23 Março 2012
Do pódio presidencial ao púlpito, dos reatores nucleares ao Evangelho, a parábola de Jimmy Carter (foto), ontem presidente e hoje pregador, se completou.
A reportagem é de Vittorio Zucconi, publicada no jornal La Repubblica, 21-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há mais ou menos 40 anos, quando ele se fazia fotografar ensinando a Bíblia às crianças, isso parecia ser um truque eleitoral, um recurso publicitário para seduzir votos devotos.
Mas essa fé de Jimmy Carter, 39º presidente dos Estados Unidos que passou para a história com uma auréola de insucessos e de impopularidade, era uma fé verdadeira, profunda, sofrida, assim como a sua dificilíssima administração.
Tendo chegado aos 87 anos de vida, uma idade em que mentir para os outros e para si mesmo é inútil, James Earl Carter, "Jimmy, o Dentão" por causa de seu deslumbrante sorriso equino, chegou à sua quinta encarnação. De cultivador de amendoim nas planícies infinitas da sua cidade do Sul, chamada justamente de Plains, a oficial de tripulação dos submarinos adepto aos reatores nucleares. De oficial a homem político até a máxima poltrona nacional em 1976. De presidente a incansável missionário secular global pela paz, pelos direitos dos palestinos, pelo respeito das regras eleitorais nas democracias recém-nascidas, a passagem ao apostolado místico era inevitável.
Ele saíra da Casa Branca em 1981, com apenas 57 anos, derrotado por um Ronald Reagan e por uma América que se haviam cansado com a sua honestidade um pouco deprimente e sonhavam com o retorno às ilusões de grandeza de uma América como "luminosa cidade sobre a colina".
A recordação do seu histórico sucesso ao convencer os israelenses e egípcios a uma paz, que custaria a vida de Anwar Sadat, mas que pouparia ao Oriente Médio ao menos uma guerra de destruição total, foi ofuscada pela profunda recessão econômica, pelo aumento furioso dos preços dos combustíveis – sempre uma armadilha letal para os presidentes no sinal do "se aumenta a gasolina, o governo é ladrão" – e pela humilhação infligida por Khomeini com o rapto da embaixada norte-americana no Teerã.
Outros presidentes que saíram em ruínas da sua aventura no mais alto trono se consolariam jogando golfe, como o honesto Ford, escrevendo memórias autoabsolutórias, como o resmungão Nixon, ou se diluindo no esquecimento, como George W. Bush, o desaparecido da história norte-americana, o nome que nenhum dos candidatos republicanos à Casa Branca não ousa nem pronunciar.
Mas Jimmy, que havia adotado, pela primeira vez, como seu nome oficial não o "James" escrito na certidão de nascimento, mas sim o apelido Jimmy, tinha a sua própria fé cristã, refugium trombatorum, além de peccatorum. Logo ele recomeçou a pregar na Igreja Batista de Maranatha, entre as nogueiras de Plains.
Haviam lhe proposto um púlpito televisivo, que ele sempre recusou, por ser muito ostentação, muito descaramento para a sua modéstia. Nos congressos do seu partido, o Democrata, ele aceitou, como penitência, fazer aparições nas horas em que ninguém assiste à televisão, para não reavivar más memórias no partido e no eleitorado.
Mas nos 30 anos decorridos desde a sua expulsão do paraíso artificial da política, "não passou um dia em que eu não li alguma página da Bíblia". E não houve noite em que, antes de dormir ao lado da esposa Rosalynn, a ex-cabeleireira da cidade natal com a qual está casado há 66 anos, desde julho de 1946, ele não tenha discutido com ela uma passagem do livro: "Justamente ontem à noite, Rosalynn e eu discutimos Mateus 10, 34, em que o Senhor diz que não veio trazer paz, mas a espada. Acredito que ele quis dizer que veio para subverter a alma, para trazer o sinal da contradição a nós", disse ele em uma entrevista.
Agora, ele publicou um novo estudo, uma exegese da "Bíblia segundo Jimmy", que lhe valeu a ironia de alguns blogueiros anticarteriano, pelos quais foi logo rebatizado como "o Quinto Evangelista". Mais modestamente, a obra se intitula Niv: Lições de uma vida bíblica – As reflexões pessoais de Jimmy Carter, em que Niv é a New International Version [nova versão internacional] dos textos sagrados publicada no mundo anglófono nos anos 1970, entre muitas polêmicas. Assim como certamente são polêmicas as teses de Carter sobre os pontos críticos da chamada "moral" desfraldada pelos neofundamentalistas.
"Na minha Igreja de Maranatha (de uma expressão em aramaico, a língua dos Evangelhos, que significa: "Vede Aquele que vem"), os gays podem se casar, e isso está muito bem", pregou Carter também nas suas aparições televisivas. "A homossexualidade certamente era mais difundida até no mundo antigo, mas Cristo não diz uma única palavra de condenação ou de discriminação. Nas suas cartas aos Gálatas, o apóstolo Paulo escreve que Deus não faz nenhuma diferença entre homens e mulheres, e eu não vejo por que o Estado, que não representa ou não deve representar nenhuma religião ou denominação, deveria fazer isso. Por isso, eu saí da Igreja Batista do Sul, por ser muito intolerante e discriminatória".
Esse não é o tipo de homilias que a severa interpretação da mensagem cristã hoje dominante desejar ouvir, e hoje um Jimmy Carter não seria sequer eleito ao cargo de agente da carrocinha. Mas, na sua "quinta encarnação", a sós com sua esposa no já silencioso tálamo noturno, Jimmy Carter pode contemplar sereno o mais severo dos eleitores: sua própria consciência.
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De presidente a pregador: a última reencarnação de Jimmy Carter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU