é paradigmático -, que calaram mais fundo na opinião pública, versaram sobre o tema da soberania popular e da sua representação, que teriam sido objeto de emasculação pelo poder político.
A sociedade, seus três Poderes, partidos, sua esfera pública não saem iguais ao que eram antes dessa Ação Penal 470. Decerto que não foi uma revolução, que, entre nós, nunca merece esse nome, como as de 1930 e de 1964, que apenas mudaram para conservar o que já estava lá. Para o bem ou para o mal, nossa História não é amiga da ruptura, mas ficou à vista de todos que já passou a hora da reforma de nossas instituições políticas, de criarmos partidos representativos da nossa rica vida social de hoje, e não essa coleção patética de siglas a nuclear em torno de si pequenos interesses paroquiais vivendo da política, material comburente dessa forma nefasta de presidencialismo de coalizão que nos governa sem alma e sem direção, embora nunca perca de vista seus objetivos de reprodução.
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