09 Novembro 2012
Presa entre duas forças antagônicas, que se combatem mutuamente com uma violência descontrolada, a população de bairros periféricos é a maior prejudicada na crise da segurança pública de São Paulo. "Esta população precisa ser libertada", afirma o coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), Sergio Adorno. Autor da tese "A Gestão Urbana do Medo e da Insegurança", Adorno argumenta que, mais do que reduzir índices de criminalidade, como vem ocorrendo no país, é preciso garantir que a população se sinta segura, sobretudo perante as forças policiais, que devem ser o lastro do estado de direito.
A entrevista é de Diego Viana e publicada pelo jornal Valor, 09-11-2012.
Eis a entrevista.
Como a onda atual de violência em São Paulo se compara com os eventos de 2006?
Em 2006, houve também rebeliões nas prisões. Podíamos reconhecer a origem dos ataques, sabíamos quem eram as lideranças, que eram mais ou menos centralizadas. Agora, ainda não houve rebeliões nas prisões, então não sabemos se as pessoas que estão por trás dos acontecimentos, hoje, são as mesmas. Podem ser outras facções que surgem para disputar o poder. Outra coisa que não conhecemos é a eventual participação de policiais no conflito atual. Mas há uma mudança de cenário, porque estamos numa curva acentuada de declínio de homicídios. Os demais crimes, contra o patrimônio, por exemplo, embora ocorram em números altos tanto absolutos quanto proporcionais, também estão com tendência de cair. Mas isso não significa que a população tenha percebido essa queda como sinal de maior tranquilidade na vida. A sensação de intranquilidade ainda é muito grande. Isso é muito relevante.
Há vínculos entre a onda atual e outros crimes recentes, como assaltos a condomínio?
O que sabemos é que as operações do crime organizado dependem da circulação monetária. Ou ela é feita através da lavagem de dinheiro no sistema financeiro, a despeito dos enormes constrangimentos que têm sido introduzidos nos últimos anos, ou ela é feita através de operações subsidiárias: assaltos nas ruas, em condomínios, contrabando. Isso tudo, de alguma maneira, financia localmente as atividades do comércio ilegal de drogas e eventualmente de armas. Não posso afirmar que é o que está acontecendo agora.
Qual é o maior empecilho para a obtenção dessas informações?
Este é um momento em que a população não fala. Tem medo de retaliação. A principal vítima dessa história é a população, bombardeada pela sensação de insegurança. Parece que a cidade toda está insegura, quando não podemos dizer que isso é verdadeiro, porque, ao contrário do que aconteceu em 2006, as atividades em geral não foram paralisadas. O comércio funciona, bancos, escolas, universidades, os serviços públicos. O cenário é muito diferente de 2006.
Há toques de recolher...
Eles tanto podem ser rumores, reações de percepção da insegurança local, quanto fatos. Sabemos que ocorrem de fato em alguns lugares as ordens de fechamento do comércio, de ficar em casa. Muitas vezes o rumor produz fatos, também. Alguém diz para o vizinho: não saia, porque o ambiente está inseguro; ainda que não tenha visto nada. O momento é muito nebuloso. Aqueles que são vítimas potenciais moram em bairros onde as taxas de homicídio são as mais elevadas. Essas pessoas vivem no pior dos mundos. Estão pressionadas, por um lado, pelo crime organizado do bairro, mas também pela polícia. Essa população precisa ser libertada. Ela está acuada no meio de duas forças antagônicas.
Há caminhos para essa libertação?
A principal questão é o modo como o poder público comunica suas atuações. Temos de exigir das autoridades que investiguem esses acontecimentos até o fim. Não é aceitável para ninguém, nenhum cidadão brasileiro, que policiais sejam mortos, mesmo aqueles dos quais se suspeita que tenham envolvimento com o crime. Se há suspeita, temos mecanismos institucionais para que eles respondam pelos crimes que lhes foram imputados. O círculo de vinganças, em que morre população por um lado e policiais por outro, cria uma situação de insegurança, porque a população enxerga um descontrole do sistema. Temos de saber com clareza o que acontece e quais são as medidas que o governo está tomando para controlar a situação.
Como esse conhecimento se traduziria em melhorias da segurança?
É preciso ressaltar que não é uma questão de governo, mas de Estado, que deve envolver as esferas estaduais e federal. Temos de ter políticas que protejam os cidadãos. O estado de direito faculta à polícia o uso da força, mas não o uso arbitrário da força. Não se pode estimular o policial a sair por aí interpelando qualquer cidadão de bairros periféricos com truculência. Se policiais se sentem implicitamente autorizados a isso, é um tiro no pé. Aumenta a desconfiança da população. Precisamos, ao contrário, aumentar a confiança. Para isso, é preciso que a polícia investigue e ofereça proteção à população, que deve se sentir segura diante da polícia. Entendo que a situação cause uma grande tensão em policiais honestos, que seguem o regulamento. Mas não se pode, em nome disso, cometer abusos, que podem provocar mortes de pessoas sem envolvimento com o crime. É muito importante que haja investigação séria, serviço de inteligência, que o governo dê sinais de que age dentro da lei, respeita os direitos da população e investiga de verdade as mortes de policiais - um fato grave do ponto de vista do estado de direito.
Quais são as especificidades do cenário paulista, que está na berlinda agora?
É difícil dizer o que é específico, a não ser o fato de que um grupo, na disputa com outras facções, conseguiu vencer e conquistar o monopólio do poder, controlar as prisões e vários bairros. Os estudos sobre o PCC mostram um processo de duas décadas de monopolização do poder. Essa é uma particularidade paulista, que pode ter influenciado, em parte, a redução das mortes desde o início dos anos 2000 em São Paulo. O movimento do crime provavelmente cresceu e se enraizou em vários bairros do município e da região metropolitana porque o Estado esteve ausente por longo período. Eles aparecem como alternativa diante da ausência de uma sociedade justa, com a aplicação das leis, serviços funcionando adequadamente.
A diferença para outros Estados é a ausência de concorrência no crime? O domínio desse grupo é absoluto? Ou, ao contrário, o surto de violência pode sinalizar uma perda de controle?
Sabemos que esse monopólio é precário. Pode ser rompido a qualquer momento pelos conflitos internos e disputas com outros bandidos. Essa é uma hipótese para o que está acontecendo agora. Mas também podem estar acontecendo perturbações mais complexas, como mudanças na economia do crime, na circulação de mercadorias, na distribuição. Devemos considerar, também, o conflito entre o mundo do crime e a polícia. Temos de levar em conta a queda muito acentuada nos homicídios em São Paulo desde 2000. Esse dado vem sendo muito divulgado pelo governo e repercutido pela imprensa, então o ciclo novo de crimes que estamos presenciando pode ser apenas conjuntural. Mesmo assim, ele assusta: os homicídios vão voltar a subir? Não sabemos ainda.
As iniciativas para reforçar a segurança pública nos últimos 20 anos, nos Estados e na União, foram insuficientes?
Não sou daqueles que acham que não aconteceu nada nos últimos 20 anos em segurança pública. Pela evolução dos acontecimentos e pela pressão da sociedade civil, houve uma aproximação das políticas de segurança com as demandas da sociedade civil. O intercâmbio da universidade com os sistemas de segurança é muito maior do que no passado, e desde o governo Fernando Henrique há uma crescente tendência a uma política nacional de segurança, com diretrizes uniformes. O problema da segurança hoje não é exclusivo de um Estado. O crime organizado, hoje, atravessa fronteiras, não se limita a um território. Não podemos ter uma política puramente estadual, as implicações são nacionais. Apesar dos avanços, estamos muito longe de uma política de segurança eficaz. O contrabando de armas continua, a porosidade das fronteiras é enorme, a circulação de negócios ilegais é fácil. Com isso, vem o lado perverso: a corrupção, os ciclos periódicos de vingança, que envolve as facções entre si, mas também as facções e a polícia.
A melhoria da renda do brasileiro, na última década, se refletiu na segurança pública?
Comparando indicadores socioeconômicos com indicadores de segurança, vemos correlação maior do que, por exemplo, a taxa de encarceramento. A queda da criminalidade foi maior nas áreas de maior vulnerabilidade social, com índices de desenvolvimento humano piores, beneficiando as populações mais pobres. Jovens, negros, aqueles que pertencem aos grupos de renda mais baixos, das áreas de infraestrutura mais precária. Mas temos de ler isso com cautela, porque há a relação, mas para saber como se dá essa relação é preciso recorrer a estudos qualitativos. Pode ser efeito na qualidade das relações sociais no bairro: as pessoas ficam mais solidárias, evitam conflitos banais, cria-se um lastro de reciprocidade que gera a sensação de que é melhor estar juntos do que cada um por si. Isso pode revigorar os laços de cooperação interna e o laço dos cidadãos com as instituições. Mas é um processo de décadas.
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"A principal vítima é a população". Entrevista com Sergio Adorno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU