Por: Jonas | 17 Fevereiro 2012
Enquanto o sistema imperante no mundo não tem respostas às demandas sociais, como consequência da crueldade do neoliberalismo, as lutas e os protestos de movimentos como os “Indignados” e os “Ocupa”, convidam para o “otimismo trágico”, afirma o cientista social português Boaventura de Sousa Santos, explicando que em meio às múltiplas dificuldades estão surgindo alternativas sustentadas pelo que denomina sociologia das emergências e por novos processos de produção e de valorização de conhecimentos válidos, científicos e não científicos, que reconhece em sua teoria da Epistemologia do Sul.
A entrevista é de Fernando Arellano Ortiz, publicada no sítio Cronicón, 02-2012. A tradução é do Cepat.
Os pressupostos da Epistemologia do Sul são a ecologia dos saberes e a tradução intercultural, que projetam um pensamento alternativo baseando-se nas experiências práticas, nas lutas sociais e em trabalhos de campo, nos diversos cantos do mundo.
Santos explica, tanto em seus textos como em suas conferências, que a ecologia dos saberes é “o diálogo horizontal entre conhecimentos diversos, incluindo o científico, como também o camponês, o artístico, o indígena, o popular e outros tantos que são descartados pela quadrícula acadêmica tradicional”. De tal maneira que a tradução intercultural é o procedimento que possibilita criar entendimento recíproco entre as diversas experiências de mundo.
Dessa forma, ele assinala, pode-se assimilar outras concepções de vida produtiva distintas daquelas do capitalismo reproduzidas pela ciência econômica convencional, como, por exemplo, o “swadeshi” - estratégia formulada por Mahatma Gandhi - que propõe a autossuficiência econômica e o autogoverno; ou o “sumak kawsay” - conceito indígena do bem viver - incorporado nas constituições do Equador e da Bolívia, que significa reconhecer e aprender das sabedorias dos povos tradicionais que na América Latina estão ligados com a natureza e seu bom aproveitamento. Estas experiências produtivas assentam-se na sustentabilidade, solidariedade e reciprocidade.
Ao mesmo tempo, o sociólogo andarilho e intelectual militante, como ele se define, considera que boa parte do mundo, sobretudo o Ocidente, está entrando num processo pós-institucional, na medida em que a política esqueceu-se do cidadão, o que se evidencia na sua ativa presença em ruas e praças que “ainda não foram colonizadas pelas transnacionais”.
Por isso, ele propõe a refundação do Estado e também dos partidos políticos, sobretudo de esquerda, para que mude não somente o criminoso modelo econômico que está acabando com o planeta, como também para organizar a vida em condição mais humana, elevando os níveis de participação democrática e respondendo de maneira satisfatória às demandas e necessidades sociais. Atualmente, o que agrega “os conceitos jurídicos e sociológicos tradicionais ou eurocêntricos, é muito débil para enfrentar a realidade social”.
A consequência funesta gerada pelo neoliberalismo e seu afã de lucro desenfreado é um caso patético, ao superar o âmbito jurídico até o ponto em que não esteja mais claro definir o legal do ilegal. “Segundo os critérios de poder é que se determina a ilegalidade ou legalidade”, sustenta.
Para aprofundar a esse respeito e sobre outros temas dos conflitos sociais no mundo, o Observatório Sociopolítico Latino-americano - Cronicon entrevistou Boaventura de Sousa Santos durante sua última visita a Bogotá, convidado pela Faculdade de Direito da Universidade dos Andes, em que recebeu a distinção Sócrates por sua contribuição à sociologia jurídica, aos direitos humanos e para a transformação social.
Durante o evento acadêmico, o professor português proferiu a conferência: “Para uma teoria jurídica dos indignados”.
Santos, doutor em sociologia do Direito da Universidade de Yale e catedrático da Universidade de Coimbra, também é professor do Centro de Estudos Sociais desta instituição, assim como professor da Universidade de Wisconsin-Madison e de diversos estabelecimentos acadêmicos do mundo. É um dos cientistas sociais e pesquisadores mais importantes na área da sociologia jurídica e cumpre o papel de ativista do Fórum Social Mundial. Seus diversos livros, ensaios e artigos jornalísticos são referentes ao pensamento alternativo, na medida em que ele analisa com visão aguda, e mesmo autocrítica, temas como a globalização, a sociologia do direito e do Estado, os movimentos sociais, a epistemologia e a geopolítica.
A irrupção dos indignados: ponto de partida da mudança social
Como você bem destacou, apesar dos movimentos espontâneos dos “Indignados” e do “Ocupa” não terem uma articulação política, estaria sendo gestado neles um sujeito político que pressione as mudanças socioeconômicas que o mundo requer?
Eu estou certo que sim. Considero que isto é um começo, um ponto de partida, e por isso as várias as análises que enfocam os “Indignados” como algo que já está consolidado são equivocadas, pois ao contrário, parece-me que este é um sintoma das coisas ruins que estão ocorrendo em nossas democracias e é um início de algo que não sabemos como continuará. Esses movimentos, que são de jovens, não tem vinculação com os partidos políticos porque muitos dos partidos progressistas perderam a juventude, não de agora, mas há muito tempo. Agora mesmo, venho do Brasil e uma das discussões que tive com os dirigentes do Partido dos Trabalhadores (PT) foi como renovar o partido com a participação dos jovens. Também tive um encontro de hip hop com os jovens das periferias, que me acolheram e com quem trabalhei e escrevi coisas que depois eles transformarão em músicas. A revolta e a raiva da juventude se expressa na cultura hip hop dos subúrbios das cidades e o PT não sabe quem são eles, não conhecem o que é hip hop, não sabem o que é a cultura urbana de nossos tempos, então existe uma distância entre os partidos políticos, sobretudo de esquerda, com os jovens.
O segundo elemento, que me parece muito importante, é que nós, na política de esquerda e na teoria crítica, sempre nos preocupamos com a sociedade civil organizada, nos centramos muito na relação partidos-movimentos, porque a esquerda eurocêntrica nasce como um movimento que logo se transforma em partido. Depois, os partidos se desligaram, assumiram que tinham o monopólio da representação dos interesses de classe ou de grupos sociais e não atenderam os interesses dos movimentos, no entanto, tudo mudou nos últimos trinta anos, sobretudo quando os novos movimentos sociais que defendem os direitos humanos e cidadãs, das mulheres, dos indígenas, dos camponeses, o direito à moradia, etc., começaram a ter uma presença muito forte frente aos velhos, como o movimento trabalhista e os sindicatos. Além disso, os movimentos acabaram competindo com os partidos e é esse o caminho percorrido até agora. O Fórum Social Mundial, de alguma maneira, é um sintoma de que os partidos já não tinham o monopólio da representação e, ao contrário disso, dava-se uma grande prioridade aos movimentos sociais, assim passamos a última década.
O fracasso da socialdemocracia
E por conta disso a irrupção tão forte do “Ocupa” e dos “Indignados”...
Os movimentos dos “Indignados” e do “Ocupa” representam algo novo, no sentido de que nós, na teoria crítica e na política de esquerda, esquecemos por muito tempo que a grande maioria das pessoas não são militantes de nenhum partido e nem se mobilizam em movimentos sociais, consideramos que estas pessoas não são atores políticos porque não se organizam para isso. Estes jovens mostraram que existem momentos de definição e então surgem e se mobilizam por coisas e causas que merecem respeito, saindo à rua, arriscando o emprego, amigos e comodidades. Na esquerda não havíamos conhecido como é esta dinâmica e por isso estamos desarmados. A esquerda está totalmente desarmada porque estes movimentos, em sua grande maioria, estão contra a política institucional e rejeitam os partidos sem haver distinção entre os da esquerda e os da direita. E isto acima de tudo é muito perigoso para a esquerda, porque quando não se faz a distinção, a direita que é quem domina nossas sociedades, a política, a economia, os meios de comunicação, etc., sai favorecida.
Realmente, esta crítica em não reconhecer a distinção vem de muitos erros institucionais da esquerda nas últimas duas décadas, especificamente da socialdemocracia que na Europa e em outros países adotou o que na Inglaterra se chamou de Terceira Via. Ela foi impulsionada pelo Partido Trabalhista inglês e logo se propagou para outros continentes, não sendo outra coisa que a aceitação do dogma do neoliberalismo. Com isto, a esquerda socialdemocrata considerou que o neoliberalismo tinha uma fase humana mediante a aplicação de algumas políticas sociais, porém mais sustentadas no mercado e na economia do que no Estado.
Um modus vivendi dentro do capitalismo que permitia minimizar os custos sociais, como você escreveu num de seus livros...
Exatamente. O que aconteceu é que a esquerda socialdemocrata, que pensava que havia uma alternativa dentro do marco neoliberal, fracassou. Porque, de fato, como vemos claramente na Europa, não existe alternativa alguma dentro do neoliberalismo e a esquerda que aceitou as receitas e as condições do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e das agências que comandam este modelo financeiro, acabou desarmada. É o que temos visto em Portugal, na Espanha, na Grécia, com a queda dos partidos socialistas, e na Inglaterra com o Partido Trabalhista do primeiro ministro Gordon Brown, ou seja, houve um colapso da esquerda socialdemocrata, na Europa, que nos faz refletir. Ao contrário disso, os partidos progressistas que estão governando alguns países latino-americanos como Brasil, Argentina, Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela não aceitaram as receitas neoliberais e estão fazendo o que poderíamos denominar como capitalismo de Estado, ou seja, um controle muito maior dos recursos econômicos por parte do Estado.
O enfoque econômico dos governos progressistas da América Latina
Você a definiu como uma socialdemocracia de um novo tipo...
Sim. Porque eles pensavam que podiam seguir com o estilo da socialdemocracia europeia, que foi um processo de compatibilização da democracia com o capitalismo por meio das grandes redistribuições de riquezas universais, o que se denominou direitos econômicos e sociais, ou Estado de bem-estar, que se desenvolveu mais na Europa do que em outro continente. Os países latino-americanos sabiam que provavelmente não seria possível impulsionar esses tipos de direitos sociais e econômicos universais e por isso foram para outros tipos de políticas sociais. Elas se concretizaram na política de bônus, não muito distantes do que propunha o Banco Mundial, mas dirigidas e enfocadas nos setores vulneráveis da população e que são distribuídas, nos diversos países, com diferentes nomes. No Brasil: bolsa família; na Bolívia: Juancito Pinto; na Argentina: atribuição universal por filho, etc.
São políticas seletivas que não se apresentam como direito social. Podem ser eliminadas se não houver condições, mas, sobretudo não mudam o modelo econômico, não fazem uma regulação do capitalismo e não permitem, por exemplo, que as pessoas em situação de vulnerabilidade saiam por si mesmas da pobreza. Exceto o Brasil, elas não contam com uma política para desenvolver formas de economia solidária, ou cooperativa, que possam organizar as pessoas para que tenham capacidade de gerar renda, criar microempresas e deixar de necessitar dos bônus. Então, este é o modelo de socialdemocracia que até agora deu resultado porque coincidiu com um período de valorização das matérias-primas, desse continente, devido ao grande avanço da China, que permitiu que países que tinham déficits comerciais agora tenham superávit, como são os casos de Brasil e Argentina.
Ao colocar em andamento políticas neoliberais a socialdemocracia europeia traiu sua identidade ideológica e, como disse o sociólogo argentino Atilio Borón, é melhor o original do que a cópia, por isso é possível que voltem os governos de direita no velho continente, que sabem executar de maneira mais drástica e sem nenhum pudor o receituário do livre mercado, você não acha?
Sim, sim. Essa é nossa leitura há algum tempo. Nós criticamos este desvio da socialdemocracia há mais de vinte anos, quando tudo isso começou.
E a Terceira Via formulada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens é uma concepção de direita?
Sim, claro. A Terceira Via foi iniciada na Austrália e Giddens, como assessor de Tony Blair, a sistematizou para desenvolvê-la na Inglaterra, embora tenha sido aplicada em outros países por partidos trabalhistas e socialdemocratas. Defende porque é necessário aceitar todos os critérios de competência que o mercado determina para as agências públicas. Concebe, por exemplo, um mercado interno para os serviços de saúde e educação, fomentando a competência sob o pretexto de reduzir os custos desses serviços, abrindo espaço para que o setor público não se distinga do setor privado. Seu objetivo é o rendimento mediante o sistema contributivo das pessoas, por isso inventaram taxas moderadoras e os planos que os cidadãos devem fazer para ter acesso a uma cirurgia ou consulta médica. Dessa maneira, legitimou a entrada do capital privado nos serviços públicos, sobretudo na saúde, na seguridade social, na educação e no sistema de pensões. Em minha opinião, isto foi o que destruiu toda a socialdemocracia na Europa e é por isso que eu considero que ela necessita de uma refundação. Vamos ver o que acontecerá com o candidato presidencial socialista François Hollande, na França. Pode ser que as pessoas que estão descontentes com as políticas de austeridade de Sarkozy deem a Hollande a vitória, entretanto, ele não possui nenhum programa alternativo que avance além das condições dadas pelo Fundo Monetário Internacional e pela ortodoxia dos capitais financeiros não regulados.
O neoliberalismo que produziu a crise está tentando “resolvê-la”
Embora seja evidente que o sistema capitalista esteja numa grave crise, entretanto, o retorno de governos de direita nos países europeus e a ortodoxia econômica aplicada nos Estados Unidos, e em outros países da América Latina, demonstram que há um robustecimento do neoliberalismo que segue favorecendo o capital financeiro e as transnacionais. Você não vê assim?
Eu penso que a crise do capitalismo é de outro tipo. Em curto prazo, não há nenhum sinal de crise, ao contrário, o surpreendente é que poderíamos dizer que o neoliberalismo que produziu a crise, entre aspas, está tentando “resolvê-la”. São os mesmos banqueiros culpados por essa crise econômica os que buscam resolvê-la.
Analisemos o caso do português Antonio Borges, diretor do Fundo Monetário Internacional para a Europa e vice-presidente da Goldman Sachs, foi ele que organizou a armadilha de investimento bancário que se estendeu para a Grécia. Este mesmo senhor agora está ditando as receitas do Fundo à Europa. Imagine a promiscuidade entre o capital financeiro e a democracia europeia que, em minha opinião, está em suspenso porque o primeiro ministro grego Lucas Papademos; Mário Monti na Itália, Mário Draghi, presidente do Banco Central Europeu, semelhante ao próprio Borges, vem da Goldman Sachs. Eles não somente representam o capital financeiro, como também são da mesma empresa, o que é trágico. Penso que a socialdemocracia contribuiu por sua omissão para um colapso da União Europeia, que eu vejo muito próximo, se não houver realmente um ato de desobediência que precisa ser muito forte para conquistar seu relançamento.
Isso caminha para o que você chama “democradura” na Europa?
Sim, é isso o que temos. Constituições muito progressistas, mas práticas muito reacionárias e oligárquicas. Constituições, como a portuguesa e a espanhola, garantem todos os direitos, porém todos os dias esses direitos são excluídos, suspendidos e as autoridades não interferem, ou seja, existe uma suspensão da democracia que pode ser chamada de “democradura” ou “ditabranda”. Estes processos não apresentam futuro algum para a democracia europeia e os partidos políticos devem analisar muito bem o que está acontecendo para não caírem nos mesmos erros.
O neoliberalismo está fazendo com que a legalidade caminhe lado a lado com a ilegalidade. Essa crise do capitalismo tem aberto brechas para o que você fez referência em sua conferência, na Universidade dos Andes de Bogotá, a uma confusão das categoriais de ilegalidade, legalidade e o sem lei, em boa medida pelo fenômeno da acumulação por expropriação. Como explicar esta situação gerada pela voracidade capitalista?
A questão é muito complexa porque a democracia no século XX iludiu o imaginário popular. Como sabemos, no início a democracia liberal não era muito democrática porque em sua origem somente os proprietários podiam votar, a grande maioria da população não sabia o que era a democracia. Ela conquistou credibilidade e alcançou o imaginário popular, como se verifica, atualmente, os “Indignados” que pedem democracia verdadeira e real, em boa medida devido à institucionalização dos conflitos sociais. Aceitou-se que haja divergências na sociedade entre o capital e o trabalho, por exemplo, e que as mesmas devem ser solucionadas de forma pacífica, cuja solução se traduz na lei, por isso acreditou-se na legalidade, pois antes as classes populares só conheciam a legalidade repressiva, não conheciam nenhum direito. Acreditou-se, portanto, num direito facilitador, protetor dos direitos sociais, econômicos, do auxílio desemprego, e começou-se a notar que a legalidade era algo mais amplo e favorável às classes populares. Isto tem sido um grande engano da democracia representativa e liberal porque nas constituições, tanto da Europa e da América Latina, consagra-se uma série de lutas sociais como direitos, por exemplo, os direitos indígenas que antes eram desconhecidos inclusive pela mesma esquerda que os consideravam invisíveis, o qual mudou nos últimos vinte anos precisamente devido ao neoliberalismo, à repressão aos movimentos sociais e a criminalização dos protestos.
O que aconteceu é que as transnacionais aprenderam a lição segundo a qual é possível pressionar os governos, influenciar congressos legislativos para produzir leis a seu favor, e por isso elas mesmas produziram uma legislação que é tão legal como a outra: a que protege as classes populares, entretanto, agora é uma legalidade que permite com que façam coisas que antes não podiam fazer. E, por isso, pode-se dizer que o fazem legalmente, não é totalmente legal porque se for observado muitas dessas leis que foram criadas para concessões da mineração e dos recursos naturais, e tudo o que se refere ao extrativismo, existe uma série de condições que eles esquecem depois como, por exemplo, a proteção ambiental, ou as violações massivas às consultas indígenas dispostas na Convenção 169 da OIT. A legalidade caminha lado a lado com a ilegalidade, isto é um grande engano e vamos vê-lo, logo mais, na Rio +20, em junho de 2011, com toda esta discussão sobre o capitalismo verde, a economia verde, de desenvolvimento sustentável, que é o grande conceito dos últimos trinta anos. Tudo o que vamos observar neste momento, no Rio, não é mais que o resultado de um sequestro do direito pelas transnacionais e por isso falam do capitalismo verde. Para mim, o capitalismo só é verde nas cédulas do dólar, não é verde em nenhum outro sentido.
Dessa maneira, a legalidade é pouco apropriada, mas também porque aumenta a desigualdade social, inventam ameaças de luta social em que a seguridade em termos de seguridade militar e policial tem uma força tão grande que se criam formas de estados de emergência não declarados em muitos países. Não é o caso da Colômbia porque este país teve um passado de estados de sítios ou estados de exceção muito fortes. Quando estava aqui, realizando meus estudos, os estados de exceção eram normais, por isso que a Colômbia não teve ditaduras como outros países da América Latina. Isso nós analisávamos em seguida, mas atualmente existem formas que vão além da legalidade, por exemplo, quando os Estados Unidos matam os cidadãos norte-americanos no Yemen por meio dos drones, isto é legalidade, ou ilegalidade, isto já não tem normas. Porque a legalidade exige uma norma, digamos assim, e isto é algo completamente novo.
Estrangeirização de terras, novo colonialismo
Como o caso do centro de concentração de Guantánamo?
Guantánamo é o mesmo. É uma ausência total de critérios de legalidade, é mais que ilegal, é sem lei. Para entender isso, é preciso voltar aos séculos XVI e XVII, quando neste continente americano produziu-se o extermínio dos indígenas, o que não era propriamente ilegal, era sim sem lei. Como existia a ideia de que os indígenas não eram humanos, então os conquistadores não aplicavam os critérios da legalidade ou da ilegalidade, eram coisas, escravos.
Hoje, o mundo possui características pelas quais já não se pode falar em intervenção política e social porque às vezes são tão cruéis e agressivas contra certas populações, que sendo consideradas inferiores não se aplicam a elas os critérios de legalidade e por isso se apresenta a arbitrariedade. Podem-se notar casos, por exemplo, na África, neste momento em que está acontecendo com muita ênfase a acumulação pela expropriação, bem como na Índia e na América Latina com a mineração e o extrativismo. No caso africano, apresenta-se por meio do monopólio a forte compra de terras por países como Brasil, China, Coréia do Sul, que estão buscando possuir reservas de terra fora de seus respectivos Estados. Este é um novo colonialismo que não temos pensado. A concessão é legal, porém o que acontece com os camponeses deslocados de suas terras e que de um dia para o outro são convertidos em ocupantes ou invasores? Isto é legalidade? É uma acumulação primitiva violenta que atua de maneira pela qual não existe, politicamente, nenhuma forma de resgate. Isto não é ilegalidade, é mais grave do que isso, é sem lei. Isso ocorre dentro de Estados de direito e de democracias; outro grande desafio para as esquerdas, sobretudo de raiz socialdemocrata, que crê na institucionalidade.
Dentro desse obscuro panorama da crise civilizatória, originada pelo capitalismo, você que se confessa otimista trágico formulou uma teoria jurídica de emancipação social, assim como um novo conceito de cidadania e de direitos humanos que paulatinamente não obtém somente o apoio popular como também segue abrindo passagem. Esse não é um motivo para ser moderadamente otimista?
Sim. O pessimismo é sempre conservador, porque eu posso ser pessimista se tenho meu salário, tenho minha casa, minha moradia, eu posso ser niilista, até cínico, porque minha vida cotidiana está garantida. No entanto, o que acontece com as pessoas que têm comida para sua família hoje, mas não sabe se terá amanhã; o que acontece com as pessoas que estão vivas hoje, mas podem ser vítimas de uma violência em que não estão diretamente envolvidas; a maior parte da população do mundo encontra-se em condição em que sua sobrevivência não está minimamente garantida; estas pessoas não podem ser pessimistas. Estas pessoas têm que sair à rua e lutar, encontrar formas de garantir sua sobrevivência e de sua família, não podem ficar paralisadas, são ativistas. O problema é que não são ativistas políticos em nosso sentido, são ativistas da vida. O que necessitamos é transformar esse ativismo da vida em ativismo político, por isso trabalho muito com os movimentos sociais e com as pessoas que estão nessas situações difíceis.
Graças à minha atividade acadêmica e à minha trajetória eu as conheço bem, por compartilhar muitas lutas com elas.
Por essa razão, eu posso dizer que me anima o fato de que estes setores sociais não podem ser passivos, eles têm que ter esperança. Temos que construir cotidianamente a possibilidade de uma nova sociedade, é isso que me dá a ideia do otimismo trágico; ou seja, a ideia de que existe uma alternativa, mas também muitas dificuldades. A tragédia é essa, que há muitas dificuldades que não podemos minimizar, porém temos que saber que nem tudo está perdido, como dizia a grande cantora argentina Mercedes Sosa. Quando pensamos que estamos no fim da política, que não existe ativismo e que o neoliberalismo dominou tudo, surgem os “Indignados”, os “Ocupa”, a Primavera Árabe que derruba os ditadores, então na sociedade sempre existem as emergências, o que chamo de sociologia das emergências.
O novo projeto de pesquisa que estou iniciando busca analisar as emergências para torná-las conhecidas, porque o problema é que muitas maravilhosas lutas não são conhecidas, de pessoas que resolveram o problema da água, da propriedade, da cidadania, na comunidade da Índia, da África do Sul e de outros países. No mundo as pessoas seguem com esperança, buscando soluções, porque não possuem alternativas, vivem uma situação demasiadamente cruel e vergonhosa, por isso não podem cruzar os braços. Um intelectual militante como eu me considero, não um teórico de vanguarda porque não sou e nem quero ser, mas sim de retaguarda, no sentido de apoiar estes movimentos, tem que teorizar a esperança em condições difíceis, é claro, gerando um respeito pelas pessoas.
Nós temos uma cultura nos partidos de esquerda segundo a qual a massa que não está organizada é massa de manobra, portanto pensamos por ela e por isso vamos com frases e slogans para comandá-la. Não, isso não é assim, hoje as pessoas que se mobilizam é porque possuem suas razões, estão mais preparadas. Pode-se observar isto em países muito controversos como a Venezuela, em que as pessoas adquiriram uma cultura política muito interessante, que podem estar com Chávez ou contra Chávez, mas estão muito mais conscientes das condições, do que deveria ser e o que é, e muito mais exigentes, não podem ser manipuladas por ideias abstratas que não lhes dizem nada sobre suas vidas cotidianas. Esse é o respeito pelas pessoas que a esquerda deve ter no futuro imediato.
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O neoliberalismo e o sequestro do direito. Para Boaventura de Sousa Santos, “a legalidade caminha lado a lado com a ilegalidade” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU