29 Abril 2013
A reflexão sobre a experiência religiosa e sobre o cristianismo é central na filosofia de Piero Martinetti. A religião é uma forma que assume o processo de libertação do espírito para aquela unidade suprema do "saber nosso com o logos eterno, que é o fundamento absoluto da nossa natureza". A religião é uma forma pela qual, spinozianamente, chegamos a conceber a vida sub specie aeternitatis.
A opinião é do filósofo italiano Massimo Cacciari, ex-prefeito de Veneza, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 24-04-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Piero Martinetti pertence aos poucos, mas grandes, "solitários" do pensamento italiano da primeira metade do século XX, capazes de se opor drasticamente à "dupla hegemonia" de Croce e Gentile. Outro nome me vem logo à mente, o de Giuseppe Rensi. Ambos pensadores da estatura europeia, "em conexão direta" com as correntes da "grande crise", que investia contra os fundamentos de toda disciplina científica e filosófica, e daqueles mesmos sistemas do idealismo clássico alemão que, ao invés, Croce e Gentile pretendiam "reformar".
Ambos, embora com base em razões muito diferentes, opositores de peito aberto do regime fascista, desde o seu nascimento, e por isso privados da cátedra em 1931. Martinetti, que então tinha quase 60 anos, ensinava há muito tempo em Milão, onde teve, entre outros, alunos como Antonio Banfi. A partir daquele momento até a sua morte, no ano horrível de 1943, ele viveu retirado na sua casa em Canavese.
A obra fundamental deste último e dramático período é Gesù Cristo e il Cristianesimo (agora reeditada pela editora Castelvecchi), publicada em 1934, imediatamente apreendida pelas autoridades fascistas, posta no Índex pela Igreja.
A reflexão sobre a experiência religiosa e sobre o cristianismo já era central na filosofia de Martinetti. A religião é uma forma que assume o processo de libertação do espírito para aquela unidade suprema do "saber nosso com o logos eterno, que é o fundamento absoluto da nossa natureza". A religião é uma forma pela qual, spinozianamente, chegamos a conceber a vida sub specie aeternitatis.
Esse é o nosso Fim, ou seja, o Reino dos Fins, que se impõe a nós como tarefa necessária: "Na conquista gradual da liberdade, o ser humano realiza uma ordem, uma lei que, na sua perfeição, continua sendo sempre um ideal para ele; mas que, no entanto, por ser a fonte da atividade humana que a realiza, já deve ser ab initio, como um mundo ideal, em Deus".
O valor insuperável da experiência religiosa consistiria, portanto, em conduzir o processo de libertação até o "contato" mais íntimo, profundo, radical da alma com aquele seu Início, com aquela Unidade suprema de sujeito e objeto, de saber e natureza, que esta postula continuamente na sua busca, no seu interminável interrogar. Religião, em suma, como o exato oposto daquilo que liga, que vincula, que reduz o espírito à letra.
O cristianismo é religião espiritual, já que o seu Fim não é um "paraíso na terra", mas o mesmo e ininterrupto processo de libertação de toda condicionalidade terrena, de toda norma contingente que queira se impor à nossa interioridade. "A religião vive na alma, não no mundo", e novamente: um fundamento histórico "é sempre questão de embaraço para um pensamento religioso vivo".
Gesù Cristo e il Cristianesimo é a história ou o destino de tal cristianismo espiritual, que se fundamenta na drástica separação entre Reino de Deus e o reino deste mundo, que pertence sempre às potências demoníacas.
Não se poderia imaginar desafio mais explícito, corajoso, polêmico com relação ao cristianismo das Igrejas, e da católica em particular. Elas são todas marcadas por radical aut-aut, por escolhas e decisões inapeláveis. A vastidão dos conhecimentos, os fundamentos até mesmo eruditos desse livro-testamento são todos voltados a demonstrar este assunto: que o cristianismo histórico, a partir de Paulo, mas, ainda mais, do Evangelho de João, o teólogo, se constitui como um "tradição" que essencialmente trai o anúncio de Jesus. Paulo e João divinizam Jesus. As Igrejas continuam a sua obra, fazendo dele um ídolo, que, no fim, "relega completamente à sombra o Deus de Jesus, o Pai celeste".
Com base nessa ideia, Martinetti pode desenvolver uma história do cristianismo em que a patrística oriental está ausente, Anselmo, Alberto, Tomás não são nem sequer citados, e o pensamento de Agostinho é considerado "insignificante"!
No entanto, existe uma Igreja espiritual, formada por todos aqueles que continuaram transmitindo a "sabedoria" de Jesus, sucessão de espíritos que "atravessaram o mundo humildes e miseráveis como ele e os seus discípulos". O primeiro nome dessa sucessão é o de Marcião; o último, o de Kant.
Marcião foi, no século II, a alternativa radical à Igreja Católica. Jesus é para ele o Mestre que anuncia o verdadeiro Reino dos Céus, escondido pelo Deus criador deste mundo e legislador da Bíblia hebraica. Para além dos aspectos mitológicos ou do extremo dualismo do "evangelho" marcionita, é evidente que o que interessa dele a Martinetti é a clara rejeição de qualquer elaboração teológica fundamentada no quarto Evangelho. Aqui está o eixo de Jesus: a doutrina do Logos contida no prólogo de João está na base do progressivo abandono do Anúncio. A pureza da experiência religiosa consiste em intuir em si, in interiore, o Deus para além de toda pregação ou imagem, para o qual é preciso transcender-se, libertando-se de todos os ídolos que pretenderiam encarná-lo. Por isso, o Logos-theos que se fez carne de João contradiz, para Martinetti, ab imis fundamentis, o ensino jesuano. E é igualmente evidente qual é o grande filósofo que, no fim desse processo, deveremos encontrar: Hegel. Marcião está para Kant assim como João está para Hegel! O adversário de Martinetti é a "dialética" do Deus-Trinitas.
Tal perspectiva levanta infinitos problemas. É certo que Martinetti pensa na sua exegese como uma autêntica exegese da palavra de Jesus. É infundada essa pretensão? Eu penso que não. O texto ao qual Martinetti apela também exige constantemente ser interrogado: veritas indaganda.
Mas, então, a exegese é parte imanente e constitutiva. Assim como o Logos em João faz exegese do Pai, assim também os seus discípulos deverão fazer a exegese d'Ele. Martinetti move por toda a parte a instância da originalidade autêntica, que era, justamente, típica de Marcião. Mas justamente a novitas desse Anúncio consiste na exigência de sempre fazer exegese dele. A origem não é algo que esteja "às costas", como um fundamento, mas se transforma na tradição, que também é sempre possibilidade de mal-entendido, traição. No dualismo de Martinetti, as duas dimensões se contradizem.
Para Martinetti, o Logos se dirige ao Pai nos céus, mas não se encarna na história, não acolhe em si a própria perda na história, ignora o "grande grito" do Abandonado na Cruz. Martinetti não vê como, ao lado da sua exegese, também é necessário pensar naquela que dará vida à teologia trinitária – e justamente a partir da dramática do próprio Anúncio. Aut-aut, certamente, mas esse aut-aut é sístole e diástole da nossa civilização. E justamente o fato de não saber suportá-lo marcará, talvez, o seu fim.
A "linha" marcionita (analogamente à das maiores heresias) destina-se à "racionalização" do Anúncio, a mostrar o significado totalmente espiritual dos temas da imortalidade, da ressurreição, do "mandamento novo" do amor por todos, até pelo inimigo. A paradoxalidade da palavra de Jesus é constantemente explicada "dentro dos limites da razão apenas". Kierkegaard e Barth estão tão distantes quanto Hegel do coração e da mente de Martinetti.
Mas, se no grande debate em torno do Cristo dos séculos III e IV tivessem prevalecido as correntes marcionitas, ou gnósticas, ou maniqueístas, qual cristianismo teria sobrevivido? Talvez apenas uma memória erudita. A própria possibilidade de que um Harnack ou um Martinetti falem da Igreja espiritual em contradição com as Igrejas depende do fato de que estas se afirmaram historicamente, permixtae, comprometidas de todos os modos com a civitas hominis, pecadoras como aquele Pedro sobre o qual testemunham se fundar. No entanto, nunca completamente esquecidas de que também pode acontecer a Igreja espiritual, nunca simples ou abstratamente inimigas do "espírito profético".
É o paradoxo da encarnação que informa a sua história, para o bem e para o mal. Mas justamente de todo mal, ao invés, a Igreja espiritual deveria permanecer livre, em que a lei moral kantiana se fez natureza interior, expressão do ideal religioso supremo para Martinetti e totalmente uno, obviamente, com a sua ética.
Podemos ainda nos perguntar se essa assimilação de cristianismo e ideal ético, que rejeita, no fim, todo elemento de irredutível paradoxalidade da experiência religiosa, constitui o único meio para manter viva hoje a escuta do Anúncio – ou não representa, ao invés, justamente a sua extrema "traição", a sua "tradução" em religiosidade ético-filosófica ou, pior, em "cultura".
Mas, acima de tudo, devemos nos interrogar se hoje a "luta" está realmente ainda dentro do espaço complexo e contraditório desenhado pela Europa ou cristandade, espaço formado por Igrejas e heresias, instituições e forças espirituais, potências políticas e religiosas crísticas e anticrísticas, todas conscientemente pertencentes a uma única Era, ou se precisamente essa comunhão de opostos declinou ou está voltada inexoravelmente ao declínio.
Igrejas e Igreja espiritual estão em processo, talvez, de se retirarem juntas para o deserto, descobrindo assim, na derrota comum, a sua matriz comum.
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O Evangelho sem a Igreja, segundo Piero Martinetti. Artigo de Massimo Cacciari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU