02 Setembro 2013
É preocupante o fato de que as políticas hipócritas do governo Obama não são nem um problema, ao menos nos Estados Unidos. É como se houvesse um consenso de que os Estados Unidos não têm que jogar de acordo com as mesmas regras que todos os outros. Enquanto esse consenso não for desafiado, os Estados Unidos não terão nenhuma credibilidade na sua luta para extraditar Snowden ou qualquer outra pessoa.
A opinião é de Stephen Zunes, professor de política na Universidade de San Francisco. O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 29-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Pessoas razoáveis podem discordar quanto a saber se o ex-analista da Agência de Segurança Nacional dos EUA, Edward Snowden, deve ser celebrado como um informante por ter revelado espionagens generalizadas do governo dos EUA ou se ele deve ser julgado e punido por ter vazado documentos confidenciais.
No entanto, a extraordinária hipocrisia do governo Obama ao exigir a sua imediata extradição para os EUA, apesar da falta de um tratado de extradição com a Rússia, enquanto se recusa a extraditar criminosos muito piores para os países com os quais os Estados Unidos têm tais obrigações de tratado, nega ao governo dos EUA qualquer credibilidade sobre o assunto.
O governo Obama tem tomado medidas extraordinárias para extraditar Snowden para os EUA, onde ele provavelmente seria condenado e enfrentaria a prisão perpétua. Essas medidas incluem o cancelamento da cúpula há muito tempo planejada do presidente Barack Obama com o presidente russo, Vladimir Putin, e a criação de uma grande crise diplomática com os países latino-americanos ao forçar o avião do presidente boliviano, Evo Morales, a fazer um pouso não programado em julho por causa da possibilidade de que Snowden estivesse a bordo. Os membros do Congresso e os principais especialistas pediram ações ainda mais duras contra esses países que oferecem asilo a Snowden.
Contudo, praticamente nenhuma atenção foi dada em Washington ou na mídia dominante com relação à efetiva concessão por parte do governo Obama de asilo político a uma série de notórios terroristas, sequestradores e assassinos em massa.
Em julho, enquanto o governo Obama estava pressionando o governo russo a entregar Snowden, ele também estava pressionando o governo do Panamá a não entregar Robert Seldon Lady – um ex-agente da CIA – para a Itália para cumprir a sentença de oito anos por sequestro, para a qual ele havia sido condenado à revelia.
Lady foi acusado de organizar o rapto de fevereiro de 2003 do clérigo islâmico Hassan Mustafa Osama Nasr, residente na Itália, em uma rua de Milão e de clandestinamente transportá-lo para o Egito para ser torturado. Lady assumiu a sua responsabilidade no sequestro de Nasr e em meses subsequentes de espancamentos e de outros abusos, declarando: "É claro que foi uma operação ilegal. Mas esse é o nosso trabalho".
Em resposta a um mandado da Interpol solicitado pela Itália, as autoridades panamenhas prenderam Lady depois de cruzar a fronteira da Costa Rica, em julho. No entanto, o governo Obama conseguiu convencer o presidente conservador e semiautocrático do Panamá, Ricardo Martinelli, a permitir que ele, ao contrário, voltasse para os Estados Unidos para evitar a justiça, provocando fortes protestos do governo italiano. Apesar de um tratado de extradição de longa data com a Itália, um país democrático e aliado da Otan, Obama claramente se sente sem nenhuma obrigação de levar tais criminosos à justiça.
Também há o caso de Gonzalo Sánchez de Lozada, o ex-presidente da Bolívia, e do seu ministro da Defesa, Carlos Sánchez Berzaín, que foram responsáveis por ordenar o massacre de outubro de 2003 de manifestantes indígenas que protestavam contra as políticas econômicas e energéticas apoiadas pelos EUA.
Usando metralhadoras e fuzis de alta potência, as forças governamentais assassinaram 67 pessoas, incluindo crianças, e feriram mais de 400. Esse massacre só alimentou uma revolta popular e em grande parte não violenta já em andamento, forçando o governo a renunciar em poucos dias.
Sánchez de Lozada e Sánchez Berzaín fugiram para os Estados Unidos. O Departamento de Justiça dos EUA concedeu asilo a Sánchez Berzaín em 2008. O governo Obama rejeitou o pedido de extradição por parte da Bolívia de Sánchez de Lozada em 2012.
Assim como a Itália (e ao contrário de Rússia), a Bolívia tem um tratado de extradição com os EUA. Sánchez de Lozada negociou e assinou o tratado quando era presidente. A sua extradição é apoiada não só pelo governo de esquerda, mas também pela oposição conservadora da Bolívia. De fato, o ex-vice-presidente de Sánchez de Lozada, Carlos Mesa, abriu o caso. Ele foi apoiado por uma maioria de mais de dois terços do Congresso boliviano, que era então dominado pelo próprio partido político de Sánchez de Lozada e seus aliados. E o esforço de levar esses criminosos à justiça foi um esforço internacional. Um dos principais pesquisadores é Thomas Becker, um jovem advogado norte-americano, formado pelos jesuítas e pós-graduado pela Harvard Law School.
Entretanto, Sánchez de Lozada tem defensores influentes em Washington. Renomados agentes do Partido Democrata como James Carville, Stan Greenberg e Bob Shrum foram contratados como consultores da sua campanha de 2002. Seu advogado era Greg Craig, que trabalhou como assistente e conselheiro especial do presidente Bill Clinton.
O caso mais notório e de longa data dos EUA abrigarem criminosos violentos é o de Luis Posada Carriles, um terrorista cubano de direita e ex-agente da CIA. Posada Carriles é responsável por uma série de atentados terroristas em Havana, incluindo o que matou um turista italiano, um complô para explodir um auditório panamenho repleto com centenas de estudantes, onde o presidente cubano, Fidel Castro, estava falando, assim como como o bombardeio de 1976 de um companhia aérea cubana em Barbados, que matou 73 pessoas.
Ele foi indiciado por uma série de acusações de terrorismo em vários países latino-americanos, mas o governo Obama recusou todos os pedidos de extraditá-lo para enfrentar a justiça.
Como disse o jornalista Blake Fleetwood, "obviamente, alguém o está protegendo. Nós o treinamos. Ele é o nosso menino. Eu acho que ele ainda é um herói para algumas pessoas [na sede da CIA] em Langley... Há um tremendo senso de lealdade para com ele. Ele fez o que nós o treinamos para fazer".
Na visão distorcida do governo Obama e dos seus apoiadores, a recusa de extraditar terroristas, sequestradores, assassinos e outros bandidos é um direito soberano dos Estados Unidos, que deveria estar fora de debate. Por outro lado, o fracasso de governos estrangeiros de cooperar com as demandas dos EUA de extraditar um informante como Snowden é visto como tão flagrante a ponto de provocar uma série de grandes crises diplomáticas.
Talvez ainda mais preocupante seja o fato de que as políticas hipócritas do governo Obama não são nem um problema, ao menos nos EUA. Ao contrário da Europa, da América Latina e de outras partes do mundo, esses casos não estiveram nos noticiários. Eles não apareceram nas audiências do Congresso ou nos debates in loco. Nem a Casa Branca, nem os funcionários do Departamento de Estado tiveram que enfrentar perguntas da mídia. É como se houvesse um consenso de que os Estados Unidos não têm que jogar de acordo com as mesmas regras que todos os outros.
Enquanto esse consenso não for desafiado, os EUA não terão nenhuma credibilidade na sua luta para extraditar Snowden ou qualquer outra pessoa.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Hipocrisia do governo dos EUA enfraquece demanda pela extradição de Snowden - Instituto Humanitas Unisinos - IHU