24 Março 2014
Não basta dizer "quem sou eu para julgar" para definir os critérios com base nos quais a Igreja não só pode julgar ou não julgar, mas ela deve definir a si mesma, o significado das Escrituras, os sacramentos, a liturgia, o sentido da sucessão apostólica, a função do papado em relação à colegialidade. O Evangelho não basta? Não basta. Jesus não escreveu nada, os evangelistas são quatro e em desacordo, e as interpretações vetaram o "livre exame" e a liberdade pesquisa teológica.
A opinião é de Giancarla Codrignani, escritora e ex-deputada italiana pela Esquerda Independente, em artigo publicado no sítio da Comunidades Eclesiais de Base da Itália, 17-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
O artigo (e as entrevistas) do cardeal Kasper depois do encontro do Papa Francisco com o diretor do Corriere della Sera pede que se expressem dúvidas e expectativas sobre a mudança radical do papado como instituição, depois de um ano de novo pontificado.
O Papa Francisco parece ser o primeiro a saber que um certo modo de entender a instituição pontifical acabou.
Talvez ele pense em um retorno ao significado original, hoje só etimológico, do "fazedor de pontes". No entanto, não seria implícito ao seu constante gesto de se nomear como "bispo de Roma" e ao abandono do fatídico "nós", pronome de uso para a autoridade suprema, na exortação "apostólica" Evangelii gaudium. Até porque, na ausência de normas formais sobre a instituição da renúncia, os papas são dois.
O padre José Maria Castillo considera que (cf. seu blog, dia 24 de fevereiro) é fundamental para o papa que "a Igreja pense como Jesus pensou. Fale como Jesus falou. E viva como Jesus viveu", mas, ao mesmo tempo, preocupa-o saber que, "com o passar do tempo, na Igreja, foi-se elaborando e afirmando uma série de ideias, de normas, ritos e tradições aos quais se concede mais importância do que ao Evangelho".
Alguns problemas, de fato, se colocam. E não só porque foi lançado pelas edições Piemme o livro de Giuliano Ferrara Questo papa piace troppo [Este papa agrada demais]. As pessoas se acostumaram a não perceber o valor das diversas interpretações do catolicismo que foram se afirmando historicamente. É a partir dessa inadvertência que se originaram a incompreensão seguida dos entusiasmos e da falta de defesa do Vaticano II.
De fato, o mundo católico ainda mantém uma unidade formalmente forte, mas compreende tendências não só exegéticas, mas também devidas a culturas diferentes em outras partes do mundo. Hoje, não seria possível disciplinar as diferenças com excomunhões e imposições de ortodoxias, ainda mais que o respeito pela autonomia das opiniões torna a censura quase inaplicável também em um mundo hierárquico como o eclesiástico, avesso ao pensamento único. No entanto, uma tácita anarquia substancial é impensável como alternativa à antiga disciplina.
De fato, pode-se dizer que, em princípio, por enquanto, a unidade da Igreja vive da renda do Concílio de Trento. A adequação defensiva do Papa Bento XVI aos "princípios inegociáveis" é o seu resultado totalmente abstrato e alheio à vida de um "povo de Deus", que, embora hoje seja social e culturalmente qualificado, sabe muito pouco das razões da sua fé. Está muito distante a Idade Média, quando a Igreja era um lugar de participação efetiva, e há muitas gerações os "fiéis" se contentam com o que o convento passa (que, desde o início da era moderna, é realmente pouco).
Dizer que a Igreja perdeu pouco a pouco os intelectuais por serem iluministas, os trabalhadores por serem socialistas, e as mulheres por serem feministas é buscar álibis autoabsolutórios em justificação da própria incapacidade de controlar os desafios da história e de ir além. Hoje, o Papa Francisco tenta superar os 200 anos de atraso dos quais Carlo Maria Martini falava e começa tornando novamente autêntico o Evangelho, seguido pelo entusiasmo do povo.
Pode ser o suficiente, se crentes e não crentes ainda continuam sendo amantes de Jesus, mas não bons testemunhos da sua verdade, que conhecem pouco até por serem mentalmente sensíveis a costumes tradicionais de devoções, preceitos, peregrinações, datas festivas (e menos ao valor da missa)? Quem frequenta a paróquia não se pergunta se a sua fé recebe sentido nela e por que os filhos, quando não são mais crianças, dela se afastam.
É difícil também para os crentes imersos na modernidade se interrogarem sobre a coerência da sua vida religiosa: há gerações, eles aceitam a dupla moral, e a Igreja, que não ignora como muitos poucos observam os preceitos chamados de morais, por causa daquela que é a sua responsabilidade institucional, se confia, mais do que às famílias ou às paróquias, à hora concordatária de aula de religião católica nas escolas públicas.
Grande parte das escolhas de costume pode conflitar com uma Igreja que pretende se tornar novamente pobre, mesmo com a cruz de ferro e os calçados comuns do papa. Seguramente, é prioritário reformar o IOR, mas também habituar à coerência as igrejas orantes sem mais ouros, incensos, paramentos preciosos. Mas a exterioridade é simbólica e, se certamente não incomoda a hierarquia, fascina aqueles que beijam a mão do padre.
Não basta, portanto, que Francisco seja simpático. Existem – para os cristãos não "adultos" – janelas de vulnerabilidade com com as quais uma dissidência já nem mais tão velada pode se beneficiar. Encontramos na internet os sites dissidentes dos vetero-tradicionalistas, dos grupos fundamentalistas, dos conservadores sentados nos primeiros bancos paroquiais e fiéis à direita.
Francisco é definido como "marxista": com um discurso que soa irônico, o papa chamou para coordenar o Conselho de Economia o cardeal de Munique (aquele que chamou os gays de "homens fracassados"), que se chama Reinhard Marx, e com um sobrenome assim as acusações não devem estar longe da verdade. Mas se a ironia é simpática, não anula as preocupações. As Igrejas asiáticas e africanas não chegaram ao cristianismo sem pagar o tributo à sua história e às tradições religiosas que precederam a nova fé.
O princípio de autoridade, os conflitos étnicos (lembremos os massacres provocados por cristãos tutsi e hutu na Ruanda), as tradições tribais, o princípio patriarcal e viril envolvem dificuldades inéditas. Não é difícil, mesmo para a concorrência das seitas, pescar novamente o fantasma do anticristo e rachar a solidez do nome cristão.
Desde que acabou o poder temporal, todas as vezes em que a história se moveu, a Igreja criou obstáculos, sobretudo – no que se refere aos fiéis – em seu interior, censurando as posições mais avançadas. Considerando retrospectivamente, o modelo foi o do processo de Galileu, em que Urbano VIII sabia que a terra nunca tinha estado no centro do olhar de Deus, mas temia que as pessoas perdessem a fé. Ainda retrospectivamente, as acusações ao modernismo, ou ao Don Milani da não violência, ou à teologia da libertação foram operações de conveniência ao poder, absolutamente desprovidas de conteúdo teológico e de coerência pastoral.
Hoje, ninguém, no estado atual, poderia dizer qual é a teologia oficial da Igreja. O "novo" Catecismo de 1992 está em vigor: o Papa Bergoglio o aceita integralmente como o Papa Ratzinger? Eu acredito que não basta fazer imagens, mesmo que tudo o que daí emana me pareça felizmente novo. Mesmo que nunca tenha sido um teólogo, Francisco não é um homem simples (e não só porque é jesuíta) e, sem dúvida, tem uma estratégia própria.
Não por acaso, foi publicada (no jornal Il Foglio, não sabemos se com um furo autorizado) uma longa dissertação [do cardeal Walter Kasper] que repropõe, em relação ao Sínodo sobre a Família, os princípios da tradição: É o "direito natural" que "oferece um critério para avaliar a poligamia, os casamentos forçados, a violência do casamento em família, o machismo, a discriminação das mulheres, a prostituição, as condições econômicas modernas hostis à família".
"O amor entre um homem e uma mulher e a transmissão da vida são inseparáveis", mesmo que seja possível "decidir responsavelmente sobre o número e os tempos do nascimento dos seus filhos". A indissolubilidade "continua subsistindo mesmo onde, humanamente, o matrimônio se despedaça. (…) A indissolubilidade de um matrimônio sacramental e a impossibilidade de novo matrimônio durante a vida do outro parceiro faz parte da tradição de fé vinculante da Igreja, que não pode ser abandonada ou dissolvida, remetendo-se a uma compreensão superficial da misericórdia a baixo preço". O matrimônio e o celibato (diz-se: "livremente escolhidos") "se valorizam e se sustentam mutuamente".
"A família como Igreja doméstica" pode se tornar "fermento no mundo", mesmo que, diante da sua atual desintegração, "precisamos de uma mudança de paradigma". Quanto à comunhão sacramental aos recasados, o que colocaria em discussão a estrutura fundamental dos sacramentos, o professor (sic) Ratzinger indicou uma via de solução penitencial, assim como nos primeiros séculos se fazia com os lapsi, aqueles que haviam renegado o batismo por medo das torturas.
É óbvio que, para Kasper, o poder do bispo deve respeitar a misericórdia com o discernimento: os casamentos civis "devem ser diferenciados de outras formas de convivência irregular como os casamentos clandestinos, os casais de fato, sobretudo a fornicação e os chamados casamentos selvagens" (expressão desconhecida para mim).
Em uma entrevista ao jornal Avvenire (2 de março), Kasper desejava a presença de mulheres no Sínodo, assim como em todos os outros níveis, e à pergunta sobre as razões da sua ausência ele respondia que "na Igreja a autoridade dos ministros consagrados e dos bispos não é domínio, mas é sempre serviço ao povo de Deus e deriva do poder de administrar o sacramento da Eucaristia. Entender, portanto, o exercício da autoridade ligada ao ministério ordenado em termos de poder é clericalismo. Isso também se vê na pouca disposição de tantos presbíteros – sacerdotes e bispos – de deixar aos leigos o controle de papéis de responsabilidade que não requerem o ministério ordenado".
São todas declarações que poderiam ter sido assinadas embaixo por Bento XVI (uma dúvida para o celibato como "escolha") ou por João Paulo II.
E confirmam o que Francisco respondeu ao jornalista que, na viagem no Brasil, lhe havia perguntado qual era a sua posição doutrinal: "A da Igreja". Isto é, a tradição, os 200 anos de imobilismo.
No entanto, é impensável que não se enfrentem definições teológicas hoje no mínimo dúbias, a partir do conceito de "direito natural", que traz consigo o de "criação" e de compatibilidade com a história evolutiva da Terra e de um universo que é, talvez, um multiverso. Não se deveria temer nem mesmo uma renovação dos próprios sacramentos, canonicamente sete e tridentinos, dos quais apenas dois, batismo e eucaristia, são fundantes.
A indissolubilidade e o celibato não podem ser reduzidos ao costume e ao valor intrínseco do conceito de tradição. O "poder" de administrar a eucaristia é rigorosamente masculina, sem uma razão nem escritural, nem teológica que o proíba às mulheres. Para continuar sendo decisão de papas inevitavelmente patriarcais, deve ser doutrinalmente (e seriamente) definido.
Não basta dizer "quem sou eu para julgar" para definir os critérios com base nos quais a Igreja não só pode julgar ou não julgar, mas ela deve definir a si mesma, o significado das Escrituras, os sacramentos, a liturgia, o sentido da sucessão apostólica, a função do papado em relação à colegialidade. O Evangelho não basta? Não basta. Jesus não escreveu nada, os evangelistas são quatro e em desacordo, e as interpretações vetaram o "livre exame" e a liberdade pesquisa teológica.
O dia 1º de outubro será indicativo. Mas deverá desfazer as perplexidades, que não dizem respeito apenas à família.
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O bispo de Roma e suas insuficiências. Artigo de Giancarla Codrignani - Instituto Humanitas Unisinos - IHU