Por: Cesar Sanson | 14 Janeiro 2014
Dezesseis dias após o violento protesto na cidade de Humaitá contra os índios do sul do Amazonas, lideranças indígenas relatam um clima de tensão e ameaças na reserva Tenharim Marmelos, cortada pela rodovia Transamazônica. Segundo os tenharins, os índios vêm recebendo intimidações diárias por mensagens e via internet e paira no ar um temor de novos ataques. Com medo de ir à cidade de Humaitá, localizada a 675 quilômetros de Manaus, eles relatam um estado de sítio na reserva, o que dificulta o acesso a medicamentos e alimentos.
"O que está mais preocupante é a parte da saúde, que falta de um modo geral. Faltam medicamentos e atendimento médico na aldeia. Há pacientes com doenças graves e que precisam de acompanhamento médico de alta complexidade", relatou à CartaCapital por telefone o cacique Aurélio Tenharim.
A reportagem é de Bruna Carvalho e publicada pela Carta Capital, 13-01-2104.
O conflito entre brancos e índios na região se intensificou no dia 25 de dezembro, quando manifestantes em Humaitá depredaram as sedes da Fundação Nacional do Índio (Funai), da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e atearam fogo contra onze carros do órgão. Os moradores acusam os indígenas de estarem por trás do desaparecimento de três homens, vistos pela última vez na reserva. Segundo os manifestantes, o desaparecimento seria uma retaliação à morte do cacique Ivan Tenharim, cujo corpo foi encontrado na beira da estrada com hematomas e um ferimento na cabeça. Há suspeitas de que ele sofreu um acidente de moto, mas as causas e circunstâncias da morte ainda não foram esclarecidas.
Dois dias depois, um grupo de 300 pessoas fez uma nova manifestação e invadiu as aldeias para, segundo eles, buscar os corpos do professor Stef Pinheiro de Souza, do técnico Aldeney Ribeiro Salvador, e do representante comercial Luciano Ferreira Freire. Na ação, foi destruído o posto de cobrança de um pedágio no quilômetro 145 da Transamazônica, erguido informalmente pelos índios para compensação de prejuízos provocados pela rodovia. No dia seguinte, um grupo formado por agentes da Polícia Federal, da Polícia Militar e do Exército deram inícios às buscas na reserva.
De acordo com a Polícia Federal, nenhuma pessoa ou corpo foi encontrado e nenhum veículo foi identificado até o momento. No dia 6, foram encontrados “sinais de um veículo incendiado”, mas que não foram identificados como partes do automóvel dos desaparecidos.
“Somos inocentes desta acusação, e esperamos que essas buscas terminem logo para que isso fique esclarecido de uma vez por todas”, afirmou o cacique Aurélio. “As aldeias estão abertas para a Polícia Federal. Desde o início, quando soubemos pela mídia dos desaparecimentos, deixamos as portas de todas as aldeias abertas.”
Para Aurélio, o atual conflito rememora o ano de 2011, quando a Funai, o Ibama e as lideranças indígenas foram alvo de ameaças por madeireiros do distrito de Santo Antônio de Matupi, que faziam extração ilegal na reserva, após apreensão de maquinários. “O que está acontecendo agora é só um pretexto. Os tenharins sempre foram alvo de interesses dos madeireiros, dos latifundiários, dos grileiros. A área indígena sempre foi rica em minerais e madeira. Os índios vêm sofrendo pressões há décadas”, disse.
Na sexta-feira 10, o Ministério Público Federal do Amazonas apresentou uma manifestação à Justiça Federal para que cobre a União e a Funai pelo cumprimento pleno da decisão judicial para proteger os indígenas. A decisão liminar de 28 de dezembro previa o retorno dos índios que estavam em Humaitá para a reserva e a elaboração de um plano de proteção para garantir a integridade dos indígenas.
De acordo com o Ministério Público, apenas parte da liminar foi cumprida, com o efetivo retorno dos indígenas. “Não estão sendo adotadas as medidas necessárias para garantir paz e estabilidade aos indígenas para a reprodução de seus modos de vida, e sim apenas para assegurar a realização das atividades de busca no local”, afirmou o procurador da República Julio José Araujo Junior em nota.
Nas aldeias ao longo da rodovia, há mulheres grávidas e idosos com problemas graves de saúde. Após a decisão da Justiça, alguns índios que estavam em tratamento médico em Humaitá foram retirados às pressas da cidade e levados à aldeia, onde quem está, deve permanecer. “A gente não se sente seguro de ir para a cidade, porque a população lá está contra o indígena. Então, a gente vai confiar em quem? A gente tem até recomendação da polícia para não ir para a cidade, então estamos evitando ao máximo, Por mais que as dificuldades sejam grandes, estamos segurando as pontas aqui”, afirmou Angelisson Tenharim, secretário da Organização dos Povos Indígenas do Alto Madeira (Opiam). Segundo Angelisson, a situação de risco não se restringe aos povos de etnia tenharim, mas também ao jiahuis e parintintins. “Todo o índio no sul do Amazonas está correndo um risco. Todos nós estamos sendo ameaçados.”
Procurada pela reportagem, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, afirmou em nota que a destruição de veículos, mobiliários e equipamentos da Sesai em Humaitá e a falta de segurança para os profissionais “impossibilitaram a continuidade dos serviços de saúde”. A Sesai informa que já providenciou a reposição dos equipamentos e veículos e que vai restabelecer o atendimento na próxima semana, com apoio do Exército.
O governo federal afirmou por meio de uma nota na sexta-feira que tem atuado na região com homens do Exército, da Polícia Federal e da Força Nacional, “dando apoio logístico e garantindo a segurança de todos os que habitam a região ou transitam por ela”. Também disse que mobilizará uma força-tarefa composta pelos ministérios do Desenvolvimento Agrário, Desenvolvimento Social e Combate à Fome, Saúde, Defesa, Meio Ambiente, Secretaria-Geral da Presidência e pela Funai para garantir a implementação de “políticas públicas sociais e de sustentabilidade econômica”. O governo prometeu enviar cestas de alimentos e médicos à aldeia, previstos para chegar no fim de semana.
Pedágio
Outro ponto de tensão entre brancos e índios é a cobrança de pedágio realizada pelos índios na Transamazônica há oito anos para os carros que passam pela rodovia. Para os indígenas, não se trata de um pedágio, mas de uma “cobrança de compensação” pelos impactos sociais e ambientais provocados pela rodovia Transamazônica desde a sua construção nos anos 70, durante a ditadura.
O pedágio não tem respaldo legal e as autoridades acreditam que o cancelamento de sua cobrança seria fundamental para o arrefecimento dos ânimos entre brancos e índios. Suspensa durante os últimos dias por causa do protesto e da invasão, a cobrança será retomada no dia 1º de fevereiro. O anúncio foi feito após reunião no dia 8 de janeiro com o comandante militar da Amazônia, Eduardo Villas Bôas, o comandante da 17ª Brigada de Porto Velho, Ubiratan Poty, o corregedor do Ministério Público José Roque Marques, entre outras autoridades.
“A cobrança é para garantir a sobrevivência dos povos indígenas, porque não tem nenhum projeto do governo federal que dê sustentação aos tenharins e aos jiahuis”, afirmou Aurélio. “Quando a gente vai a um show, ou uma exposição de rodeio, tem gente lá cobrando estacionamento irregular. Quando as pessoas vão na sua casa, qual a primeira coisa que tem que fazer? Pedir permissão, pedir licença para entrar. A terra indígena é da União, mas é de uso fruto exclusivo dos povos indígenas. É claro que a rodovia é federal, mas quando na ditadura saiu a Transamazônica, também foi ilegal.”
Aurélio Tenharim acrescentou que, ao planejar a Transamazônica, o governo não previu a série de prejuízos que os índios teriam com a rodovia, e que, de lá para cá, não atuou de forma efetiva para garantir meios de vida dignos aos indígenas. Agora, segundo eles, seria impraticável abrir mão da cobrança de pedágio, uma de suas únicas fontes de renda. "A Transamazônica trouxe a redução da população tenharim, a mortalidade das crianças, das grávidas, dos pajés pelas doenças e os estupros das mulheres indígenas pelos operários da rodovia.”
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Dias após conflito em Humaitá, índios relatam estado de sítio e ameaças - Instituto Humanitas Unisinos - IHU