13 Julho 2013
É preciso analisar com mais atenção a teoria e a práxis "canônicas" do reconhecimento de um “Justo entre as Nações” por parte do Instituto Yad Vashem, de Israel, que preside a memória pública do Holocausto.
A opinião é de historiador italiano Sergio Luzzatto, professor da Universidade de Turim, em artigo publicado no jornal Il Sole 24 Ore, 30-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Muito se tem discutido ultimamente, nos meios de comunicação italianos, assim como nos internacionais, sobre o "caso Palatucci". Ou seja, o oficial de polícia Giovanni Palatucci (foto), em serviço na sede da polícia de Fiume depois do armistício de 8 de setembro de 1943, quando o chamado Litoral Adriático havia sido anexado ao Terceiro Reich hitleriano. E sobre o papel desempenhado por Palatucci – papel salvífico, segundo alguns, maléfico, segundo outros – ao determinar o destino de um número impreciso de judeus italianos ou estrangeiros que chegaram a Istria pelos tentáculos da Solução Final.
Nesse complexo dossiê historiográfico, duas coisas são certas. É certo que, no outono de 1944, Palatucci foi preso pelos alemães e deportado para Dachau, onde morreu em fevereiro de 1945. É certo que, em setembro de 1990, Palatucci foi homenageado pelo Yad Vashem – a instituição do Estado de Israel que preside a memória pública do Holocausto – com o título espiritualmente prestigioso de "Justo entre as Nações". Enquanto o resto do dossiê é constituído por uma matéria de uma polêmica cada vez mais ardente.
Duas semanas atrás, o Museu do Holocausto de Washington se distanciou gravemente da figura histórica de Palatucci. Em resposta, o L'Osservatore Romano se mobilizou em apoio póstumo daquele que a Igreja Católica reconheceu oficialmente, sob o pontificado de João Paulo II, como um "Servo de Deus" e um mártir da fé.
Embora a controvérsia em torno de Palatucci se reacendeu nos últimos tempos, a polêmica está aberta há anos: pelo menos desde que, em um livro de 1995, o historiador Marco Coslovich argumentou as primeiras dúvidas sobre o resgate dos judeus da Ístria pelo policial italiano. Hoje, diversas instituições culturais norte-americanas, vaticanas, israelenses anunciam sobre o caso Palatucci suplementos de pesquisa, grupos de trabalho, expertises diversamente autorizadas. Muitas outras boas razões para suspender todo julgamento de mérito, à espera de que novas pesquisas permitam, finalmente, ver as coisas mais claramente.
Além da polêmica em torno do caso único de Giovanni Palatucci, o que a partir de hoje merece ser discutida é a questão geral da atribuição por parte do Estado de Israel do título de Justo entre as Nações. Ao invés de se inscrever no partido dos "pró-Palatucci" ou no dos "anti-Palatucci", merecem ser consideradas as modalidades tanto "técnicas" quanto "políticas" com as quais o Yad Vashem instrui e gerencia – há meio século – os dossiês relativos aos Justos de Israel. Em suma, merecem ser olhadas com mais atenção do que comumente a teoria e a práxis "canônicas" do reconhecimento de um Justo.
Mutatis mutandis, o mecanismo operado pelo Yad Vashem é comparável ao que o Vaticano opera através da Congregação para as Causas dos Santos. Para identificar os Justos, parte-se do testemunho direto ou indireto de um salvo (portanto, por assim dizer, a partir de uma fama local de santidade) e buscam-se comprovações documentais que certifiquem a intervenção de um "salvador" (onde a própria palavra empregada pelo Yad Vashem ressoa, em italiano, fortes ecos cristãos).
Se quisermos carregar as cores dessa comparação, podemos dizer que todo o mecanismo se fundamenta no princípio das "virtudes heroicas" de um Justo não judeu que, desinteressadamente e com o risco da sua própria vida, salva a vida de um ou mais judeus.
De 1963 até hoje, o Yad Vashem reconheceu algo em torno de 25 mil Justos. Na maior parte dos casos, há razão para considerar que a atribuição do título corresponde a eventos historicamente ocorridos. Em uma minoria de casos, pode-se imaginar que considerações de oportunidades diplomática, cultural ou propriamente política orientaram o Yad Vashem na gestão de um ou outro dossiê.
Presumivelmente, o fato de que uma determinada prática tenha sido avaliada com cuidado, que tenha chegado ao destino ou tenha encalhado ao longo do percurso, que tenha sido, por fim, acolhida ou rejeitada nem sempre dependeu da evidência documental contida no dossiê.
Sustenta-se também nesse sentido, evidentemente, a comparação com a Igreja Católica e com as causas dos santos. Acima de tudo, mede-se aqui a distância crescente entre uma filosofia e uma historiografia. Porque a filosofia do Yad Vashem é construída em torno da ideia – senão justamente de um milagre – de um salvador. Enquanto a historiografia internacional mais informada, marcadamente a francesa, está comprometida já há anos em pesquisas que ampliam a própria noção de Justo, que a subtraem de uma dimensão individual e soteriológica, colocando em foco dinâmicas que poderíamos definir como coletivas e sociológicas.
A figura do Justo se presta à ênfase e à espetacularização: como bem demonstraram, em seu tempo, o Perlasca de Enrico Deaglio e o Schindler de Steven Spielberg. Mas, na Europa ocupada pelos nazistas, dificilmente se poderiam salvar judeus agindo na solidão e realizando milagres dignos de um santo. Ao invés da intervenção de uma figura única de exceção, para salvar judeus era necessária a colaboração de muitas figuras normais a seu modo. Por isso, na esteira das pesquisas francesas, a melhor historiografia tende hoje a reconstruir as vicissitudes dos Justos como dinâmicas de rede.
Basta aqui um só exemplo: o exemplo de Gandino. Essa localidade da catolicíssima Val Seriana, em Bérgamo, destaca-se no banco de dados do Yad Vashem como a localidade italiana de máxima densidade demográfica dos Justos entre as Nações: seis Justos para uma cidade que, na época da ocupação alemã, contava com 5 mil habitantes. Vincenzo Rudelli, Bortolo e Battistina Ongaro, Giovanni Servalli, Francesco e Maria Chiara Nodari: são os seis gandineses – um professor, um funcionário, quatro agricultores – honrados pelo Yad Vashem por terem salvo a vida de uma refugiada judaica da Bélgica, Mariem Loewi, e dos seus dois filhos, Marina e Siegbert.
Mas a própria Marina Loewi, a menina salva que, depois de 60 anos, promoveu a causa dos seus próprios salvadores, luta até hoje em New Jersey para que o Yad Vashem atribua o título de Justo para toda a cidade de Gandino, a todos os gandineses de 1943-1945. "Eles merecem. Todos na cidade sabiam que éramos judeus, ninguém nos denunciou". It takes a village...
Foi uma dinâmica de rede também a da Grande Mesquita de Paris, em cujos meandros encontrou refúgio durante a ocupação alemã da França um certo número de judeus que sobreviveram dessa forma à Solução Final. Mas a prática referente ao reitor da Grande Mesquita, Abdelkader Kaddour Benghabrit, jaz há anos nas escrivaninhas jerosolimitanas do Yad Vashem, sem que o Instituto considere o material documental como suficientemente probatório para fazer de Kaddour Benghrabit um "Justo entre as Nações".
Dos 25 mil Justos, o Yad Vashem ainda não reconheceu nenhum – nem mesmo um – que fosse árabe de cultura e muçulmano de religião.
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Como nasce um justo. Artigo de Sergio Luzzatto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU