10 Abril 2014
"A licença criativa do diretor Aronofsky e de seu corroteirista Ari Handel fizeram possível para mim ou, ao menos, consiste aquilo que poderia ter acontecido numa época sobre a qual pouco sabemos. Não encontrei nada de inconsistente com os estudos bíblicos católicos. Adoraria ler uma crítica do filme feita por algum estudioso da Bíblia", escreve Irmã Rose Pacatte, ao anlisar o filme Noé, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 28-03-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis a análise.
Não há dúvida de que o filme épico de Darren Aronofsky “Noé” se baseia em imagens pós-apocalípticas e faz uso da ficção científica e do gênero popular vampiro para contar a história de Noé, o neto de Matusalém.
E Aronofsky fez bem sua lição de casa. A narrativa como um todo tem a sensação de uma cultura oral de contar histórias, com o uso repetitivo da estrutura “quiástica” ou “anelar” para que os ouvintes não se esqueçam. O filme começa com a história da criação em imagens; em seguida Noé conta à sua família sobre o Criador e sua história da criação de seis dias, que inclui a primeira tentação, a queda e o papel do diabo em levar o paraíso ao fim. O pecado se faz presente e muito bem no filme “Noé”, de Aronofsky.
Quando criança, Noé (Dakota Goyo) testemunha a morte de seu pai, Lameque (Marton Csokas), cometida por um bando de saqueadores que buscavam alimento numa paisagem árida. A terra havia sido consumida. Já como homem, Noé (Russell Crowe), sua esposa, Noema (Jennifer Connelly), e seus dois filhos Sem (Douglas Booth) e Cam (Logan Lerman) – o jovem Jafé (Leo McHugh Carroll) vem depois – vivem isolados a fim de sobreviverem à decadência e violência do comportamento humano.
Em sonho, Noé acredita que o Criador esteja lhe dizendo que uma inundação (o dilúvio) está por vir e que irá limpar a terra trazendo vida nova. Ele faz uma viagem para ver seu avô, Matusalém (Anthony Hopkins) e verificar o mando do Criador. Noé e Sem cruzam-se com uma jovem, Ila (Emma Watson), que fora abandonada à morte pelo seu povo. Eles a trazem para sua casa e curam suas feridas. Parece que ela jamais irá ser capaz de ter filhos.
No deserto, árvores começam a crescer fornecendo madeira necessária. Os Vigilantes temíveis (criaturas míticas, metade homem e metade angélica, chamados Nefelins, no Gênesis) decidem ajudar Noé e sua família a construir a arca, o navio onde as criaturas inocentes irão aguardar até que a água baixe.
Quando uma horda de pessoas, lideradas pelo rei Tubalcaim (Ray Winstone), chega exigindo um lugar na arca, Noé e Noema travam um diálogo sobre o que eles fariam para salvar sua família; se fosse necessário, poderiam até matar. Mas Noé é um homem de paz e a ideia de matar toda e qualquer criatura é repugnante a ele. Porém admite que se preciso for, ele matará para defender seus entes queridos.
Na medida em que se aproxima da conclusão da arca, os animais começam a chegar. Primeiro os pássaros, em seguida as cobras. Noema queima um sedativo de ervas que faz com que os animais adormeçam durante a viagem.
Depois a chuva começa.
“Noé” não é aquele típico filme bíblico de manto e sandálias que nós estamos acostumados a assistir. Aronofsky foi além da história de Noé (Gênesis, 5:29-9:29) e preencheu onde as palavras da Escritura não dizem o suficiente. Ele tomou a ideia de que o Criador amaldiçoara a terra e fez disso uma paisagem visual bem como ideológica.
Existem três pecados (embora eu possa ver outros, caso assista mais vezes ao filme) que Noé descreve repetidas vezes como sendo as três razões para o dilúvio: a violência (matança), o orgulho e a destruição da terra que Deus nos deu. O pecado original é frontal e central bem como o impulso inicial para a disrupção da vontade do Criador para com o povo e o mundo. De forma mais clara, estes pecados são expressos através de Tubalcaim, que fala repetidas vezes ao infeliz Cam – que quer uma mulher como Sem tem em Ila – que o caminho para se ser um homem é matar.
A performance de Crowe foi boa, embora eu ache que a atuação foi ofuscada pela natureza épica da produção. Não olhei para o relógio durante a performance de 2 horas e 20 minutos. Se você se interessa por uma história bíblica transformada em filme e em filmagem artística, certamente não ficará frustrado ou aborrecido.
A licença criativa do diretor Aronofsky e de seu corroteirista Ari Handel fizeram possível para mim ou, ao menos, consiste aquilo que poderia ter acontecido numa época sobre a qual pouco sabemos. Não encontrei nada de inconsistente com os estudos bíblicos católicos. Adoraria ler uma crítica do filme feita por algum estudioso da Bíblia. O filme arrasa com aquela historinha de ninar sobre Noé e mostra um período escuro no mundo em que a esperança e a vida, e o cuidado do Criador por sua criação, venceram em última análise.
Não tenho certeza de como eu teria dado forma aos Vigilantes míticos, mas para mim os vigilantes do autor se parecem e se movem como os Transformers pré-históricos. Não creio que as pessoas naquele tempo (cerca de 2500 anos antes de Cristo segundo um calendário bíblico) usavam jeans ou calças, mas talvez elas usavam se se aceitar as vestimentas sofisticadas e mesmo os calçados dos restos mumificados de um caçador (Ötzi) descoberto na Europa em 1991 que remonta a 3300 anos antes de Cristo. As pessoas no filme usam ferro para construir cidades, ao menos é o que parece. A Era do Ferro foi de 1200 a 500 antes de Cristo, de forma que a história do filme se mostra anterior ao “calendário” da Bíblia em 1000 anos. Mas parece equivocado tentar alinhar tudo no filme de Aronofsky com o relato bíblico de forma literal. Era possível ao povo da época de Matusalém, e posterior, usar ferro? Talvez.
A Irmã Jennifer, que foi comigo à sessão de imprensa assistir ao filme, observou que depois que Noé de fato mata para defender sua família, ele não mais ouve a voz do Criador. Na verdade, os cineastas criam um dilema interior em Noé, não muito diferente daquele de Jefté, o juiz de Israel (Juízes, 11), que interpretou a vontade de Deus de uma forma completamente equivocada. Mas lembremos que estes longínquos dias e as histórias divinamente inspiradas sobre os eventos e as pessoas que chegaram até nós são todos verdadeiros, e alguns deles podem de fato ter acontecido. A diferença dinâmica entre “verdade” e “fato” no filme é difícil, e isso pode perturbar alguns espectadores.
A minha esperança é que os espectadores intérpretes da adaptação de Aronofsky encontrem temas da Doutrina Social Católica, tais como bem comum, comunidade, família, respeito pela vida, cuidado com o planeta e justiça.
Assistir a “Noé” me fez querer, ainda mais, compreender a Torá, os cinco livros da Bíblia tão sagrada para os judeus. Se os judeus ortodoxos forem às salas de cinema, estarei me perguntando o que eles pensarão.
O diretor e corroteirista Darren Aronofsky quis enfatizar alguns aspectos neste filme, em especial o de que o Criador nos fez e fez este mundo, que o pecado existe e influencia e ainda nos influencia, que a não violência e o cuidado pelo planeta – bem como o vegetarianismo – irá nos salvar. Estas são ideias boas e cristãs de se tirar após assistir ao filme “Noé”, embora eu nunca poderia ser uma vegetariana.
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“Noé” não é aquele típico filme bíblico de manto e sandálias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU