02 Julho 2014
Alguns anos atrás, eu cunhei a frase "ortodoxia afirmativa" para tentar capturar o entendimento do Papa Bento XVI sobre o tema do sexo. Foi uma tentativa de explicar o curioso fato de que sempre que as pessoas esperavam que o infame "Doutor Não" abanasse o dedo contra o pecado sexual, o papa normalmente usava elegias sobre o amor em seu lugar. Ambos os elementos da fórmula [ortodoxia afirmativa] têm a sua importância.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no jornal The Boston Globe, 28-06-2014. A tradução é de Claudia Sbardelotto.
A linha de Bento XVI era "ortodoxa", porque ele certamente não estava mudando a doutrina, mas também era "afirmativa", já que ele queria enfatizar o que a Igreja apoia e não o que ela é contra. A ideia parece ser a de que a doutrina da Igreja pode encontrar um novo sopro de vida se ela for apresentada como algo mais do que uma ladainha de "não farás".
A julgar por um documento-chave do Vaticano divulgado na quinta-feira, 26 de junho, a ortodoxia afirmativa está bem viva, mesmo após a renúncia do pontífice que foi seu pioneiro.
Chamado de Instrumentum laboris, ou "documento de trabalho", o documento define a pauta para uma reunião de cúpula dos bispos católicos de todo o mundo, em Roma, de 5 a 9 de outubro, convocada pelo Papa Francisco para discutir a família. Será um grande evento, uma vez que quase não há um assunto polêmico que não seja pertinente - do direitos das mulheres, casamento gay e contracepção, à possibilidade de divorciados e católicos recasados de receberem a comunhão.
O texto foi concebido para sintetizar as informações que o Vaticano recebeu, incluindo respostas a um questionário solicitado por Francisco para buscar conhecer os pontos de vista das bases da Igreja.
Em relatórios precoces, muito foi comentado sobre o reconhecimento do documento de que muitos católicos não seguem a doutrina da Igreja sobre a contracepção. Essa não é uma verdade estrondosa, uma vez que isso tem sido óbvio por décadas. Como foi dito pelo cardeal Sean O'Malley em fevereiro, se esse for o único resultado produzido pelo questionário, o Vaticano poderia ter economizado a postagem.
O documento também é pouco notável por seu apelo literário, e o colunista do National Catholic Reporter, Pe. Tom Reese, chamou-o de "chato e sem graça" (para ser justo, dizer que um texto do Vaticano não é uma leitura emocionante é como dizer que um cachorro mordeu um homem - apenas o oposto seria notícia).
A sua importância real é servir como uma prévia das próximas atrações de outubro, e nesse nível o documento parece sugerir mudanças no tom, senão, provavelmente, também no conteúdo.
Ele confirma a Humanae vitae, a encíclica de Papa Paulo VI de 1968 que defende a proibição da Igreja sobre o controle da natalidade, e lamenta a influência de uma generalizada "mentalidade contraceptiva". Ele afirma que todas as conferências episcopais no mundo se opõem a "redefinir" o casamento para incluir casais de pessoas do mesmo sexo e manifestam oposição para permitir a adoção de crianças por casais homossexuais. Ele também descreve o aborto como um "pecado muito sério".
Mesmo na questão dos divorciados novamente casados, em que o próprio Francisco pareceu sinalizar abertura à mudança, o documento minimiza as esperanças de um avanço. O parágrafo 95 cita o fato de que a Igreja Ortodoxa, por vezes, permite um segundo ou terceiro casamento, mas afirma que em países ortodoxos a prática não tem reduzido o número de divórcios. O texto também adverte contra qualquer passo que possa ser percebido como uma permissão do "divórcio católico".
Em poucas palavras, essa é a parte "ortodoxa" do documento. O que é igualmente impressionante, porém, é a sua dimensão "afirmativa".
Inspirado pelo Papa Francisco, provavelmente a palavra mais importante no texto de 85 páginas é "misericórdia". Seu texto rejeita repetidamente a palavra "moralismo", insistindo em "uma abordagem pastoral aberta e positiva".
Atitudes de julgamento são o "pesadelo" do documento
"A Igreja não deve assumir uma atitude de um juiz que condena", afirma, citando Francisco "mas a de uma mãe que sempre recebe seus filhos e trata suas feridas para que elas possam curar".
Como exemplo, o texto diz no parágrafo 120 que, embora a Igreja desaprove a adoção por casais gay, os filhos de casais de pessoas do mesmo sexo devem ser acolhidas.
Ele também aplaude a coragem de mães adolescentes e pede todos os esforços para ajudá-las.
O documento apela para uma apresentação mais "positiva" do ensino da Igreja e adverte contra posturas "excessivamente rígidas". Em uniões gays, ele diz que "as reações extremas" não ajudam e apela a "uma atitude respeitosa e sem julgamento". Ele admite que a Igreja enfrenta uma falta de credibilidade em questões morais, em parte por causa de seus escândalos de abuso sexual e do estilo de vida luxuoso de alguns bispos.
O parágrafo 109 oferece uma série de infinitivos para capturar o estilo pastoral certo: "propor, não impor; acompanhar, não impelir; convidar, não expulsar; inquietar, nunca desiludir".
Traduzido em termos políticos, isso resume-se em um grande impulso para o setor moderado da Igreja.
Quando se trata de sexo, os católicos liberais, às vezes, buscam mudanças na doutrina, enquanto os conservadores querem defesas mais enfáticas da tradição. Os moderados são geralmente aqueles que aceitam a doutrina atual, talvez buscando pequenas acomodações em casos específicos (como permitir o uso de preservativos para os casais onde um dos parceiros é soropositivo e o outro não). No entanto, eles não acham que a Igreja tem de falar sobre sexo o tempo todo e favorecem a compaixão e a flexibilidade na forma como os ensinamentos são aplicados.
Vamos ver se o Sínodo dos Bispos de outubro vai seguir o roteiro definido no Instrumentum laboris. Se assim for, ele parece ser uma receita para um mandato da "ortodoxia afirmativa".
Se isso for verdade, e se Francisco seguir com ele, pelo menos teremos a chance fascinante de ver se um papa diferente pode levar adiante a mensagem de Bento XVI.