Por: Cesar Sanson | 17 Setembro 2012
Dono de um reformismo “lento”, o chamado lulismo promoveu no quadro partidário brasileiro uma reorganização radical. Tomando como ponto de partida o Brasil de 2002, o panorama atual oferece uma distância imensa daquilo que se via no começo da década. A começar pelo DEM, que de fiel aliado do partido do poder, então o PSDB, passou à condição de figurante e à admissão de que poderá ter de se unir a outra sigla para continuar existindo.
A grande fuga conservadora resultou na criação, em 2011, do PSD, o cais perfeito para quem notou que era necessário viajar em direção ao lulismo para evitar a morte política. André Singer, professor do Departamento de Ciência Política da USP e porta-voz do governo de Luiz Inácio Lula da Silva entre 2003 e 2007, acredita que este é um dos sinais evidentes de realinhamento provocado pela alta popularidade e pelas linhas-mestras delimitadas pelo mandato do petista.
Autor de Os Sentidos do Lulismo – Reforma Gradual e Pacto Conservador, Singer reflete em entrevista à Rede Brasil Atual sobre o realinhamento eleitoral, com impactos na organização política brasileira. Para o professor, o processo político iniciado em janeiro de 2003 e ainda em curso não tem os traços de um reformismo acelerado e tampouco se enquadra em um processo neoliberal. É, então, um reformismo lento, ou gradual, no qual o governo é o intermediário da negociação de classes, evitando a ruptura com qualquer dos lados.
Nas eleições realizadas entre 1989 e 2002, o ex-metalúrgico sofreu a oposição das classes mais baixas e recebeu votação mais forte nas camadas médias, herdeiras naturais da fundação do Partido dos Trabalhadores. Mas o exercício do governo mudou a situação. O mensalão, de um lado, afastou os eleitores tradicionais. A criação de emprego, o aumento do poder de compra e as políticas sociais trouxeram para o lulismo a fidelidade das classes baixas. Na esteira disso os partidos tiveram de se realinhar.
Para Singer, o eleitorado brasileiro tende massivamente ao centro neste momento, o que força o PSDB a buscar uma estratégia que não o deixe restrito à classe média clássica. “Tem de compor um programa, uma plataforma popular, e essa é na verdade a grande dificuldade do PSDB: encontrar um modo de ser um partido com capacidade de diálogo popular”, avalia.
A seguir, a primeira parte da entrevista concedida a Tadeu Breda e João Peres da Rede Brasil Atual, 16-09-2012.
Eis a entrevista.
O aparente novo patamar do PSB, pós-2010, e a fundação do PSD, são fenômenos que contribuem para a manutenção do reformismo lento? Ou não é um fenômeno novo?
Esses dois fenômenos partidários recentes têm de ser analisados a partir de uma ótica específica. Na verdade, acho que o PSB veio crescendo nas asas do lulismo. Isso é muito claro, se você olha pra trajetória do governador Eduardo Campos, em Pernambuco, mas também acho que se aplica ao caso do governador Cid Gomes, no Ceará: são setores que se alinharam com o lulismo, tinham força regional, sobretudo no Nordeste.
O fenômeno novo é que se criou uma certa rivalidade entre PT e PSB. Esse é um fenômeno muito recente, que diz respeito à conjuntura das eleições municipais, e nós não sabemos muito bem onde isso vai dar: pode tanto ser o início de um movimento de separação, quanto pode ser uma oscilação dentro de uma aliança que vai se manter. Eu diria que o PSB talvez esteja procurando mais espaço no arranjo partidário. Até aqui, é isso. Há indicações – mas isso precisaria mais tempo pra comprovar – de que o lugar buscado pelo PSB é um lugar parecido ao do PMDB. Isso implicaria num certo deslocamento ideológico do PSB, porque este sempre foi um partido do campo da esquerda, e o PMDB é claramente um partido situado ao centro e, por isso, pode se compor tanto com o campo da esquerda, quanto da direita.
E no caso do PSD?
O caso do PSD é um pouco diferente, porque este é, ao meu ver, um sintoma do realinhamento eleitoral. À medida que há um realinhamento, que se constrói uma nova maioria, você fixa uma nova agenda política. E uma das coisas que o realinhamento produz – se eu estiver certo de que houve um realinhamento – é um fenômeno de longo prazo. Como ele fixa uma agenda, ele obriga as forças políticas a se reordenarem. Então, o que acontece? Dentro do período do realinhamento atual, que é marcado por essa ideia de combate à pobreza, não dá pra você ter uma oposição que se coloca contra, porque ela perderia sistematicamente as eleições.
Acho que a criação do PSD é a expressão disso, quer dizer, setores dentro do DEM perceberam que numa linha de oposição frontal a esta política, vão perder. Então, eles nitidamente se deslocaram a uma posição de centro, paralela à posição do PMDB. Eles estão tentando disputar o espaço com o PMDB, que é um espaço de um partido que pode se compor tanto com a direita, quanto com a da esquerda. Esse é o jogo do PSD. Ele pode ter essa aliança com o PSDB em São Paulo, mas apoiar o PT, por exemplo, em Belo Horizonte. Ele foi pensado, ao meu ver, dentro de um cálculo estratégico que leva em consideração o que eu chamo de realinhamento.
Em termos das eleições nacionais, a tônica vai ser essa oposição entre um partido que tem um projeto mais popular e um que defenda a bandeira da classe média?
Acredito que sim. Para ser eleitoralmente competitivo, o partido de oposição, no caso, o PSDB, não pode se restringir à classe média porque perderá as eleições no Brasil, sempre. Usando critérios de mercado – que não são os melhores, evidentemente –, as chamadas classes A e B nunca passam de 15% no país. Um partido que se coloca como representante desse setor não ganha nunca. Embora ache que o PSDB seja de fato uma opção com forte ressonância na classe média – e seja também um projeto de mercado, de oposição a um projeto de Estado, representado pelo PT –, ele não pode expressar essas duas condições claramente. Tem de compor um programa, uma plataforma popular, e essa é na verdade a grande dificuldade do PSDB: encontrar um modo de ser um partido com capacidade de diálogo popular. Eles estão buscando os caminhos.
Você relativiza o alardeado crescimento da classe C, mas em que medida esta ascensão pode fazer com que o PT perca votos caso a nova classe média passe a se identificar com o PSDB, como já ocorre com a classe média tradicional?
A classe C efetivamente cresceu, mas não acho que a classe C seja propriamente uma classe média. Se você olhar estatisticamente, é uma classe intermediária. Não é uma classe média que tenha um padrão de vida que se aproxima ao da classe média tradicional. Eu tendo a achar que é mais uma nova classe trabalhadora.
Minha intuição é que estamos lidando com dois tipos de estrato dentro daqueles que tiveram uma melhoria das condições de vida durante o período lulista. Houve 30 milhões de pessoas que saíram da linha de pobreza. Mas, dentro dessas, uma parcela pequena, em vez de subir um degrau, subiu três degraus. Este grupo que subiu três degraus talvez seja passível de um voto mais conservador, por alguns motivos. O primeiro talvez seja uma ausência de percepção de que sua ascensão foi resultante de políticas públicas, que foram resultado de um embate político, que no fundo é um embate de classes. A política lulista não deixa isso claro.
Em segundo lugar, talvez possamos identificar uma tendência que eu chamaria de dessolidarização das pessoas que melhoraram um pouco mais em relação àquelas que ainda precisam, por exemplo, da transferência de renda. Quando a mudança se dá em termos individuais, ou seja, quando uma pessoa consegue furar o bloqueio da pobreza e melhorar um pouco de vida, diz a sociologia que essa pessoa tende a se identificar mais com quem está em cima, que é o lugar pra onde ela quer ir, do que com quem está embaixo, que é o lugar de onde ela veio.
Eu diria que num primeiro momento a classe C continuará votando com o lulismo, e vai adotar um outro caminho. Por exemplo, essa onda de greves que houve na construção civil nas grandes obras da Copa, no Norte do país, parece indicar que tem uma retomada do movimento de luta da classe trabalhadora, que não tem nada de conservador.
Na Argentina, o peronismo passou por um processo de apropriação que o descaracterizou. É direita, esquerda, é tudo. O lulismo está em uma disputa parecida?
Acho que sim. Talvez tenhamos de rever o fenômeno do getulismo no Brasil. Nós tivemos um getulismo, que talvez pra gerações como a sua, e em parte, como a minha, ficou um pouco apagado. Talvez pelo suicídio de Getúlio, pelo golpe de 1964. O fenômeno getulismo é algo pra olhar como antecedente do lulismo. Respondendo sobre sua dúvida sobre o fenômeno do peronismo, sem dúvida, sim. O deslocamento do DEM pro PSD, o próprio comportamento do PSD dá margem a isso. São setores políticos que percebem que o lulismo é um arranjo, é um modelo, um programa eleitoralmente muito forte, e vão se colocar dentro dele. À medida que se coloquem dentro dele, tentam se apropriar dele também, com sua própria visão.
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Reformismo 'lento' mudou quadro partidário, diz ex-porta-voz de Lula - Instituto Humanitas Unisinos - IHU