Que surpresa a ''Ecclesiam suam''!

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13 Agosto 2014

A releitura da Ecclesiam suam de Paulo VI reserva algumas surpresas, mesmo para aqueles que viveram, em estreita proximidade, o desenvolvimento da perspectiva que ela introduziu na mente católica na metade do século que nos separa da sua publicação. Tal perspectiva é comumente resumida no forte impulso conferido ao estilo do diálogo, indicado como a atitude mais idônea para caracterizar a forma da comunicação cristã da fé e na fé.

A opinião é do teólogo Pierangelo Sequeri, reitor da Facoltà Teologica dell'Italia Settentrionale, em artigo publicado no jornal L'Osservatore Romano, 10-08-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Uma autobiografia espiritual. "Pastor solidamente ancorado na Verdade, a sua fé cristalina e inabalável não cedeu a juízos do momento e a visões ligadas a interesses contingentes. Ao mesmo tempo, não hesitou em dialogar com todos os homens de boa vontade, por ser interiormente livre e por ser consciente de que o Espírito Santo 'sopra onde quer' (cf. João 3, 8), guiando de modos diferentes o caminho da história da salvação." A afirmação é do secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, na apresentação do imponente livro Pensieri di Paolo VI. Autobiografia spirituale (Vigodarzere, Associazione Editoriale Promozione Cattolica, 2014, 930 páginas), que chegou à sua segunda edição.

A releitura da Ecclesiam suam de Paulo VI reserva algumas surpresas, mesmo para aqueles que viveram, em estreita proximidade, o desenvolvimento da perspectiva que ela introduziu na mente católica na metade do século que nos separa da sua publicação. Tal perspectiva é comumente resumida no forte impulso conferido ao estilo do diálogo, indicado como a atitude mais idônea para caracterizar a forma da comunicação cristã da fé e na fé.

De fato, no discurso de abertura do segundo período conciliar (29 de setembro de 1963), Paulo VI havia antecipado em grande medida a sistematização temática da encíclica, indicando as quatro "prioridades" que a continuidade dos trabalhos donciliares chamava à atenção da assembleia conciliar: a clara formulação da consciência que a Igreja deve ter de si mesma, a importância de renovar a transparência da sua identidade, a generosa dedicação à causa da unidade entre os cristãos, a adoção de uma atitude de compreensão e de amizade em relação ao mundo que deve ser encorajado a se abrir ao evangelho.

Nesse discurso, no entanto, o conceito e o termo "diálogo" não foram empregados. Eles aparecem como centrais na encíclica Ecclesiam suam, em que o espírito e a prática do diálogo são objeto de justificação teológica, mas também de precisos detalhes sobre os diversos contextos da sua aplicação.

Eu falava de surpresa. Não me refiro tanto à surpresa da época, quando o conceito foi confiado à Igreja do nosso tempo, acendendo a imaginação católica (e não só) e tornando-se um símbolo do evento conciliar, como já tinha acontecido com o feliz termo "aggiornamento" [atualização], lançado pelo antecessor, João XXIII (conceito não poupado, este também, de desconfianças similares).

Refiro-me, antes, ao fato de que o texto de Paulo VI, lido acuradamente hoje, eleva de tal modo o tom e o sentido do estilo dialógico cristão que parece ser mais um guia para a sua reabilitação teológica para o nosso tempo: reabilitação da qual – é difícil negar – se sente a necessidade.

As palavras-chave, mesmo aquelas que abriram com sucesso um caminho para a verdade, naquele mesmo momento, começam a provocar um excesso de confiança, que abre caminho para o lugar-comum. O lugar-comum gera o estereótipo, sob o risco de uma palavra boa para todo conteúdo, porque se perdeu a memória do seu verdadeiro significado.

Nas últimas décadas, a conversa, o confronto, o debate, a mesa redonda tornaram-se também um mero exercício de entretenimento, uma forma de espetáculo da palavra (talk show). Novas habilidades brotaram daí: há profissionais do confronto, especialistas da comunicação e também exibicionistas do debate: que vigiam para que não se perturbe o pensamento único.

Todos agora, mais ou menos confessadamente, somos assaltados frequentemente por dúvidas que esses jogos de palavra devem compensar o fato de que falamos de nada. A pulsão irresponsável à externação é o contrário da partilha da intimidade. As palavras em liberdade tomam um caminho completamente diferente da liberdade de expressão.

Em muitos casos, a fronteira da parrésia com a fofoca inconclusiva ou com a demagogia camuflada (coisas que, além disso, os antigos conheciam muito bem) parece até ter se tornado mais sutil. O fútil espetáculo do diálogo substitui muito facilmente o autêntico intercâmbio de pensamento, a ponto de nos fazer temer pela integridade da espécie. O espetáculo do diálogo nos tranquiliza, certamente: é sempre melhor do que a guerra (mas ele a está afastando?).

A cena midiática da interação total (chats, blogs, redes sociais) é um rio cheio de pulsões destrutivas e de obscenidades virais. Nomear tudo isso como enriquecimento do diálogo (e até mesmo como liberdade de pensamento) nos deixa literalmente sem palavras. O diálogo, aqui, deve ser posto a salvo. E as crianças devem ser alertadas.

O baixo perfil de muitas práticas de diálogo oferecem hoje mais do que um pretexto para aqueles que não acreditam naquela forma essencial de acesso à verdade que é importante para nós, que se descerra apenas na experiência do falar e do ouvir com seriedade e simpatia, lealdade e respeito, entre seres humanos. Experiência ainda mais essencial e responsabilidade compartilhada quanto mais nos aproximamos às perguntas sobre a justiça das coisas em que se ganha ou se perde a alma.

Releio hoje, na sua inspirada sobriedade e concretude, a lição da Ecclesiam suam sobre o diálogo que deve marcar o estilo da Igreja – no seu interior, com as outras religiões e até com o mundo secularizado da nossa época – e descubro que se pode recompreender aí a necessidade, o rigor, a qualidade evangélica e o trato civil, até.

Seria imperdoável (mas acontece) confundir a abertura sapiencial dessa grande encíclica com o espírito de muita fofoca religiosa corrente (tão politicamente correta e, ao mesmo tempo, tão intelectualmente embaraçosa).

Não há relação entre o diálogo de que se fala naquele texto e as práticas dessa fofoca. Portanto, não há sequer qualquer motivo para duvidar da qualidade daquele ensino, que prescreve, ao cristianismo, em primeiro lugar, o estilo do diálogo: pela fundamental razão de que esse é o estilo de Deus, que pudemos ouvir e tocar com as mãos em Jesus, e que o dom do Espírito leva a profundidades inacessíveis para os humanos: "É preciso que tenhamos sempre presente esta inefável e realíssima relação de diálogo, que Deus Pai nos propõe e estabelece conosco por meio de Cristo no Espírito Santo, para entendermos a relação que nós, isto é a Igreja, devemos procurar restabelecer e promover com a humanidade" (n. 42).

Leio, no mesmo texto, uma das formulações mais bonitas dessa característica constitutiva do ser-Igreja, dentre todas as que apareceram nesses 50 anos: "A Igreja deve entrar em diálogo com o mundo em que vive. A Igreja faz-se palavra, faz-se mensagem, faz-se colóquio" (n. 38). O próprio ser humano, desde que foi criado, homem e mulher, é colóquio.

Leio também uma sabedoria apaixonada e desarmada, livre de todo compromisso relativista, como de toda ingenuidade fundamentalista. O testemunho da fé não passa pelo caminho do diálogo para contornar a missão atribuída pelo evangelho de Jesus ou para tergiversar sobre a verdade de Deus. Nem se resigna a contradizer a urgência da boa notícia que porta, escolhendo o caminho da condenação apriorística ou persistindo na vaidade da conversa inútil.

Portanto, subtrai dignidade de diálogo à astúcia mundana que "finja recebê-lo sem sinceridade", para manipular instrumentalmente a sua oferta (n. 44). Tal artifício não deve ser premiado.

Da "maturidade do homem, tanto religioso como não religioso, habilitado pela educação profana a pensar, falar e manter com dignidade o diálogo", tem-se o direito (e o dever) de esperar um correspondente nível de honestidade intelectual. Preconceitos que podiam ser compreendidos e parecer insuperáveis em contextos históricos e culturais de um obscurecimento ideológico mais grave tornam-se inaceitáveis no contexto das transformações evidenciadas pelo atual modelo do debate. A dignidade do diálogo "indica, por parte de quem a inicia, um propósito de urbanidade, de estima, de simpatia e de bondade" (n. 46). É lícito esperar um espírito semelhante e um rigor igual.

Eu só quis compartilhar alguns exemplos da admirável surpresa de um texto que não terminou de nos instruir e de nos encorajar. Gostaria de acrescentar uma última ênfase, que diz respeito a um ponto de singular convergência entre a apaixonada peroração de Paulo VI sobre a qualidade do diálogo da fé e o extraordinário compromisso dedicado pela exortação sinodal de Francisco à qualidade da pregação eclesial (Evangelii gaudium, nn. 135-159; o n. 158, a esse respeito, cita Paulo VI explicitamente).

A Ecclesiam suam fala abertamente da "suma importância, que a pregação cristã conserva, e hoje desempenha de maneira especial no quadro do apostolado católico e do diálogo" (n. 51). Paulo VI fala de uma "arte genuína da palavra sagrada", que corresponde à palavra coloquial de uma fé "especialista da linguagem".

Não no sentido de uma exibição espetacular de uma eloquência humana, nem do fútil exercício de uma retórica cativante. A palavra que serve, aqui, não é obsessivamente repetitiva, nem brilhante a todo o custo, como a de qualquer marketing. É uma palavra forjada no cadinho de uma virtude real, interior, que, acima de tudo – e até a última vírgula –, a colocou à prova da Palavra e da própria alma.

Daí ela deve fazer chegar aos ouvintes, junto com a simpatia e o respeito da testemunha, "a segurança da fé" e "a intuição da coincidência entre a palavra divina e a vida". E assim, de modo digno de Deus e do homem, conduzir – conclui Paulo VI, com enigmática e incandescente metáfora – ao "antegozo do Deus vivo".

Paulo VI talvez não jogou sobre nós o manto de uma sabedoria profética e de um estilo querigmático ao qual, depois de meio século, ainda somos realmente devedores e aprendizes?