01 Setembro 2014
Em Le Royaume (O Reino), Emmanuel Carrère faz uma investigação sobre a vida de São Lucas e sobre as origens do cristianismo.
A reportagem é de Marie Chaudey e Marie-Lucille Kubacki, publicada no sítio da revista La Vie, 22-08-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Em Le Royaume, o seu novo livro que vai dar o que falar nesta temporada literária, Emmanuel Carrère volta sobre a sua "crise" mística, remontando ao mesmo tempo às fontes históricas do cristianismo, na companhia do evangelista Lucas e de São Paulo: o romancista coloca assim, em 650 páginas e com total honestidade, a pergunta essencial: o que significa ser cristão?
Ele realmente era cristão quando frequentava as igrejas durante a sua conversão? Ele o é hoje, quando nega ser crente, mas se mostra apaixonadamente interessado pelas lições de vida da mensagem evangélica? Carrère se mantém em equilíbrio, entre aquele que, dentro de si mesmo, é tentado a acreditar e aquele que quer ficar às margens da fé.
Eis a entrevista.
Como definir o seu livro: uma autoinvestigação (sobre a fé que você tinha há 20 anos), acompanhada de uma investigação histórica (sobre as origens do cristianismo)?
Deixei de chamar de "romances" os meus livros a partir de L'Adversaire. Mas Le Royaume certamente é aquele em que a parte de invenção é mais densa. Sobre o meu personagem principal que é Lucas, sabem-se poucas coisas que eu fui obrigado a inventar – embora, certamente, o relato se sustente por um importante trabalho de investigação. Em um caso, como para a história de Jean-Claude Romand, o dossiê da investigação não deixava espaço para incertezas.
Aqui, ao contrário, só há "buracos". Esse Lucas é imaginado a partir daquilo que não se sabe. Somos obrigados a nos virar com as cartas de Paulo – sabendo que Lucas era companheiro seu – e com os escritos de Lucas, isto é, os Atos dos Apóstolos e um Evangelho – sabendo que, em certo momento, aparece alguém que fala em primeira pessoa, e portanto é plausível imaginar que se trate do próprio Lucas: eis um dos meus acessos. Também levei em consideração o período em que Paulo se encontrava preso em Jerusalém e depois em Cesareia. Trata-se de dois anos dos quais não se sabe nada da vida de Lucas. Se ele fez um trabalho de pesquisa sobre Jesus como afirma no início do seu Evangelho, ele o fez, provavelmente, nesse período: ele estava no lugar 25 anos depois dos fatos. Não há nada de inverossímil em imaginar isso.
Lendo os Evangelhos, você tem a impressão de estar diante de relatos históricos ou de romances?
Eles não pretendem ser romances! Mas eu realmente tenho a impressão de estar diante de literatura. Uma das coisas que tornam o cristianismo tão singular é que ele também é uma criação literária, até mesmo romancesca. Isso não impede, evidentemente, que haja um fundo de verdade. Aqueles que negam isso estão errados. E também é inegável que, depois, se sobrepuseram camadas de fabulação. É uma religião fabricada pela literatura. E, quando uma pessoa é também escritora, de repente, se diz: a literatura pode chegar a isso! Praticada por um homem como Lucas, que não era um gênio, mas um escritor talentoso, um homem bastante inteligente e aberto, que se encontrava no lugar certo na hora certa...
Quando perguntado se você é cristão ou não, em todo o livro, você responde com alguns "quem sabe..." e com um "não sei" final. Então, você é ou não é?
Digamos que uma posição seria absolutamente coerente: se, como eu, não se crê nem na ressurreição de Cristo nem no fato de que ele nasceu das entranhas de uma virgem, pode-se tirar a conclusão de que o cristianismo é interessante culturalmente – produziu as catedrais e a música de Bach –, mas não devemos nos preocupar para além disso, fora desse interesse histórico-cultural absolutamente legítimo: em termos de verdade, seria igualmente absurdo se interessar pelas antigas teorias sobre a circulação sanguínea, por exemplo – à parte de alguns homens da ciência e da medicina, ninguém o faz, porque estão equivocadas. Portanto, seria coerente pensar do mesmo modo em relação ao cristianismo, mas eu não consigo. Embora não me definiria como um crente, há alguma coisa em mim que parece resistir, alguma coisa que me é extremamente preciosa e que não é unicamente moral ou cultural: há aquela loucura do cristianismo da qual Paulo fala muito bem e que vai em sentido oposto a tudo o que se crê que se saiba sobre o mundo, sobre o modo em que ele gira e funciona, e, portanto, sobre o modo como devemos nos adequar a ele. Parece-me muito difícil abrir mão dessa loucura.
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''Parece-me muito difícil abrir mão da loucura do cristianismo.'' Entrevista com Emmanuel Carrère - Instituto Humanitas Unisinos - IHU