Por: Jonas | 03 Abril 2013
O missionário jesuíta Mateo Ricci, o primeiro ocidental que entrou no Palácio Proibido, em 1600, marcou o início da influência religiosa do ocidente no império central, que atravessou cismas e proibições que aparecem até hoje, momento em que cerca de 60 milhões de chineses professam o cristianismo, sendo que 14 milhões são católicos.
A reportagem é de Miguel Petrecca, publicada no jornal Clarín, 01-04-2013. A tradução é do Cepat.
A senhora havia me visto parado alguns minutos na rua, com curiosidade, diante do cartaz de um ancião taoísta de barba longa e casaco militar verde, especializado na leitura do rosto e adivinhação através de oito dígitos. Coloquei-me ao lado, alguns metros mais distantes, e enquanto esperava o semáforo para cruzar a rua, disse-me: “Esses são todos uns vigaristas. Se você quiser, pode pedir para que eles adivinhem, por curiosidade, mas não lhes deem mais do que 10 renminbi” (dinheiro). E acrescentou, enquanto apontava para o céu com o dedo: “Eu acredito em Shangdi. Shangdi é bom”.
Era a segunda vez, em menos de um mês, que escutava uma declaração parecida da parte de um desconhecido, mas não me trouxe estranhamento. Apesar da pouca importância que a notícia da eleição do novo papa teve nos meios de comunicação, pode-se inferir o contrário: a quantidade de chineses que professa alguma variante do cristianismo é um número amplo e vem crescendo sustentadamente, desde os anos 1980, quando o Estado assumiu uma política de maior tolerância para a atividade religiosa. Os números variam, mas calcula-se que hoje existem cerca de 60 milhões de cristãos na China, dos quais 14 milhões são católicos.
A história do cristianismo na China é longa e tem vários inícios, desde as primeiras missões nestorianas, estabelecidas no século VII, durante a dinastia Tang, passando pela onda de evangelização que avançou no século XIX, pela mão do colonialismo, até a nova expansão das últimas décadas. Contudo, talvez o seu momento mais brilhante esteja ligado ao trabalho dos jesuítas e, especialmente, com a figura de Mateo Ricci, o grande missionário italiano que no século XVI viajou para a China com o sonho de evangelizar o povo do império central.
Ricci nasceu em 1552, em Macerata, uma pequena cidade italiana localizada dentro do domínio papal, e entrou na ordem jesuíta aos 19 anos contra o desejo de seu pai, que o havia destinado para uma carreira de advogado. Estudou vários anos em Florença e Roma e, em seguida, foi enviado para fazer parte de uma missão na Índia, onde em pouco tempo a euforia com a qual partiu da Itália abriu espaço para o pessimismo e o esgotamento. Da Índia foi chamado para Macau, no sul da China, por Alessandro Valignano, que tinha sido um de seus professores em Roma e que planejava enviar, a partir da colônia portuguesa, uma missão para o interior da China. Ricci começou a estudar a língua e os costumes em preparação para sua missão. Um ano depois, partiu para Cantão juntamente com Michele Ruggieri. Instalaram-se em Zhaoqing, uma cidade da província de Cantão, de onde começaria uma lenta escalada de quase quarenta anos, cujo destino final foi a própria capital do Império.
Chegou a Pequim, em 1601, e se tornou o primeiro ocidental a entrar no Palácio Proibido. Impressionou os letrados chineses por sua facilidade com o chinês clássico e por seus conhecimentos de geografia, matemática e astronomia, ao ponto do imperador o designar conselheiro especial da corte, concedendo-lhe uma remuneração durante a vida e lhe permitindo fundar uma igreja.
Ricci pensava que no passado a China tinha desenvolvido alguma forma de monoteísmo, e que essa origem monoteísta tinha sido alterada pela tradição posterior, até resultar numa espécie de humanismo ateu. “Eu, Matteo, deixei meu país sendo jovem e viajei pelo mundo inteiro. Descobri que as doutrinas que envenenam as mentes dos homens tinham chegado até os últimos rincões da terra. Pensei que os chineses, que são Yao e Shun, e os discípulos do Duque de Zhou e Zhongni, não deviam ter mudado as doutrinas e ensinamentos sobre o céu e nunca deveriam ter permitido que resultassem manchadas. Entretanto, eles também, inevitavelmente, às vezes caiam no erro”.
Então, enfrentando o problema de traduzir o conceito de “Deus”, Ricci buscou um equivalente dentro dos clássicos chineses e acabou recorrendo a dois termos. Um deles era Shangdi, que dentro do folclore chinês designava o imperador celestial, uma antiga deidade que já aparece inscrita nos cascos de tartaruga da dinastia Shang, há 2000 anos a. C. O segundo termo escolhido, que se aproveitava da palavra “tian” (céu), outro antigo conceito da cosmologia e pensamento chinês, era “tianzhu” (senhor do céu).
Essas estratégias de tradução de Ricci eram congruentes com o pensamento missionário jesuítico, que entendia a missão como um gesto de imersão na cultura a ser evangelizada, o que significava estudar e entender a língua e a cultura distante e, eventualmente, adaptar-se a ela. Um exemplo desta atitude aparece nos seus Diários quando conta que ao desenhar para eles um mapa da terra, em respeito à crença tradicional dos chineses de ser o centro do mundo, “decidiu contorná-lo de tal forma que o Império da China ocupasse mais ou menos a posição central”.
Ricci conseguiu converter alguns letrados confucianos para o cristianismo, com os quais teve amizade, entre eles Xu Guangqi, um matemático e astrônomo da região de Shangai com quem tinha traduzido para o chinês os “Elementos de Euclides”. Shangai tornou-se, já desde o início do século XVII, à raiz da conversão de Xu Guangqi, um dos focos de influência do catolicismo e especialmente dos jesuítas. Quando em meados do século XIX, após a derrota na Guerra do Ópio, a cidade foi aberta como porto livre para o comércio, um ramo de descendentes da família Xu Guangqi, que havia permanecido fiel ao catolicismo, deixou para os jesuítas uma parcela de terra para a construção de uma catedral. A Catedral de Santo Inácio (foto), terminada em inícios do século XX, em 1933, tornou-se a sede do vicariato de Shangai, elevado a categoria de diocese em 1946.
A partir de 1949 e da fundação da República Popular da China, a situação mudou. Os comunistas consideravam a Igreja católica, não sem razão, como uma inimiga. O novo governo criou uma Associação de Católicos Patrióticos da China (ACPC), que não reconhecia os bispos ordenados por Roma. Em 1956, Gong Pinmei, recentemente designado como bispo de Shangai pelo Vaticano, foi encarcerado e foi lhe dada uma sentença de vida, enquanto a ACPC o substituía pelo seu próprio candidato. Assim, produziu-se uma espécie de cisma que, em parte, continua até hoje, contando com uma igreja oficial promovida pelo ACPC e uma igreja subterrânea fiel ao Vaticano, cada uma com suas autoridades e seus bispos.
Esta história de idas e vindas pode ser observada na biografia de Jin Luxian, que aos seus 97 anos é ainda, atualmente, uma das figuras dominantes do catolicismo chinês. Antes de pertencer à Igreja chinesa oficial, Jin Luxian tinha pertencido ao grupo que estava ao lado do bispo Gong Pinmei, encarcerado pelo governo. Passou 27 anos na prisão e em trabalho forçados. Em 1985, três anos após ser libertado, foi designado pela ACPC como bispo de Shangai, sem a aprovação do Vaticano, que o havia designado seu próprio bispo.
Jin Luxian recebeu fortes críticas por aceitar colaborar com o próprio governo que o condenou a quase três décadas de clausura, mas sua decisão permitiu, em grande parte, manter o catolicismo vivo na China, algo que o Vaticano acabou reconhecendo nos últimos anos. No prólogo de sua autobiografia, este homem que atravessou quase toda a história chinesa moderna, conta: “Em 1933, quando tinha 17 anos, alguns amigos me apresentaram ao velho patriota Ma Xiangbo, que tinha então 94 anos de idade. Ele vestia uma longa túnica negra sobre a qual permanecia um saco de mandarim, e estava sentado direito numa forma de cadeira. Ofereci-lhe o meu respeito e o felicitei por sua idade. Respondeu-me: 94 anos passaram num instante. Nesse momento, eu me perguntei como 94 anos podiam passar num instante. Agora, eu também cheguei aos 90, e quando fecho os olhos e observo para trás, todos esses anos parecem ter passado num instante”.
Pela longa e rica história da Ordem na China, alguém poderia pensar que nada melhor do que um Papa jesuíta para conduzir uma aproximação entre o governo chinês e o Vaticano, depois de mais de 60 anos desde que se romperam as relações diplomáticas, em 1951. Aqui, no entanto, a história pesa menos do que o pragmatismo da política, e não parece provável que a China esteja disposta a negociar as condições que se concebem como necessárias para a normalização das relações: que o Vaticano rompa as relações com Taipei e que se abstenha de interferir na política interna chinesa. Nenhuma destas condições parece simples.
Pós-escrito
Depois de terminar essa nota, fui até o bairro de Xujiahui para ver a Catedral de Santo Inácio. Cheguei às quatro da tarde, quando acabavam de fechar a entrada da grade que rodeia o prédio. Procurei convencer o guarda para que me deixasse entrar para dar uma olhada e tirar uma foto. Ao lado, dois turistas chineses, uma idosa de uns 80 anos e seu filho, também haviam chegado tarde e tiravam fotos. Eles vinham de Qingdao, uma cidade costeira da província de Shandong, ao norte. Quis saber se eram católicos, mas me responderam que vieram apenas por curiosidade, para tirar algumas fotos.
Fui dar uma volta, seguindo pelo caminho que os cartazes marcavam em direção ao parque que está a sepultura de Xu Guangqi, o famoso convertido e amigo de Matteo Ricci. Por erro, virei numa viela que girava em S e que, alguns metros a mais, acabava num paredão. Sendo assim, voltei e novamente estava em frente à grade. A mãe e o filho já não estavam lá, mas agora estava uma mulher de uns 60 anos, rezando com os olhos fechados. Quando terminou de rezar, começamos a conversar. Disse a ela que tinha vindo para ver a igreja, mas tinha chegado tarde. “Eu levo você, eles vão me deixar entrar porque me conhecem. Estive rezando lá dentro faz um tempinho”. Levou-me passando a grade, ignorando o gesto pouco amistoso do guarda, e depois caminhamos por uma trilha que levava até uma pequena porta lateral de madeira, enquanto me contava que há pouco tinham terminado a reforma da igreja.
Eu queria ver os novos vitrais que, de acordo com o que li, utilizavam ideogramas chineses e estatuaria tradicional, como a fênix. A porta já estava fechada. “Acabam de fechar. Não tem problema”. Nesse momento, saudou um grupo de três homens que passaram ao nosso lado. “O que vai adiante é o novo padre. É muito jovem, possui cerca de 40 anos”. Enquanto nós caminhávamos para a saída, continuamos conversando, e descobri que ela não sabia nada sobre a eleição do novo papa. “O assunto das duas Igrejas, a do governo e a subterrânea, é muito complicado. Há muitas dessas igrejas subterrâneas em Shangai. São contra o governo, por isso não entram nesta igreja. Não é um assunto fácil de falar. Como eu me tornei católica? Através de meu esposo. Em minha família todos são budistas, eu sou a única católica. Ao contrário, a família de meu esposo já conta com várias gerações. O avô já era católico e meu sogro, além disso, estudou teologia”.
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A longa e rica história da evangelização chinesa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU