06 Mai 2014
O teólogo suíço Hans Küng escreveu mais de 70 livros que influenciam não só a atual busca por reforma na Igreja Católica como também teólogos e praticantes que se envolvem na teologia ecumênica e no diálogo inter-religioso.
O destacado estudioso Leonard Swidler e o experiente jornalista John Wilkins fazem uma apreciação do amplo escopo da obra do autor. Não só Swidler e Wilkins são especialistas no pensamento de Küng, mas igualmente leram o terceiro e último volume das memórias do autor, que ainda está para ser traduzido do original alemão. As duas retrospectivas oferecem reflexões sobre o seu último livro, intitulado “Can We Save the Catholic Church? / We Can Save the Catholic Church!” [“Podemos salvar a Igreja Católica? Podemos salvar a Igreja Católica!], publicado pela William Collins.
O presente artigo é o segundo que publicamos sobre o o último livro de Hans Küng, intitulado Can We Save the Catholic Church? / We Can Save the Catholic Church!” [“Podemos salvar a Igreja Católica? Podemos salvar a Igreja Católica!]. Hans Küng publicou no final do ano passado o terceiro volume das suas memórias.
O primeiro artigo, de Leonard Swidler pode ser acessado aqui.
John Wilkins foi editor da revista The Tablet de 1982 até 2003. O artigo é publicado por National Catholic Reporter, 02-05-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
A casa do teólogo Hans Küng no topo de uma colina, no interior da cidade universitária alemã de Tübingen, onde ele exerceu sua carreira acadêmica, é repleta de livros – incluindo exemplares de seu próprios livros, somando acima de 70 obras, das quais 50 foram traduzidas para o inglês. Em muitos casos estes se tornaram best-sellers. Pondo em prática uma erudição impressionante, ainda que com um estilo simples, direto e incisivo – ele escreve incrivelmente bem –, aventurou-se sem medo em lugares aonde outros teólogos não chegaram.
Ao perceber sua qualidade, o Papa Paulo VI tentou recrutá-lo. Mas Hans Küng é suíço e encarna, em grande escala, a independência de seu país. Ele não aceitou. Não seria um “teólogo da corte”, como certa vez afirmou.
Ele se tornou famoso muito cedo – demasiado cedo, segundo seus críticos. Ainda estava na casa dos 20 anos quando se atreveu a entrar no diálogo ecumênico com o grande teólogo protestante de época, Karl Barth (também suíço). Küng sustentava que se as polêmicas fossem deixadas de lado, e se as fontes católicas e protestantes fossem avaliadas de forma correta, a doutrina central da Reforma Protestante da justificação do pecador pela fé não precisaria mais dividir protestantes e católicos. Barth reconheceu que seu pensamento estava fielmente presente no manuscrito que Küng tinha lhe enviado. Se Küng se mantivesse igualmente fiel do lado católico romano do debate, Barth disse que ele bem precisaria ir ao lugar em que aconteceu o concílio da Contrarreforma – o Concílio de Trento – e fazer um pedido de arrependimento aos bispos que aí se reuniram.
O Vaticano estava pouco impressionado. Quando Küng publicou o texto final em seu livro “Justification: The Doctrine of Karl Barth and a Catholic Reflection” [Justificação: A doutrina de Karl Barth e uma reflexão católica] (1957; as datas das publicações se referem aos originais em alemão), a congregação doutrinal abriu um processo a respeito dele.
O próprio Hans Küng comparou o progresso de sua obra com as ondas que ocorrem quando se joga uma pedra na água: a pedra nesse caso sendo a decisão a favor do método científico de análise histórico-crítica da Bíblia. O seu empenho foi apresentar à sociedade moderna um Jesus que começava “a partir de baixo” – um homem nascido de uma mulher na Palestina.
O Concílio Vaticano II (1962-1965) manteve-se como a pedra de toque de seu pensamento. João XXIII é seu modelo de papa – um verdadeiro servo dos servos de Deus. Os livros que Küng escreveu à época – “The Council, Reform, and Reunion” [O Concílio: Reforma e Reunião] (1960) e “Structures of the Church” [As estruturas da Igreja] (1962) – revelaram-se proféticos.
Na década de 1970, a onda que se espalhou a partir da pedra lançada ampliou o escopo de Küng das estruturas eclesiais à crença em si: “Como a fé cristã deve ser oferecida aos homens e mulheres na atual sociedade secularizada? Três livros inovadores se seguiram: “On Being a Christian” [Ser cristão] (1974), “Does God Exist?” [Deus existe?] (1978) e “Eternal Life?” [Vida eterna] (1982).
No entanto, quando o último destes volumes apareceu, Küng não era mais um teólogo católico autorizado. Em 1970 ele tinha lançado o desafio em seu livro “Infallible? An Inquiry” [Infalível? Uma investigação]. A infabilidade papal, afirmou o autor, foi uma doutrina que tornou as coisas difíceis para a Igreja Católica admitir e corrigir seus erros. Em lugar disso, propôs que a instituição afirmasse a “indefectibilidade” – que, apesar de todos os erros, ela sempre iria estar amparada pelo Espírito na verdade.
Mas esta ideia devia desafiar uma doutrina definida. Küng nunca cessou de acreditar que ele estava certo. Ele voltou ao ofício em 1978, quando escreveu uma introdução para o livro de um colega mais jovem intitulado “How the Pope Became Infallible” [Como o Papa se tornou infalível]. Ele agravou a situação em 1979, quando apresentou à mídia internacional um balanço crítico contundente avaliando o primeiro ano do papado de João Paulo II. É difícil julgar qual dos textos foi o mais provocador.
O segundo volume de suas memórias (Disputed Truth [Verdade disputada], 2007) contém um relato fascinante da crise que se seguiu. Os bispos alemães questionavam não só a sua rejeição da infalibilidade, mas também sua doutrina de Cristo estabelecida na obra “On Being a Christian”. Eles não acreditavam que seu “Cristo a partir de baixo” alguma vez atingiria o “Cristo de cima”, que igualmente faz parte da fé cristã. Criticavam seu relato da Ressurreição e percebiam que o autor ignorava a tradição da sepultura vazia. Quando a sua licença para lecionar como teólogo católico foi cassada em 1979, as memórias não deixam dúvidas de que ele quase desistiu de tudo.
A Universidade de Tübingen o resgatou retirando o centro ecumênico da faculdade católica e estabelecendo-o fora de seu domínio, tendo Küng como professor independente de Teologia Ecumênica. Hoje, as ondas da pedra lançada se estenderam para abraçar as grandes religiões mundiais que, há muito, fascinavam Küng em suas variadas viagens. Em 1985, sua obra “Christianity and the World Religions” [O cristianismo e as religiões do mundo] considerou o islamismo, o hinduísmo e o budismo; em 1989 veio “Christianity and Chinese Religions” [O cristianismo e as religiões chinesas], escrito ao lado de Julia Ching, de Xangai, professora da Universidade de Toronto. Em 1991, publicou “Judaism: The Religious Situation of our Time” [Judaísmo: A situação religiosa de nosso tempo], cobrindo também o cenário contemporâneo no Oriente Médio; e em 2004, um outro grande livro: “Islam: Past, Present and Future” [O Islã: Passado, presente e futuro].
Olhando para o terceiro milênio, Küng cunhou um aforisma célebre: “Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões. Não há paz entre as religiões sem diálogo entre as religiões”.
A onda final advinda da pedra lançada ainda estava por vir. Hoje, os países do mundo, numa época de fundações abaladas, constituem o seu foco. Ele esteve preocupado que “um novo modelo de capitalismo” teria se instalado, carecendo de toda e qualquer amarra ética e motivado inteiramente pelo lucro. Onde o autor poderia encontrar um corretivo, uma ética global que pudesse ser oferecida a todos? Prendeu-se à regra de ouro: Não faças ao outro aquilo que não queres que façam a ti. Em 1995, lançou o Fundação Ética Global para divulgar sua convicção de que somente uma tal ética poderia estar à altura das necessidades de um mundo onde a economia, a tecnologia e as comunicações estivessem todas numa escala global. Ele sustentou sua tese nos livros “Global Responsibility” [Responsabilidade global] (1990) e “A Global Ethic for Global Politics and Economics” [Uma ética global para a política e economia globais] (1997).
Pouco antes de o Papa Bento XVI renunciar em 2011, Küng publicou um outro petardo: “Can the Catholic Church Be Saved?” [Poderemos salvar a Igreja Católica?]. Aqui ele se colocou no papel de um médico a diagnosticar um paciente doente, prescrevendo-lhe remédios. A atual crise, diz ele, mostra que o seu autor estava certo o tempo todo quando se opôs à volta do sistema centralizado romano. Ele expressou alegria com o estilo um tanto diferente do Papa Francisco, se sentindo na condição de acrescentar um segundo título, afirmativo, à tradução inglesa: “We Can Save the Catholic Church!” [Podemos salvar a Igreja!]
O último volume de suas memórias apareceu em outubro de 2013 em alemão (ainda não está disponível em inglês), e causou choque. Nele, Küng revelou estar sofrendo de um incipiente mal de Parkinson e de uma degeneração macular, que leva à cegueira. Se ele não puder mais escrever a mão, perguntou-se no livro, e se não puder mais ler, o que seria dele? Considerou a possibilidade de apressar sua morte. “Onde está escrito que, na última fase de suas vidas, os seres humanos perdem a responsabilidade por elas? Não se lê em lugar algum na Bíblia que os seres humanos precisam perseverar até o final de suas vidas. (...) De forma alguma o direito à vida significa uma obrigação a continuar vivendo”.
Em seguida levou a ideia mais adiante: “Até onde sei, a situação legal insatisfatória na Alemanha sob a qual muitas pessoas sofrem me força (e como cidadão suíço com dupla nacionalidade eu tenho a possibilidade de) juntar-se a uma organização de suicídio assistido na Suíça”.
Küng sempre teve muito presente a morte de seu irmão mais novo, ocasionada por um tumor cerebral, fato ocorrido logo depois que fora ordenado. Em 1995, publicou um texto sobre eutanásia voluntária, intitulado “A Dignified Dying” [Um morte digna], com seu colega Walter Jens e com contribuições de um doutor em medicina e de um doutor em direito.
Küng está confiante que as futuras gerações continuarão a ser desafiadas e estimuladas pelas suas realizações extraordinárias. Ele sempre afirmou que, embora as autoridades possam ter o poder, a opinião da maioria está com ele. A história decidirá, disse ele, e os “livros sobrevivem a muitos papas”.
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As ondas que se espalham a partir da obra de Hans Küng - Instituto Humanitas Unisinos - IHU