24 Janeiro 2013
Dom José Luís Azcona Hermoso é bispo da prelazia de Marajó, no Pará. Ele é apontado como um ícone na luta contra o tráfico de pessoas e a exploração sexual de menores. Por suas denúncias, tem seu nome inscrito na lista negra dos “barões do tráfico”. Segundo ele, o tráfico humano está infimamente atrelado a outras três atividades ilícitas: tráfico de armas, narcotráfico e exploração sexual de menores. Dom Azcona ressalta que a desarticulação das quadrilhas que cometem esse crime é extremamente difícil, pois, esse é um negócio bilionário que conta com a conivência de autoridades.
A entrevista é de Maria Amélia Saad e publicada pelo portal Zenit, 22-01-2013.
Eis a entrevista.
Qual é a realidade do tráfico de seres humanos no Brasil?
É uma situação de sombras. Não existe uma estatística científica sobre essa realidade, que, logicamente permanece oculta pelas próprias razões do negócio de tráfico de pessoas e também pelo controle de organizações de nível internacional, que exercem influência até sobre meios de comunicação. Não é fácil o combate contra essa realidade e tampouco o conhecimento sobre ela, já que, repito, o grande fenômeno da venda de pessoas leva consigo a ocultação, o segredo criminoso e a manipulação cuidadosa controlada por grandes organizações mundiais. mas crimes conexos com o tráfico humano, como, por exemplo, a exploração sexual de menores, dão uma visão dessa problemática
O tráfico ocorre com conivência de pessoas com grande influência social, como políticos?
Não se pode provar. Não temos essas provas, pois elas levariam à denúncia e consecutivamente a processos. Mas devido à interação do tráfico de pessoas com narcotráfico, tráfico de armas, a interação de muitos casos dessas quatro atividades criminosas, leva a pensar que existem políticos no meio e sem dúvida nenhuma ganham muito dinheiro. São 32 bilhões de dólares anuais em jogo no mundo todo. Sem dúvida nenhuma podemos deduzir que alguns políticos estão envolvidos nesse tipo de atividade criminosa.
Quem é o traficante de pessoas?
O traficante pode ser qualquer pessoa. Ele pode iniciar desde um extrato social baixo e crescer dentro das máfias organizadas, até tomar o controle, como acontece no tráfico de drogas. Não se pode definir muito bem quem é que controla e leva para frente esse tipo de atividade, mas, sem dúvida nenhuma, são pessoas com forte poder econômico, e portanto, eles controlam um capital, investindo e produzindo através da escravidão humana, vendendo e comprando pessoas.
Por exemplo, em 2007, um colaborador nosso conseguiu, com ajuda da Polícia Federal, se infiltrar em uma dessas máfias que levava mulheres, incluindo até mesmo menores, para a Guiana Francesa. O grupo, inclusive o chefe, foi preso em Oiapoque (AP), na fronteira com a Guiana Francesa. Em dez horas desde a prisão deste criminoso, apresentaram-se seis advogados para tirá-lo da cadeia. Se em dez horas esse grupo disponibilizou seis advogados, sem dúvida, muito qualificados, isso indica que a retaguarda tem muito dinheiro e que os organizadores são grupos poderosos.
Em segundo lugar, esses grupos são inescrupulosos, como se pode comprovar pelo desfecho desse fato. O criminoso ficou somente um mês na cadeia. Uma vez liberto, comunicou por telefone ao homem que tinha se infiltrado na organização criminosa dele dizendo: “eu vou te matar”. Esta ameaça apareceu na Revista Época e neste mesmo ano, no dia 9 de setembro era eliminado o homem que descobriu o esquema do tráfico de mulheres para a Guiana Francesa. Isso supõe que eles são um grupo econômico organizado e ao mesmo tempo sem escrúpulos, agindo diretamente na eliminação das pessoas, contra toda a lei. Eles são grupos paralelos, que a sociedade tolera.
O que leva a vítima a cair nas redes de tráfico?
Principalmente, é a necessidade econômica, e junto com ela, a proposta de paraísos ilusórios. Na nossa região, em meio do ambiente de pobreza extrema em que se encontra nossa população, são extraídas das vítimas, voluntárias muitas vezes, e em outras ignorantes sobre o que de fato as aguarda nesse tipo de tráfico humano. Já em maio de 2009 o programa da Globo, Fantástico, transmitiu uma notícia sobre a venda de pessoas no Brasil, aqui no município de Portela, onde o jornalista supostamente comprava de uma mãe uma menina de 17 anos por R$ 500 e a de 10 anos, por R$ 10 ou quatro “louras” (cervejas), para passar uma noite. Esse detalhe é um sinal, que responde a sua pergunta. Nesse meio ambiente de miséria econômica e humana é que são levadas essas mulheres para o fim do mundo para serem compradas e vendidas como animais de estimação que valem dinheiro.
Uma vez dentro desse esquema, existe a possibilidade dessas pessoas voltarem para sua realidade de origem?
É muito difícil, por aqui os casos que conhecemos são de tristeza. Por exemplo, uma mulher traficada para a Espanha, na cidade de Saragoça, estava se prostituindo, e ao tomar uma dose excessiva de êxtase, perdeu o controle de si mesma, foi presa e repatriada. Ela retornou a Portela (PA), seu município, mas, ficou para sempre perturbada, uma mulher que não tem capacidade de socialização, é agressiva, completamente insana, apesar de todos os tratamentos. Outras não têm oportunidade de voltar, pois são assassinadas, como por exemplo, ano passado, uma menina de 25 anos, aqui de Breves (PA). Ela foi assassinada na Guiana Francesa, para roubarem o dinheiro que tinha, possivelmente por garimpeiros. Esses ambientes para os quais elas vão e são vendidas dificultam muito o retorno, por que no momento determinado, o preço que elas valem prevalece sobre a própria dignidade da vida humana. Portanto, muitos casos que conhecemos são de final trágico, se não com morte. Existe uma situação de escravidão permanente, da qual é muito difícil se libertar.
Existe algum projeto governamental para investigar esses casos?
As denúncias que fizeram junto comigo dois irmãos bispos, Dom Erwin Kräutler, de Altamira (PA), e Dom Flávio Giovenale, de Abaetetuba(PA), eles também ameaçados de morte como eu, levantaram um forte clamor que resultou em uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) sobre a exploração de menores, que é, repito, uma atividade muito conexa com o tráfico humano, sobretudo de mulheres, e mais particularmente, de adolescentes. Uma das conclusões da CPI foi que, devido à grande conexão entre as duas atividades, foi necessário organizar outra comissão para investigar o tráfico humano. Aqui no Pará, já acontece há nove meses uma CPI para investigar esse tipo de crime e se descobriu conexões com quadrilhas de tráfico de órgãos. Esta comissão também tem denunciado abusos contra adolescentes e menores, que iludidos com promessas de um futuro esportivo brilhante, são transportados irregularmente para São Paulo e Rio de Janeiro, a fim de serem comprados ou alugados, para jogarem futebol.
O senhor é apontado como uma das pessoas marcadas pra morrer, em decorrência de suas denúncias. O senhor tem medo?
Bom, essa é a pergunta que todo jornalista faz. Eu penso na morte com muita frequência, quando, por exemplo, pela manhã abro a porta para ir à capela para rezar. Penso: “por traz dessa porta pode estar o meu assassino”. Quando tenho de atravessar o corredor que me leva para a capela, tem uma sacada e penso, “dentro daquela sacada, um rifle pode acabar facilmente com a minha vida”. Tem uma sombra no amanhecer e o pensamento da morte me acompanha.
Esse pensamento me acompanha muito, mas Deus é mais forte. Posso dizer claramente que Ele tem tirado toda angústia e ansiedade, pela graça Dele, unicamente, não tenho perdido um minuto de sono, e mais ainda, penso que se um dia puder entregar meu sangue por Jesus, que derramou o seu preciosíssimo sangue por um pecador tão grande como eu, para mim será verdadeiramente o dia mais feliz da minha existência. Se um dia eu puder dar a minha vida por esse povo, aqui do Marajó, para mim será o final do meu ministério episcopal, na maior alegria, na maior glória, para honra de Deus e realização daquilo a que Ele me enviou. Isso é graça de Deus, sou consciente do perigo que corro, mas, ao mesmo tempo, estou muito mais consciente da herança para qual Cristo me escolheu.
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Quadrilhas de traficantes de pessoas são grupos poderosos, afirma Dom Luiz Azcona - Instituto Humanitas Unisinos - IHU