26 Setembro 2013
Em torno do problema do "perdão", gira a quintessência da paradoxalidade da fé. 'Per-doar' significa doar-se integralmente. Mas essa medida do dom não pode ser concebida senão "por graça". É preciso manter isso firme para não cair no puro pelagianismo.
A opinião é do filósofo italiano Massimo Cacciari, ex-prefeito de Veneza, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 24-09-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Em que consiste o valor de um diálogo "sincero e rigoroso"? Em encontrar uma recíproca adaptação das posições? Mínimos denominadores comuns? Razoáveis mediações? Certamente não. Consiste em chegar à máxima clareza da distinção – e em reconhecer a sua necessidade. De fato, eu posso pensar em "conhecer a mim mesmo" apenas através da escuta e do estudo do outro por mim. O Papa Francisco fundamenta esse "método" sobre dois aspectos, profundamente conectados, da fé cristã.
Essa fé está suspensa na Cruz, a cada instante ela é chamada a se renovar, porque a cada instante ela duvida de si mesma: "Credo, adiuva incredulitatem meam". Do modo mais radical em Agostinho: sempre o crente se interroga até mesmo se não pertence no seu fazer concreto aos Anticristos. Por outro lado, mais propriamente teológico, a Verdade que essa fé testemunha não pode ser entendida como absoluta. O Papa Francisco tem razão – mas em que sentido? Deus Amor, Theos Agape, enquanto justamente Ágape, se absolveu do fato de ser simplesmente Uno, absolutamente Uno. É em si mesmo Relatio. Deus Trinitas. O dogma da Encarnação, como ainda João o concebe, vê o evento histórico, o apocalipse do Filho como ab aeterno presente na Realidade de Deus. Isso significa que a não absolutez da sua Verdade só pode ser entendida como o caráter próprio e paradoxal da sua própria absolutez.
É o Eterno que, na encarnação, se manifesta e assume em si o próprio temporal: divino-humanidade. Entre a não absolutez das "verdades" histórica e a não absolutez da Verdade cristã, há, portanto, o abismo, o salto. De fato, a Relação não anula a transcendência, porque está em Deus. E, além disso, a teologia deve se perguntar: todo o Divino se encarna? O que indica a "pessoa" do Espírito? Talvez precisamente a dimensão sempre a vir, sempre non dum, jamais redutível à imanência da relação, do Deus-Trinitas?
A fé do Papa Francisco é perfeitamente cristocêntrica. É fundamental lembrá-lo: o cristão se chama cristão porque encontra Jesus e crê nele como Filho, não porque acredite em Deus. Ao contrário, podemos dizer que o cristão crê em Deus apenas porque o Filho fez, é a sua exegese. O confronto fé-razão em torno das "demonstrações" da existência de Deus já não tem mais nenhum interesse. Mas isso o torna ainda mais difícil e dramático. Porque Jesus pede essencialmente não para ser acreditado como o Filho ("quem vocês creem que eu sou?"), mas sim para ser seguido no que ele faz. E o que ele faz, exige um amor perfeito como o do Pai celeste. Amor extremamente exigente, supra- humano, que se manifesta plenamente nas Bem-aventuranças, em todas as parábolas do Reino, assim como no "deem a César" citado pelo Papa Francisco – que nenhum Padre e nenhum Doutor jamais interpretou como se se tratasse de uma tranquila distinção de "papéis": a César pertence a moeda que traz a sua efígie e ponto final –, e o cristão se livra disso, porque corpo, mente e alma pertencem ao Senhor.
Scalfari intui que, em torno do problema do "perdão", gira a quintessência da paradoxalidade dessa fé (oposta a toda superstitio). Per-doar significa doar-se integralmente. Mas essa medida do dom não pode ser concebida senão "por graça". É preciso manter isso firme para não cair no puro pelagianismo. Talvez, o Papa Francisco "passou por cima" disso. É evidente, de fato, que não tem nenhum sentido pensar que Deus não "perdoa" aqueles que não creem. Não crer absolutamente não é pecado. Porque a fé é gratia. Quem não crê, de fato, não peca – e, mesmo assim, é necessário acrescentar, com base nessa fé não podemos nos considerar salvos. Esse é o "vinho forte" – aqui novamente se abre o abismo entre as diversas formas de vida –, e nenhuma pontezinha pode ser lançada para superá-lo.
O que dessa fé interessa essencialmente ao não crente? O que o interroga, o inquieta, deve ser absolutamente pensado por ele? Justamente a sua paradoxalidade – ou, melhor, o fato de que o seu extremo paradoxo não produz uma perspectiva gnóstica, não dá origem a uma "Igreja dos eleitos", soberbamente separada do "povo", do "laico". O paradoxo é aqui o sal da terra. É chamado a manter vivo o caminho de todos. Mas o caminho é um, o Cristo, e a vida verdadeira é aquela no sinal do Eterno, à sua imagem, no sinal da sua Verdade: Cruz e Ressurreição. Isto é, o não crente é chamado a pensar o caráter escatológico dessa fé: como é possível uma vida autêntica que não seja, a cada instante seu, chamada a prestar contas de si mesma assim como no último? Em torno dessa radical ideia de responsabilidade, essa fé nos interroga.
Mas, então, não é possível "passar por cima" das "coisas últimas", como se se tratasse de aspectos ainda "mitológicos", como tais, de obstáculo ao diálogo com "a cultura moderna de marca iluminista". A espera do "retorno", da Parusia do Filho, deveria ser considerada essencial, agora como nas origens. Por que, depois da sua vinda e das suas palavras, continuamos fazendo obras do mal, mesmo quando vemos o bem? Por que o Filho veio, e o mundo continua a não segui-lo? Isso não é um escândalo? A fé cristã pode ser sal da terra apenas na medida em que continuamente grita isso, sem compromissos ou adaptações com o Príncipe deste mundo... Porém, sim, ela é totalmente encarnada – e, por isso, também deve, de vez em quando, encontrar as formas da relação com o século, "secularizar-se". O paradoxo: afirmar o mais profundo interesse com o mundo, sem nunca, nem mesmo por um átimo, pertencer a ele.
Além disso, é somente nesse contexto escatológico que se pode estabelecer rigorosamente o diálogo com o judaísmo. Certamente não basta lembrar com Paulo (sempre pedindo perdão por todos os pecados cometidos contra a sua palavra...) que essa raiz é sempre santa e que o amor de Deus sempre permanece fiel por Israel. A diferença radical com o messianismo judaico deve ser pensada. O judaísmo não está nas origens, mas, provavelmente, no Fim da Era cristã. O cristianismo pode, talvez, ser entendido senão à luz da fracassada "conversão" de Israel? Mas reconhecer tal "recusa" é ou não é necessário para o cristão? Não é isso, talvez, que torna impossível "adaptar-se" a este mundo, que ainda é waste land, o mundo das tribulações e das destruições? Não é "judeu", na sua essência, o ponto de vista que condena todo "triunfalismo", toda fé "assegurada"? Não são as perguntas e provocações de iluminismos e positivismos senis que deveriam inquietar essa fé, mas sim as dos Dostoiévski, dos Nietzsche, dos Kierkegaard – perguntas que surgiram do seu próprio seio, assim como daqueles que profetizaram melhor do que qualquer outro o mundo atual da indiferença, o mundo que faz guerra ininterruptamente no mesmo momento em que proclama "paz e segurança" como ideia única, pensamento único, o mundo que, no sinal da "rede" que tudo envolve e homologa na superfície, debocha daqueles que buscam a Deus ou daqueles que se obstinam em pensar "as coisas últimas", ou daqueles que se interrogam sobre como é suportável uma vida não a caminho da Verdade.
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A fé entre diálogo e perdão. Artigo de Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU