21 Julho 2014
Hoje, temos uma ideia inexata e incompleta das origens da Idade Média cristã. Conhecemos o cristianismo latino e ocidental, e o bizantino. Ignoramos quase tudo de uma terceira tradição, a siríaca, especialmente siro-oriental. Os padres siro-orientais foram muitos: Afraates, o persa, Efrém, João, o Solitário, Abraão de Natpar, Isaac de Nínive.
A análise é do ensaísta e crítico literário italiano Pietro Citati, um dos mais respeitados literatos contemporâneos, em artigo para o jornal Corriere della Sera, 15-07-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Hoje, temos uma ideia inexata e incompleta das origens da Idade Média cristã. Conhecemos o cristianismo latino e ocidental, e o bizantino. Ignoramos quase tudo de uma terceira tradição, a siríaca, especialmente siro-oriental, à qual é dedicado o belíssimo livro de Sabino Chialà: La perla dai molti riflessi [A pérola de muitos reflexos] (Ed. Qiqajon, Comunidade de Bose, 270 páginas).
Não resta quase nada dessa tradição hoje: pequenas comunidades dispersas e perseguidas no Oriente Médio, que raramente conseguem fazer com que sua voz chegue até nós. Mas, antigamente, até o século XIII, existia uma Igreja riquíssima, separada de Roma e de Bizâncio, que da Síria e da Mesopotâmia, de Antioquia e da Selêucia-Ctesifonte se estendia até a Pérsia oriental, à Península Arábica, ao Iêmen, à Ásia Central, à Índia, à Mongólia e à China, onde floresceu entre os séculos VII e IX.
Como os cristãos da Palestina, a comunidade siríaca era de origem semita. Falava uma variante do aramaico, o siríaco; e, em siríaco (e depois em persa, sogdiano, chinês), traduziu o Antigo e o Novo Testamento.
Nas escolas e nos mosteiros da Síria e da Mesopotâmia, estudavam-se os clássicos gregos; e, do siríaco, traduziram-nos os árabes, que, depois, através da Espanha, os teriam reintroduzido ao ocidente latim.
A Igreja siro-oriental seguia o rito definido como "assírio-caldeu". Tinha uma cruz com braços iguais, sem a figura do Crucificado (embora o Crucificado tivesse um papel essencial na sua teologia): braços que terminavam, cada um, em três pérolas.
Os padres siro-orientais foram muitos: Afraates, o persa, Efrém, João, o Solitário, Abraão de Natpar, Isaac de Nínive.
A partir do segundo Sínodo de Selêucia-Ctesifonte (488), a Igreja sírio-oriental foi diofisita: acreditava na dupla natureza, humana e divina, do Cristo. Há algum tempo, ela tinha afrouxado os laços com o mundo bizantino, também para evitar as perseguições, muitas vezes violentas, do império da Pérsia sob Shapur II (309-379) e Bahram IV (388-399).
Ela não aceitou as resoluções do Concílio de Éfeso de 431. Daí nasceu a incompreensão e a ruptura entre cristianismo ocidental e cristianismo oriental, que encontrou o seu ápice na viagem, em meados do século XIII, de Guilherme de Rubruk à Mongólia (Viaggio in Mongolia, Fundação Valla-Mondadori, editado por Paolo Chiesa, 2011), quando o frei franciscano não reconheceu nos sacerdotes da corte do Khan mongol os descendentes da antiquíssima tradição síro-oriental.
Para as comunidades siríacas e persas, o advento do Islã não significou, ao menos nos primeiros séculos, perseguição e decadência: os cristãos escreveram em árabe; e, justamente a partir do século VII, a Igreja da Mesopotâmia conheceu um extraordinário florescimento e expansão no Oriente.
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Antes que Moisés e Jesus preanunciassem o livro, cada aspecto, rosto e reflexo da Natureza eram uma palavra pronunciada pelo Criador. A Natureza é palavra, como a que lemos no Antigo e no Novo Testamento. Quem não sabe captar Deus na criação – o sol, a lua, as árvores, as flores, as pedras – não saberá se beneficiar da leitura do Gênesis e dos Evangelhos.
Deus ama a criação: a sua criação, com uma espécie de loucura, como escreve Isaac de Nínive. Mesmo que tenha havido um tempo em que a criação não existia, e o espírito de Deus pairava sobre as águas como uma pomba, nunca houve um tempo em que Deus não a conhecesse. Quando lhe pareceu, fê-la existir: falou, criou a luz, o sol, a lua, os animais rastejantes, e por duas vezes o homem.
Ao lado do livro da Criação, há o da Escritura. Nele, Deus se volta aos seres humanos empregando palavras que eles conhecem: à custa de empobrecer a sua mensagem, revelando-a em cores pálidas, desprovidas do esplendor original. Deus se abaixa, se faz próximo ao homem, fala-lhe empregando a sua língua, não a própria.
Como nenhum de nós vê Deus, assim também ninguém conhece a sua língua transcendente: só o Filho a conhece. Deus se esconde: comunica ao homem palavras divinas, fazendo-as parecer humanas, que não dizem a verdade de Deus, mas oferecem uma representação imperfeita dela.
Seja qual for, a Escritura é uma pérola, como as pérolas nos braços da cruz: o seu aspecto é belíssimo, de qualquer lado que se olhe para ela. Disse Efrém: "Pus a pérola, irmãos meus, na palma da minha mão, / para poder examiná-la. / Pus-me a observá-la de um lado: / tinha a mesma aparência em todos os lados. / Na sua limpidez, vi o Límpido, / que não se torna opaco; / e na sua pureza, / o grande mistério do corpo de Nosso Senhor, / que é puro. / Na sua indivisibilidade, vi a verdade, / que é indivisível".
A pérola é o Filho: não há sinal da Escritura que não o proclame: não há página onde não haja a imagem do Cristo; não há personagem que não traga o nome do Senhor. A pérola é infinita. Mesmo que os dias do homem fossem tão numerosos como todos os dias do mundo, desde Adão até o fim dos tempos, e o homem meditasse as Escrituras por esse tempo, nunca poderia captar todas as profundidades das palavras, porque ninguém pode compreender a sabedoria de Deus, mesmo que disfarçada, refletida, humanizada.
Como a veste é humana, a Escritura está repleta de contradições: frases e máximas parecem se anular mutuamente. As palavras de Jesus se opõem, como se tivessem sido ditas a dois tipos diferentes de pessoas. Por exemplo, o Senhor disse: "Não julguem" (Mt 7, 1), mas também: "Corrige-o diante de toda a Igreja" (Mt 18,17).
"Se esses mandamentos fossem ambos para ti – diz o Liber graduum –, qual deles seguirias? Quer julgues, quer não julgues, afastar-te-ias do Evangelho".
Se vocês virem palavras diferentes entre si – diz Abraão de Natpar – não é preciso se abalar: a verdade é uma: o Senhor. Mas há muitas formas diferentes, por causa da variedade dos tempos e dos indivíduos. Se vemos palavras em contradição entre si, não devemos ter pressa, excluindo que possam se combinar. O que importa é a totalidade da Escritura, que sempre devemos ter em mente.
Assim, esses escritos, dos séculos V, VI e VII, afirmam coisas que os modernos intérpretes das Escrituras poderiam repetir: a multiplicidade do texto, a variedade da interpretação, a complementaridade dos métodos exegéticos, segundo os contextos e os destinatários.
A exegese siríaca está ligada a três tradições: a exegese judaica, a escola antioquena e a alexandrina. Muitas vezes, a leitura alegórica, típica da escola alexandrina, é rejeitada, porque ofende o significado literal. Os antioquenos preferem a leitura tipológica: que, embora oferecendo um sentido a mais em relação ao literal, nunca anula a realidade do texto.
Há a leitura factual e a literatura tipológica: o mistério do Antigo Testamento é revelado no Novo. Essa leitura também é espiritual. Alguns Padres, no entanto, como Afraates, o persa, em vez de ler o Antigo Testamento com os olhos do Novo, lê o Novo Testamento com o do Antigo.
Em um ponto, todos os Padres siro-orientais estão de acordo: a exegese bíblica nunca poderá explicar de modo definitivo a página bíblica e esgotar o seu sentido. A tarefa do exegeta não é a de fechar e delimitar a Escritura fixando um significado, mas possibilitar um acesso cada vez mais amplo.
Se a Escritura é inexaurível, as explicações são sempre parciais: o exegeta diz "talvez", "é possível", levanta hipóteses. "As palavras de Deus – diz Afraates – são infinitas e nunca estão seladas para sempre. Se tu tomas a água do mar, não se notará qualquer diminuição sua. Se levantas a areia da praia, a sua quantidade não diminui".
Deus imprimiu muita beleza nas palavras, para que cada um possa indagar o que ama: escondeu dentro delas todos os tipos de tesouros, para que cada um possa ser enriquecido.
"Alegra-te porque te saciaste, diz Efrém, e não te entristeças pelo que te supera! O sedento se alegra porque bebeu, mas não se entristece porque é incapaz de esgotar a fonte".
Cada intérprete é um mergulhador que se lança na água em busca da pérola: tateia nas profundezas do mar e traz a pérola para a superfície. Não esgota as pérolas: não esgota a Escritura; Deus precisa de mergulhadores e quer qu eles se multipliquem.
Não basta rezar para Deus: é preciso ler, reler, batendo nas portas da Escritura; porque a leitura é o alimento privilegiado da oração e, sem ela, não se pode compreender Deus. Portanto, a leitura é mais importante do que a oração. Mas, ao mesmo tempo, não devemos nos aproximar das palavras misteriosas da Escritura, sem antes ter rezado.
A oração é a chave para discernir a verdade da Escritura. Os monges siríacos nos recomendam ler na quietude, longe de todos, livres das preocupações do corpo e do tumulto dos compromissos.
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Isaac de Nínive nasceu não sabemos quando às margens do Golfo Pérsico; e, entre 661 e 681, foi nomeado bispo de Nínive. Depois de cinco meses de episcopado, abandonou as vestes de bispo para se retirar entre os anacoretas.
Segundo a lenda, ficou cego por causa do esforço prolongado da leitura. Morreu muito velho. Ignoramos se todas as suas obras chegaram até nós: elas tiveram sorte, traduzidas para o grego, árabe, georgiano, russo, etíope, latim, italiano, francês, catalão, castelhano.
Quando escreveu Os Irmãos Karamazov, Dostoiévski as conhecia. Fascinavam-lhe a densidade da frase, os deslumbrantes vieses epigráficos, a natureza original do pensamento, que deviam escandalizar muitos leitores.
Recentemente, foram traduzidos ao italiano os seguintes livros: Discorsi ascetici I: L’ebbrezza della fede (editado por M. Gallo e P. Bettiolo, Roma 1984); Discorsi spirituali (editado por P. Bettiolo, Bose 1990); Terza collezione di discorsi ascetici (editado por Sabino Chialà, Bose 2004). Aconselho principalmente, como leitura introdutória, a antologia editada por Sabino Chialà: Un’umile speranza (Bose, 1999).
Segundo Isaac de Nínive, houve um tempo, antes da criação, em que Deus não possuía nome: em um segundo tempo, no nosso indefinido presente habitado por homens e por animais, ele possuía o nome, sempre impróprio, que lhe era atribuído pelos seres humanos; e, por fim, virá de novo um tempo em que Deus não terá nome, envolto na sua luz.
O Deus dos tempos intermédios, que nós chamamos de Pai, Filho, Espírito, ama o mundo com excesso e loucura; e habita os seres humanos, embora não com a sua própria natureza, já que ela não pode ser circunscrita nem encerrada.
Deus ama a todos: dá os seus dons a todos: pecadores e demônios, e àqueles que nem sequer sabem que ele existe. Mas há uma qualidade que Deus não possui: ele não é justo, ou está acima da justiça. Como podemos chamar Deus de justo, se, ao ler os Evangelhos, nos deparamos com a parábola do salário dos operários e com a do filho pródigo?
Nos seus escritos, Isaac de Nínive fala sobretudo dos seres humanos, que ele contempla na sua miséria e na sua glória. Ele nos recomenda cuidar das coisas pequenas: quem as ignora, também nas coisas grandes será um mentiroso e um enganador, como diria Tolstói em Guerra e Paz.
Não devemos buscar as coisas mais difíceis para nós: ousar nas coisas escondidas; ter zelo demais, porque quem tem "zelo" está doente de uma grande enfermidade. "Um homem zeloso nunca alcança a paz dos pensamentos." "Para toda prática, há uma medida, e para toda prática é conhecido um tempo. Quem começar antes do tempo algo que é superior à sua medida, obtém dano com isso e nenhuma utilidade." O cristão sempre tem o dom milagroso do kairós.
Como vivemos no mundo, devemos conhecer o pecado. Isaac dissemina uma série de aforismos. "Quem é puro em pessoa, vê todas as pessoas, e ninguém lhe parece impuro e contaminado." "Ama os pecadores e rejeita as suas obras." "Cristo morreu pelos ímpios, não pelos bons." "Não odeies o pecador. Chora sobre ele. Por que o odeias? No máximo, odeie os seus pecados."
Houve um tempo em que o pecado não existia no Paraíso Terrestre, e haverá um tempo, no reino dos céus, em que ele não existirá mais.
A época em que vivemos é repleta de tentações. Nós as odiamos, porque supomos que venham de Satanás: na realidade, descendem de Deus. Sem conhecer as tentações, nós não podemos conhecer a verdade. Só se entrarmos na tentação, adquiriremos a sabedoria do Espírito. Quem não é capaz de receber uma tentação grande não será capaz nem de receber um grande dom. Se Deus retirar de nós a grandeza da tentação, ele reduzirá também a grandeza do nosso dom.
Como os monges, devemos viver na solidão: mesmo em casa, no mundo, podemos ser solitários e habitar uma cela interior. Então, em pouco tempo, tornamo-nos partícipes da mente divina e, sem obstáculos, nos aproximamos da limpidez dos pensamentos.
Na nossa cela mental, rezamos: brota do coração uma fonte de doçura; os membros se comovem, os olhos se fecham, e os pensamentos se transformam. Como diz o Evangelho, não devemos pedir a Deus as coisas de que precisamos: o Salvador, que conhece todas as coisas pela compaixão que o habita, pensa em tudo o que nos diz respeito. A verdadeira oração é outra: sintamos o que Deus é, percebendo a superabundante plenitude do seu amor.
A forma mais elevada de oração é a espiritual, quando a natureza sai do que lhe é próprio. Então, não rezam nem a alma, nem a mente, nem os sentidos: enquanto tudo está na quietude, o Espírito divino que desce sobre Jesus no batismo realiza a sua própria oração. Quem reza se aquieta diante da magnificência do Senhor, que se revela ao Espírito, e é reduzido ao silêncio. Esse é o sinal de que o Senhor se comprouve com ele.
A oração sobe. Em certo ponto, ela para em um lugar, que interrompe o murmúrio dos lábios: Isaac de Nínive chama esse lugar de "estupor" ou de "não oração". O pensamento não tem mais oração, nem mente, nem lágrimas, nem poder, nem liberdade, nem súplicas, nem desejos e não anseia por nada daquilo que é esperado neste mundo e no mundo futuro.
A oração está superada, embora continue sempre. Como diz São Paulo na Carta aos Romanos, "o Espírito, quando habita na pessoa, não deixa de rezar. O Espírito reza continuamente. Então, nem quando dorme, nem quando está acordado, a oração cessa na sua alma; mas, quer coma, quer beba, quer faça qualquer coisa, e mesmo imerso no sono, as exalações da oração se elevam no seu coração, sem esforço".
Esse tipo de oração teve uma imensa sorte: na mística bizantina, na oração russa e em um belíssimo livro russo, que anos atrás teve muito sucesso na Itália: La via del pellegrino (Ed. Adelphi).
Lá em cima, no alto, perto do outro mundo, há lágrimas. Como águas de torrente, elas escorrem dos nossos olhos, não forçadas, misturando-se às fadigas, à leitura, à oração, à meditação, à comida e às bebidas: em tudo o que fazemos, existem as lágrimas.
Elas são o único sinal do corpo que manifesta a percepção da verdade. Quando chegamos à razão das lágrimas, o pensamento sai da prisão deste mundo e pousa o pé na órbita do mundo novo. Ele já respira o ar maravilhoso daquele lugar e começou a derramar lágrimas de estupor e de admiração. Quando se eleva ainda, o corpo permanece sem lágrimas, sem sensações e encontra a verdade no silêncio.
A leitura, a oração, a não oração, as lágrimas, o lugar sem lágrimas são todas etapas daqueles processo que leva à divinização da pessoa. Isaac de Nínive a aceita: a mística bizantina a aceita; mas o ocidente católico e latino, quase sempre, a rejeitou profundamente.
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O terceiro pulmão do cristianismo: a modernidade da tradição siríaca. Artigo de Pietro Citati - Instituto Humanitas Unisinos - IHU