Por: Cesar Sanson | 22 Mai 2014
Eleitos com ajuda dos movimentos sociais, governos esquerdistas acabam indo na contramão das bandeiras antes encampadas na busca por se manter no poder.
Eleitos com a ajuda do trabalho de movimentos sociais, os governos de esquerda da América Latina hoje enfrentam um paradoxo: para se manter no poder tiveram de ampliar sua base eleitoral a grupos cujos interesses podem ir na contramão das bandeiras desses movimentos. Assim, se veem entre o antigo apoio e novos grupos propulsores.
A análise é do professor Maxwell A. Cameron, da University of British Columbia, no Canadá. Em passagem pelo Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, onde proferiu uma palestra sobre a importância da independência entre os poderes constitucionais no início do mês, o acadêmico apaixonado pela América Latina, as nuances que marcam os diferentes governos da região e conta por que não acredita no conceito do mexicano Jorge Castañeda que divide a região em populistas e socialdemocratas. “Dizer que existe uma esquerda do bem e outra do mal é o mesmo que dizer que existem países do bem e do mal na América Latina.”
A entrevista é publicda por CartaCapital, 22-05-2014.
Cameron diz não ver esquerdas semelhantes na região e analisa casos distintos que merecem destaque, como o do governo popular de Evo Morales voltado para a causa indígena, e o do Brasil, que teria muito a ensinar aos vizinhos. “Porque o Brasil não seguiu a cartilha do Consenso de Washington está melhor que a maior parte da região", afirma. "Não estou dizendo que o Brasil é perfeito, mas acredito que boa parte da região poderia se beneficiar e aprender com ele.”
Eis a entrevista:
A chegada de muitos governos de esquerda ao poder na América Latina era algo largamente esperado pelos movimentos sociais. No entanto, anos depois, muitos parecem desapontados e reclamam da falta de diálogo. Por que temos esse quadro?
Acredito que uma boa observação seria o fato de que a chegada de governantes de esquerda, como Hugo Chávez, Rafael Correa, Evo Morales, entre outros, foram fruto de processos eleitorais precedidos por muitos anos de luta dos movimentos sociais. Na Bolívia, a guerra do gás, por exemplo, ilustra isso. No México, os zapatistas, e na Venezuela os protestos do caracazo (contra políticas neoliberais). Esses movimentos sociais criaram as condições sob as quais foi possível se eleger esses governos de esquerda, que chegaram ao poder cercados de muita expectativa de mudança.
Há certa razão em se dizer que em muitos casos há um quê de desapontamento e em alguns setores esses governos têm a difícil tarefa de governar de acordo com determinados programas. Por exemplo, na Bolívia há uma tensão clara entre a promessa do governo em incluir a maioria indígena nas políticas que permitem as pessoas viver melhor e em harmonia com a natureza, implementando a autonomia indígena. Esse objetivo foi alcançado com a industrialização da produção e tem gerado subsídios esperados para reduzir a desigualdade.
Hoje a popularidade de Evo ultrapassa os 70% e ele conseguiu estabilizar a economia e o sistema político. Com quase toda certeza, ele conseguirá ser reeleito. Mas há pessoas nos movimentos sociais que sentem haver muito a ser implementado. Que há promessas do governo aguardadas no próximo mandato, que as reformas sejam mais aprofundadas. Mas é inteiramente possível que, em vez disso, o foco se centre na redução da pobreza ou mesmo no processo de industrialização interna. E pode-se dizer o mesmo sobre o Equador.
Os movimentos sociais criaram as condições para esses governos serem eleitos, mas para que esses governos continuem no poder eles precisam sustentar o apoio popular e para serem reeleitos terão de implementar políticas que serão populares com uma grande base eleitoral que vai além dos movimentos sociais. Isso, muitas vezes, empurra-os para uma outra direção que os faz levar adiante políticas muito diferentes daquelas encampadas por esses predecessores.
Representantes de movimentos sociais reclamam da falta de diálogo especialmente com o governo atual, da presidenta Dilma Rousseff. A primeira reunião dela com representantes de movimentos sociais se deu apenas depois dos protestos que tomaram as ruas do País em junho de 2013, quase três anos depois de ela ter chegado ao poder. Esse abismo também está presente em outros países da América Latina, em sua opinião?
As massas são instrumento dos movimentos sociais. E as massas não são um partido político convencional, são construídas sob os movimentos sociais. Em algum sentido, é o que viabilizou a chegada desses governos ao poder. Isso é um pouco diferente do PT, que emergiu do movimento trabalhista no Brasil e por um longo período de tempo se tornou um partido político estabelecido. E acredito que apenas na Bolívia, quando Evo sabia que seria reeleito, ele governava mantendo o olho na estabilidade econômica. O que significa, por exemplo, fazer concessões à região rica em hidrocarbonetos da Media Luna. O mesmo no Brasil. Desde o início o governo do PT tenta ser conciliatório com os interesses da comunidade empresarial e tenta expandir sua base eleitoral.
Então, por um lado, isso é totalmente esperado e sempre acontece com governos de esquerda que chegam ao poder apoiados por movimentos sociais. Os movimentos sociais se sentem traídos, e o governo acha que os movimentos sociais não estão sendo realistas. Na Bolívia, acredito, os movimentos sociais têm mais poder no governo do que em qualquer outro governo na região, até mesmo do que na Venezuela ou Equador. Por isso acredito que a Bolívia é o pais mais interessante a ser observado na América Latina hoje, onde há uma experiência de participação democrática acompanhada pelos movimentos sociais. Também acredito que o Brasil é interessante por outros motivos. O impressionante em relação ao Brasil é o grau com que o governo sob o PT tem conseguido incluir a sociedade civil no processo de elaboração de políticas, que serve de exemplo de participação popular.
Mas poderíamos dizer, portanto, que o foco do PT mudou desde que este chegou ao poder?
Claro que sim. Como cientista político, digo que isso é absolutamente esperado. Como isso poderia não acontecer?
Na Bolívia, isso aconteceu?
Sim e não. Por exemplo, como eu dizia, Evo tem mais de 70% de popularidade hoje. E por quê? Programas sociais se expandindo de forma massiva, aumento considerável da geração empregos públicos, um crescimento na economia. Mas os movimentos sociais estão descontentes com o que aconteceu em Tipnis [Território Indígena e Parque Nacional Isiboro-Secure, reserva ecológica de 1,2 milhão de hectares por onde passaria uma estrada construída pela brasileira OAS com financiamento do BNDES] e o aumento dos preços da gasolina conhecido como “gasolinazo”, um outro momento no qual o governo foi acusado de não dar ouvido para esses setores. Muitos que ajudaram a eleger Evo diziam: esse governo é neoliberal. O ponto que sustenta o governo hoje é o crescimento econômico, que vai além do esperado. Há uma lógica similar ao que ocorre no Brasil, mas a diferença é o grau de institucionalização entre o PT e o MAS, partido de Evo.
No Brasil, paradoxalmente, um programa social importante, o Bolsa Família, trouxe, além da diminuição da desigualdade, a desmobilização da luta do Movimento do Trabalhadores Sem-terra, o MST, uma vez que o benefício atinge muitos no campo. Como o senhor vê esse caso?
A primeira coisa que eu diria é que os mecanismos de transferência de renda são instrumentos de políticas totalmente consistentes com a orientação de mercado. Em outras palavras, são totalmente consistentes com o liberalismo. De fato, por exemplo, no México alguns foram implementados sob o PRI, com Carlos Salinas.
Então, não há nada particular com o Bolsa Família. Mas, por outro lado, o que é significativo, na minha opinião, é o fato de que os governos estão ouvindo que o povo quer programas que vão diretamente aos pobres e a fim de diminuir a desigualdade e a dependência. O programa Bolsa Família, claramente, é uma grande fonte de apoio para o PT. E deve-se ressaltar o fato de que ele não é implementado de uma forma clientelista. Programas similares são implementados em outros países e não desta maneira. Isso nos permite dizer que esse processo é parte da construção de uma cidadania. As pessoas começam a se sentir contempladas por um tipo de Estado de bem estar social calcada em bases universais, independentemente do critério de apoiar ou não o PT.
Eu não saberia comentar sobre a relação entre os sem-terra e o Bolsa Família, pois não sei muito sobre isso. Mas, em geral, não me surpreenderia que políticas desse tipo viessem a desmobilizar alguns tipos de movimentos. Porque, novamente, isso é um fenômeno típico, que aconteceu uma vez e vai acontecer novamente. Aconteceu nos anos 80 no Peru, quando o governo introduziu o Programa Vaso de Leche, em Lima. E as pessoas diziam: Infelizmente, todos os líderes de movimentos sociais que nos anos 70 organizaram greves gerais e grandes manifestações e protestos, agora trabalham em setores do governo.
Acredito que os movimentos sociais são parte do processo natural da mudança política. Então, deve haver apoio à mobilização. Se não houver um certo grau de mobilização, esses governos correm o risco de se tornar cada vez mais conservadores. Na Bolívia, por exemplo, muitas pessoas se recusaram a entrar no MAS dizendo: não queremos institucionalizar esse governo, porque a institucionalização enfraquecerá a vitalidade do nossos movimento nas ruas, e esse será o fim da força condutora. Acho que esse é um bom ponto. Trata-se de uma preocupação com a própria legitimidade. E a solução é se articular a necessidade de uma cidadania vigilante e ativa.
Como o senhor explica as duas variações da esquerda hoje na América Latina: a populista e a socialdemocrata, defendidas pelo mexicano Jorge Castañeda? De que maneira uma análise a partir dos movimentos sociais pode ajudar a explicar essa variação.
Discordo totalmente do argumento sobre dois tipos de esquerda na América Latina – a esquerda do bem e a esquerda do mal, uma socialdemocrata e outra populista. A populista, que é antidemocrática e não aprendeu com o passado e com a longa tradição do populismo. E a esquerda socialdemocrática, que ironicamente, em muitos casos, é a esquerda tradicional, majoritária e que tem abraçado novas políticas. A esquerda que vemos na América Latina, em cada caso, reflete as condições as quais propiciaram sua emergência. Dizer que existe uma esquerda do bem e outra do mal é o mesmo que dizer que existem países do bem e do mal na América Latina.
A esquerda na Bolívia é o que é porque você tem uma maioria indígena excluída. E, por quase 20 anos, movimentos sociais massivos contra o neoliberalismo e políticas voltadas para garantir recursos naturais como água e gás produziram o tipo de governo que se tem no país hoje. Em um contexto institucional, os partidos políticos colapsaram, as pessoas não confiam nos legisladores. O país entrou em um impasse catastrófico, em que nem o governo nem a oposição podiam prever. E o que em algum momento veremos adiante é a reconstrução do establishment político, a viabilização de um sistema político e de um programa econômico.
Não há maneira, por exemplo, de a Bolívia ter a esquerda que existe no Chile. Isso é absurdo. A esquerda chilena é claramente a mais liberal do continente. No Chile, você tem o governo, uma autoridade constitucional e um modelo econômico instaurado por Pinochet que não se pode sequer tocar. Tanto que só agora a presidente Michelle Bachelet fala sobre a necessidade de reforma constitucional. No que ele chama de lado democrático, não se pode, por exemplo, comparar o Frente Amplia (Uruguai) com o Concertación (Chile). O Frente Amplia é uma força muito mais progressiva do que o Concertación. Sobre esses pontos, Castañeda deveria pensar um pouco.
E na Venezuela, por exemplo, um país exportador de petróleo, a situação já é muito diferente. Ou mesmo quando se fala do PT, um partido social democrata. A socialdemocracia tem raízes na América Latina, já o populismo é algo particular da política latino-americana. As condições existentes para mudanças socioeconômicas e países irão acontecer de maneira mais descontínuas e mais radicais do que se verá em lugares como a Europa, onde se tem uma classe média grande e instituições públicas funcionais responsáveis pela criação de um sistema de bem estar social.
Falando em Europa e classe média, no Brasil, uma das críticas em relação aos programas de transferência de renda é a nova classe média que se forma no País. Muitos criticam esse tipo de emancipação ao dizer que essa nova classe média não tem nada além de maior poder de compra. Como o senhor vê essa situação?
O conceito de classe média é muito instável, quando não ilusório. Em todo lugar, especialmente na América Latina, ela é muito pequena. E uma das razões que leva à desigualdade no continente é a extrema riqueza dos muito ricos. Digamos que os ricos sejam 1%, então a classe média será o quê? As pessoas com dinheiro, mas que sejam profissionais assalariados, como médicos, professores, militares, por exemplo, formando um pequeno grupo. Já a maior parte da população cairia na categoria de ser assalariados de outros setores produtivos.
E a real mudança que falam a respeito do Bolsa Família, na minha visão, diz respeito a esses grupos, os chamados setores emergentes. Pessoas que dez anos atrás não tinham nada e hoje têm um pouco. E eles estão usando esse novo poder de consumo. Acredito que a orientação política e as aspirações sociais da cultura desses setores emergentes são um tema fascinante.
Parte da importância de se ter uma grande classe média é a de pagar mais impostos. Ter mais pessoas pagando impostos é necessário para o Estado de bem estar social que se almeja. E em grandes economias da América Latina, comparativamente, uma parcela pequena paga impostos. Você tem melhores alvos para os programas sociais... Mas para construir um Estado de bem estar social precisa de pessoas pagando impostos e também impulsionar o crescimento da classe média.
Uma das grandes decepções da esquerda que sempre sonhou em ver o PT no poder é o governo que hoje se faz através do gerenciamento de grandes obras de infraestrutura e projetos de médio prazo, quando gostariam de algo mais duradouro. Na opinião do senhor o que temos no Brasil hoje é um governo de esquerda clássico ou o crescimento de uma espécie de capitalismo de Estado, como definiu a revista britânica ‘Economist’ há cerca de dois anos?
Eu nunca concordo com a Economist. Eu sou um grande fã do Brasil e também um grande propagandeador seu. Eu, na verdade, acredito que o restante da América Latina deveria prestar mais atenção ao que está acontecendo no País. Não acredito que nenhum país seja modelo para outro, mas acredito que muito pode ser aprendido com o Brasil. E acredito que, infelizmente, tem havido pouca troca de ideias e pouco aprendizado com o modelo brasileiro.
Se compararmos o Brasil com o restante da América Latina, o número de feitos é absolutamente extraordinário. Talvez o Chile e o Brasil sejam as duas economias mais sólidas da região. Além disso, é um país que produz a sua própria tecnologia. Poucos países têm uma indústria aeroespacial grande, tecnologia avançada. E, importante dizer, é um país que não seguiu o modelo escravizador e condicionante. Não cometeu, portanto, o erro do México ao assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos, como a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). Em vez disso, o Brasil lançou mão de uma estratégia muito inteligente, a de fundar o Mercosul juntamente com outros países da região. Ao insular o Brasil desses tipos de pressão, evitou a privatização em massa, deixando com que o setor privado guiasse a economia.
Porque o Brasil não seguiu a cartilha do Consenso de Washington está melhor que a maior parte da região. Acho que o Brasil merece os parabéns, e não apenas pelo PT, mas por uma série de reformas feitas anteriormente, até mesmo na época do regime militar. Não falo apenas da economia, mas do fato de o Brasil também estar promovendo o aumento da participação popular. Não estou dizendo que o Brasil é perfeito, mas acredito que boa parte da região poderia se beneficiar e aprender com ele.
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O paradoxo da esquerda na América Latina - Instituto Humanitas Unisinos - IHU