08 Abril 2014
João Moreira Salles tem em mãos o último trabalho de Eduardo Coutinho. Palavra é o documentário no qual o diretor que morreu em fevereiro tem como personagens jovens que estão concluindo o Ensino Médio em escolas públicas do Rio, abordando seus projetos para o futuro e seus dilemas.
A entrevista é de Marcelo Perrone, publicada pelo jornal Zero Hora, 07-04-2014.
– O projeto será concluído por Jordana Berg (montadora parceira de Coutinho desde Santo Forte, de 1999) e por mim. Tudo está filmado. Coutinho faleceu um pouco antes de entrar em edição – diz Salles.
Amigo de Coutinho e produtor-executivo dos filmes do documentarista a partir de Babilônia 2000 (2000), Salles aprimorou na convivência com com o mestre sua paixão pelo documentário – é autor de, entre outros longas, Memórias de uma Guerra Particular (1999), Entreatos (2002) e Santiago (2007).
Ainda abalado pelo trágica morte de Coutinho, Salles concordou em conversar sobre Cabra Marcado para Morrer.
– A influência que ele exerceu sobre mim foi tão grande que ainda não tenho distância para falar. Talvez no futuro eu escreva algo longo sobre meu convívio com ele.
Eis a entrevista.
Que lembrança você tem da primeira vez a que assistiu a Cabra Marcado para Morrer?
Não me lembro da primeira vez. Sei que não foi na época do lançamento comercial do filme, foi mais tarde. Mas não tão mais tarde assim, quando já pudesse, por força de meu trabalho, compreender a complexidade do filme. Devo ter assistido em VHS, já perto dos 30 anos. O que me ficou daquele primeiro contato foi a memória daquela família esfacelada pela passagem dos anos. O fato de os anos em questão serem os do regime militar só tornava a dor mais aguda e trágica, mas presumi – não com a clareza de hoje, na época talvez fosse apenas uma intuição – que o filme registrava não apenas um drama político, logo circunscrito a um tempo e a um lugar, mas também a fatalidade, esta universal, da ação do tempo sobre as pessoas e as coisas.
E como foi sua relação posterior com o filme? Que dimensões e significados, estéticos e políticos, Cabra... assumiu para você?
Aprendi o óbvio: que não existe separação entre estes dois campos. Essa filmagem com a câmera na mão, em que tudo é capaz de invadir o quadro – diretor, boom, segunda câmera, equipe –; em que imagem e som são os possíveis nas circunstâncias dadas; em que os erros não são escamoteados; em que todo tipo de material serve à edição, e a bricolagem é a regra do jogo; pois bem, aprendi que tal precariedade não é um estilo, antes uma necessidade provocada pelas condições materiais de produção, e que tudo isso acaba por refletir, com precisão, a própria fragilidade e fragmentação daquelas vidas frente à violência da história. E é importante incluir nisso a própria vida do diretor. Aprendi, claro, que o pessoal é político, e que o grande tema pode ser tratado de viés, por meio da história miúda – e nela incluo, uma vez mais, o próprio Coutinho, personagem marginal do golpe, sem cuja história o filme não existiria.
Com o distanciamento de 30 anos, qual foi para você a consequência de Cabra... no cinema?
Diretamente, quase nenhuma. É o próprio Coutinho que diz: “Cabra... foi como um sol frio”. O caráter irredutivelmente singular do filme talvez tenha contribuído para isso – aquela não é uma experiência que pudesse ser repetida. É mais difícil aferir as influências indiretas, mas suponho que, ao se firmar como um dos mais bonitos filmes de nosso cinema, Cabra... mostrou, sem querer mostrar nada, que o documentário não precisa cultivar um complexo de inferioridade em relação à ficção. Presumo que isso não fosse tão óbvio no Brasil de 1984.
Você destacaria um momento do filme que lhe toca de forma particular? Por que razão?
João Virgínio contando da tortura que sofreu. Inesquecível. A força da palavra falada que Coutinho viria a explorar na obra futura está ali.
A guinada que Coutinho deu em direção às pequenas histórias das pessoas comuns, às tais miudezas da vida, consolidada a partir de Santo Forte (1998), ajudou a preservar Cabra... como exemplar insuperável, por ele próprio, de sua investida sobre o “grande tema”?
Sim. Nesse sentido, Cabra... é único. Nos últimos anos, a utopia dele era dirigir um filme sobre nada. A depuração de seu método apontava nessa direção e talvez ele chegasse lá.
Cabra... consagrou-se como filme-síntese do período que o Brasil viveu entre o golpe de 1964 e a redemocratização. Se o recorte fosse, por exemplo, entre 1966 e 1986, Coutinho faria o mesmo filme?
Cabra... é fruto do fantasma de 1964, e também da realidade do tempo. A marca de 1964 é indelével: o primeiro filme abortado no dia do golpe, o segundo retomado quando a palavra “anistia” passa a circular no país. Mas os 15 anos que separam um momento do outro também produzem efeito. Conversávamos bastante sobre isto. Com ou sem golpe, até que ponto a família de Elizabeth Teixeira, como tantas outras famílias pobres deste país, não sofreria as misérias impostas pelo quadro social brasileiro?
Você já disse que o maior documentário brasileiro é de Coutinho, mas não é Cabra..., e sim Teodorico, o Imperador do Sertão, que ele realizou em 1978 para o Globo Repórter. Essa opinião persiste?
É evidente que o escopo, a complexidade e a ambição de Cabra... são muito maiores, razão suficiente para que seja quase uma impiedade comparar os dois filmes. A frase talvez tenha sido dita para chamar atenção para uma obra pouco vista do Coutinho. Mas há razões mais do que estratégicas para elogiar Teodorico. Devo dizer que, como espectador, o documentário me causou mais impacto do que Cabra..., ao menos da primeira vez que o vi. A riqueza do mundo oral, a autorrepresentação do personagem, a mistura – palavra que Coutinho adorava – entre ficção e realidade, a presença de uma câmera e de um diretor como catalisadores da ação, o modo como um mundo social se desvela sem a necessidade de uma voz prescritiva ou moralizante. De Cabra..., a O Fim e o Princípio (2006), a Jogo de Cena (2007), todo o Coutinho está em germe ali. E com dois complicadores espantosos: o filme é anterior a Cabra... e foi produzido dentro da Rede Globo, em pleno regime militar.
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“Cabra... é fruto do fantasma de 1964” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU