04 Mai 2014
Vi Jacques Le Goff pela última vez poucos dias antes de ele morrer. Havia ido encontrá-lo na sua casa, no quinto andar de um palácio na zona norte de Paris. No seu escritório repleto de livros, em frente a uma escrivaninha enterrada debaixo de uma montanha de papéis – "um dos meus defeitos é a desordem", repetia ele frequentemente – começamos a falar de São Francisco e do Papa Bergoglio, comparando a figura do santo medieval com a do papa contemporâneo.
A reportagem é de Fabio Gambaro, publicada no jornal La Repubblica, 01-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Cansado, mas, como sempre, lúcido e rigoroso, Le Goff me contou como nascera o seu interesse pelo autor do Cântico das Criaturas, ao qual depois dedicou o livro San Francesco d'Assisi (Laterza). E me explicou a sua curiosidade em relação ao novo papa, em cuja ação via diversos elementos de continuidade com o santo.
Enquanto ouvia as suas recordações e as suas reflexões, eu não imaginava que, uma semana depois, o historiador francês faleceria em um hospital parisiense. O que se segue é uma parte da nossa última conversa.
Eis a entrevista.
Como foi que o senhor se ocupou de São Francisco?
É um interesse que eu cultivo há anos, desde a primeira vez que eu vi Assis no pós-guerra. Eu era um jovem historiador atraído pela Itália, um país onde eu estivera várias vezes, até porque a família da minha mãe veio da região de Imperia.
O que o impressionou em Assis?
Acima de tudo, a topografia dos lugares. Para mim, a ligação entre a história e a geografia sempre foi essencial, e em Assis a história social e espiritual de Francisco se expressavam geograficamente. Por um lado, a colina com a cidade que representava a vida comercial e política da época. Depois, a solidão e o afastamento da ermida de Cárceres, símbolo da nova forma de solidão monástica proposta pelo franciscanismo. Finalmente, a natureza que circunda a igreja de São Damião, o lugar da nova ecologia espiritual de São Francisco. Em suma, diante desses lugares, pareceu-me ver uma encarnação particularmente evidente em um movimento histórico.
Qual era a sua relação com a religião?
Eu comecei a me interessar pelo franciscanismo no momento em que eu me afastava definitivamente da religião católica. Quando jovem, eu recebera uma educação religiosa. Minha mãe, segundo a tradição italiana, era muito católica e devota. Meu pai, ao invés, era um filho do "affaire Dreyfus", portanto secular e anticlerical. Apesar de tal diferença, os meus pais eram muito unidos, e a religião nunca foi um assunto de disputa.
A sua formação é o resultado dessas duas tradições?
Sim, embora durante a juventude tenha prevalecido a influência da minha mãe. Depois, porém, eu me afastei progressivamente da fé. Quando cheguei em Assis, olhei para São Francisco com os olhos do historiador e não do crente. Interessavam-se me acima de tudo as suas ações e as suas escolhas, mais do que ele podia representar no plano religioso.
Para o senhor, qual é o aspecto central da figura de São Francisco?
A modernidade. Diante da nova sociedade em mutação, ele identifica claramente o problema da riqueza e das desigualdades. Tal consciência o levou a cuidar da pobreza. Por outro lado, se o atual papa escolheu o seu nome pela primeira vez na história da Igreja, é precisamente por causa de tal modernidade, em cujo rastro ele se inscreve. E se há um elemento comum a São Francisco e ao Papa Bergoglio, é justamente a luta contra o dinheiro e a defesa dos pobres.
Duas épocas diferentes, mas uma mesma preocupação?
No século XIII, para satisfazer as necessidades da economia e, em particular, do comércio, o uso do dinheiro tornou-se cada vez mais importante. Essa evolução, porém, produziu alguns excessos contra os quais São Francisco luta. Ainda hoje assistimos a uma revisão das atitudes em relação ao dinheiro, só que não se trata mais de uma reação a uma novidade, como no século XIII, mas sim de uma reação a uma crise, a que abalou a economia do início do século XXI. O Papa Francisco é o papa de crise. Provavelmente uma parte dos cardeais que o elegeram viram nele o homem capaz de ajudar a Igreja e a sociedade a superar essa fase do mundo capitalista.
A crítica da riqueza é acompanhada pela necessidade de novas formas de espiritualidade, a serem contrapostas ao materialismo, filho do dinheiro?
Certamente. No século XIII, isso é particularmente evidente. São Francisco prega a necessidade do retorno ao Evangelho, em cujo interior encontram-se as bases para combater os excessos da riqueza. Basta pensar na célebre frase: "É mais fácil um camelo passar pelo olho de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus". A espiritualidade contemporânea é menos fácil de decifrar. Hoje, ao lado do fascínio do dinheiro sempre muito forte, manifesta-se uma suspeita crescente em relação à riqueza e às suas manifestações. Daí uma demanda de espiritualidade, que, porém, talvez, não tem muito a ver com a espiritualidade cristã. Em todo o caso, a modernidade do Papa Francisco, assim como a do santo de Assis, nasce da vontade de lutar contra a materialização da sociedade, do espírito e das religiões, retomando, ao mesmo tempo, a tradição dos Evangelhos, para colocá-la novamente no centro da reflexão e da prática do mundo católico.
O Evangelho das origens em oposição aos Padres da Igreja?
Em parte, é isso. Mas também é preciso ressaltar que, ao contrário de todas as heresias que surgiram entre os séculos XII e XIII, Francisco permaneceu dentro da Igreja, porque sentia a necessidade dos sacramentos. Precisamente porque se trata de uma modernização que é também um retorno às origens, nele havia uma vontade de renovação, mas sem romper com as instituições. Assim como me parece que o pontífice está fazendo.
Que outro aspecto da modernidade de São Francisco parece-lhe particularmente importante?
Parece-me que a temática da ecologia pode falar de forma significativa para o nosso tempo. A ecologia implica a necessidade de espiritualidade não necessariamente ligada a uma religião. Pode, portanto, ser compartilhada por todos.
Quais são as características da preocupação ecológica de São Francisco?
Se olharmos para a forma como o santo de Assis se expressa e como ele constrói o franciscanismo, notamos que ele se distancia do maior movimento social do seu tempo, isto é, o desenvolvimento das cidades. São Francisco contrapõe a ele a natureza e a estrada, já que promove a pregação "a caminho". Além disso, se há uma obra literária que podemos considerar como ecologista é justamente o Cântico das Criaturas. A preocupação pela natureza é um traço importante da sua pregação, embora, por enquanto, parece-me que o Papa Francisco não o ressaltou particularmente. Talvez porque seja uma temática menos sentida naquele mundo da América Latina de onde ele provém.
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''Os dois Franciscos.'' A última entrevista de Jacques Le Goff - Instituto Humanitas Unisinos - IHU