26 Junho 2014
O texto que publicamos abaixo reporta em grande parte o discurso que Hans Küng proferiu no ano passado, no momento do recebimento do prêmio Arthur Koestler.
A ocasião para a publicação, como contribuição para o debate sobre a delicada questão do fim da vida, é a entrega a Küng do "Grosso D'Oro" por parte da cidade de Bréscia, no dia 25 de junho. Küng, ao contrário do previsto, não poderá estar presente por problemas devidos a um agravamento do seu estado de saúde e não poderá realizar a prevista Lectio magistralis sobre "Renascimento de esperança para a Igreja e para o mundo".
O artigo foi publicado no sítio Viandanti, 22-06-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Eu disse "sim" com convicção a este reconhecimento [1], porque representa uma honra especial, pois me é dado não só pelo meu terceiro volume de memórias (Humanidade vivida) com o seu capítulo "Na noite da vida", mas também pelo meu trabalho de uma vida inteira.
Um caminho teologicamente responsável
Eu estava compreensivelmente ansioso para ver como um filósofo consegue compreender um complexo trabalho de uma longa vida de teólogo. O senhor, caro colega Dieter Birnbacher, cumpriu essa tarefa de um modo brilhante, profundo e com uma amplitude de horizontes. [...]
O laudator não falou apenas da minha pessoa, mas também fez reflexões importantes e apropriadas sobre o problema: não só sobre a ética mundial, mas também sobre uma sabedoria mundial, ou sabedoria escolar, ou dogmas, e sobre a penúria de exemplos e de figuras de referência, capazes de investigar, com grande capacidade, a integração e a complementaridade entre fé e razão, religião e iluminismo.
Neste nosso evento [2] são muito importantes as afirmações de Dieter Birnbacher sobre a aceitação ética da ajuda a morrer, que, na minha e na sua opinião, se baseia na confiança em um Deus entendido não como absolutista, mas amoroso. Essas afirmações me alegram enormemente, porque demonstram que a minha proposta de um caminho do meio teologicamente responsável sobre o direito à autodeterminação por motivos religiosos também encontrou acolhida na DGHS [Deutschen Gesellschaft für humanes Sterben, Sociedade Alemã por uma Morte Humana], assim como na EXIT [Associação pelo Direito a uma Morte Digna] suíça, muitas vezes difamada como associações sem religião e de tipo materialista. Por isso, eu agradeço a todos vocês, quer sejam crentes, quer sejam não crentes.
Responsabilidade pela minha morte
Também desejo aproveitar brevemente a oportunidade para explicar melhor a minha posição que reúne cada vez mais consenso. Mas não deve surpreender ninguém o fato de que os novos problemas que se apresentam e as suas respectivas soluções muitas vezes colidem com incompreensões ou mal-entendidos.
É difícil responder a uma substancial incompreensão marcada religiosa ou ideologicamente e ainda mais a concretos mal-entendidos.
Para excluir toda ambiguidade, digo claramente:
- Eu não defendo e não tenho em mente nenhum suicídio; mesmo no fim de uma vida só existe um homicídio se ele for cometido por motivações baixas, imbróglio ou violência contra a vontade do interessado.
- Assumo a minha responsabilidade pela minha morte no momento em que ela se apresentar, uma responsabilidade que ninguém poderá tirar de mim. Naturalmente, não quero, de modo algum, me despedir logo da vida, mas só em um dado momento, que eu espero reconhecer com lucidez.
- O Senhor, a mim, aos 85 anos, não envia um sinal direto do céu, mas o Senhor me dá, e eu espero, a graça de reconhecer o momento certo; porque, se fosse tarde demais, para mim se apresentaria uma situação sem saída, em uma demência incipiente.
- Não posso deduzir que o Senhor me preparou para o momento oportuno a partir de documentos bíblicos e nem justificá-lo com a razão; que esse fim é prematuro é uma mera opinião.
- Na Bíblia, em nenhuma passagem o suicídio é explicitamente proibido; por exemplo, é contado com aprovação o suicídio de Abimeleque, de Sansão e do rei Saul.
A vida, dom e tarefa
Como teólogo e cristão, estou convencido de que a vida humana, que o homem não se deu por si só, é, no fundo, um dom de Deus. Mas a vida também é, segundo a vontade de Deus, um empenho, uma tarefa para o homem. É entregue à nossa própria (e não outra) responsável disponibilidade.
Isso também vale para a última etapa da vida: o morrer. Ninguém deve ser forçado a morrer. Assim também ninguém deve ser forçado a viver. É desnecessário dizer que o homem deve levar em conta os "limites da sua liberdade limitada" (bispo emérito W. Huber).
Mas a pergunta é precisamente esta: qual é o limite que o homem não deve superar? A decisão, que eu penso como feita não por uma consciência desviada, mas por uma escolha feita com responsabilidade, é uma decisão existencial tomada em plena consciência, que permanece nas mãos apenas da pessoa interessada.
Eu considero uma arrogância quando os não interessados querem julgar como uma pessoa percebe de modo subjetivo a sua própria condição.
Eu afirmei muitas vezes: quem crê em uma vida eterna em Deus, o eterno, para além do espaço e do tempo, não deve se preocupar com um prolongamento eterno do tempo da vida terrena.
A Cruz de Jesus é incomparável
Eu não posso omitir uma crítica, que me é feita justamente por simpatizantes e leitores dos meus livros: seguir Jesus não significa também tomar sobre si a cruz até o fim? De fato, a cruz é apresentada como um obscuro projeto de Deus, de modo que os sofrimentos humanos são sublimados e idealizados.
Ao contrário, a minha opinião já está contida no meu livro de 40 anos atrás, Ser cristão: seguir a cruz não significa imitar literalmente a vida terrena de Jesus, não significa perseguir uma cópia fiel do modelo de vida, da sua vida e da sua morte. A cruz de Jesus é incomparável, única pelo seu abandono divino e humano; a sua morte é irrepetível.
Não é este o significado do seguimento, o ser deixados por Deus e pelos homens: sofrer as mesmas dores, receber as mesmas chagas; mas sim, na própria situação única, e apesar da incerteza do futuro, fazer o próprio caminho.
Dito teologicamente: seguimento entendido não no sentido da imitação, mas no sentido da correlação, da correspondência. O seguimento da cruz e a morte assistida não se excluem. A minha última passagem refere-se à realização prática de uma morte assistida humanamente.
Cuidados paliativos e apoio afetivo, às vezes insuficientes
A esse respeito, só dois pontos:
1) Há muito tempo, eu defendo a utilidade e a promoção digna da medicina paliativa. Sem dúvida, ajuda para combater as dores, os medos, a inquietação, a falta de ar e outros sintomas pesados. As terapias da dor tornam suportável o último estágio para muitos doentes terminais e levam a uma morte humana.
Mas quem faz as terapias da dor também admite que, em alguns casos, só é possível uma redução permanente da dor; torna-se o paciente inconsciente, removendo-lhe a "vigilância". Os desejos de morte devem ser levados a sério, mas nem todos podem ser enfrentados apenas com um plus de afeto. Os desejos de morrer também podem se dar a partir de uma perda permanente de percepção da própria dignidade, ou do sentido da vida, ou da falta de uma possibilidade objetiva de melhorias da própria situação de saúde.
2) O movimento "Hospiz", que não se propõe a intervir medicamente pela cura ou pelo prolongamento da vida, mas sim a dar um afeto pessoal com a palavra e o compromisso com uma morte humana, é um movimento que eu sempre apoiei moralmente e promovi publicamente.
Mas o direito de continuar vivendo não significa a obrigação de continuar vivendo.
O processo da morte não deve ser pervertida, levando a uma vida vegetal, marcada por sondas e por remédios. Menos mal que, ao menos na minha Suíça, a maior parte dos hospitais trabalha segundo o conceito de Palliative care; uma estratégia adotada pela política federal de saúde por causa da mudança da estrutura das idades, para a qual aumentam os casos de pessoas idosas gravemente doentes e necessitadas de ajuda.
A vontade dos pacientes é levada a sério; se alguém recusa água e alimento para morrer, isso é respeitado. A vontade de morrer com deliberado consentimento à renúncia de beber e de comer pode se tornar uma alternativa para a morte assistida.
O pensamento oficial da Igreja não me preocupa. Eu só posso lembrar que ainda hoje a doutrina romana condena a pílula, a maternidade assistida e os preservativos. Essa insensibilidade demonstrada pelo magistério em relação ao início da vida não deveria se repetir em relação ao fim da vida humana.
Hans Küng
Agradece-se pela gentil concessão a Franco Valenti, presidente da Fundação Piccini (Bréscia).
Notas:
1. Trata-se do prêmio Arthur Koestler que a Sociedade Alemã por uma Morte Humana (DGHS) concedeu em 2013 a Hans Küng pelo trabalho de uma vida inteira.
2. Trata-se da cerimônia de entrega do prêmio ocorrida em Bonn, na Alemanha, no dia 8 de novembro de 2013.
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Sinais dos tempos: a morte humana digna. Artigo de Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU