24 Março 2014
No marco do 34º aniversário de morte de Dom Óscar Arnulfo Romero, o teólogo espanhol jesuíta Jon Sobrino oferece uma reflexão sobre as últimas homilias do arcebispo salvadorenho, assassinado por um esquadrão da morte enquanto celebrava a missa.
Sobrino é professor da Universidade Centro-Americana (UCA), em El Salvador, e doutor em Teologia pela Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt, na Alemanha. É autor de vários livros, dentre os quais destacamos Fora dos pobres não há salvação (Paulinas, 2008) e Jesus, o Libertador: a história de Jesus de Nazaré (Vozes, 1994).
O artigo foi publicado na revista de atualidade pastoral Settimana, 23-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
O fim é o que dá sentido ao desenvolvimento, dizia um grande filósofo. No caso de Romero é realmente assim: as suas duas últimas homilias não foram as "últimas" simplesmente porque ele não fez outras.
Foram "últimas" porque nelas, e naqueles dias, emergiu claramente a verdadeira essência dos últimos três anos do monsenhor. Finalmente, foram "últimas" porque eles as proferiu na catedral junto com o seu povo e no pequeno hospital junto com os doentes incuráveis. E, para um pastor, nada conta mais do que o "povo" e os "pobres".
Vou me deter nas duas últimas homilias dos dias 23 e 24 de março de 1980, com algumas pequenas referências a outras que remontam aos primeiros meses de 1980. Vou citar alguns parágrafos de forma extensiva, porque muitos desses trechos são mais eloquentes do que muitas palavras.
A última homillia no "hospitalito"
No dia 24 de março de 1980, Dom Romero proferiu a sua última homilia na capela do Hospital da Divina Providência para doentes de câncer. No "hospitalito", ele preparava aos sábados as suas homilias dominicais com livros de teologia bíblica, com relatórios sobre as violações dos direitos humanos e com tudo o que tivesse a ver com a pobreza do povo. E, no "hospitalito", como Jesus junto ao lago ou no horto, rezava ao Deus que vê em segredo.
O Bispo, rodeado de multidões, a quem produzia uma profunda alegria estar com o seu povo na catedral e nas ruas, no "hospitalito" estava sozinho e sem seguranças. Às noites, ficava e vivia com o seu Deus.
As pessoas mais próximas – a poucos metros do seu quarto – eram mulheres doentes de câncer incurável, pobres todas elas, com a angústia adicional de não saber o que seria dos seus filhos, assim que morressem. Essas mulheres eram o símbolo de muitas outras mães de filhos mortos, desaparecidos, torturados e de todo um povo sofredor.
No dia 24 de março, às 17 horas, ele celebrou uma missa de aniversário pela Dona Sarita, apesar de terem lhe aconselhado que não o fizesse, pois a missa tinha sido anunciada na imprensa e podia ser um aviso para aqueles que queriam assassiná-lo. O Bispo insistiu em celebrá-la e terminou a sua homilia com estas palavras:
"Que este corpo imolado e esta carne sacrificada pelos homens nos alimente também para dar o nosso corpo e o nosso sangue ao sofrimento e à dor, como Cristo, não para si, mas para dar conceitos de justiça e de paz ao nosso povo. Unamo-nos, pois, intimamente, na fé e na esperança a este momento de oração pela Dona Sarita e por nós."
Nesse momento, ecoou o tiro. Um atirador de elite pôs um amém pascal em sua palavra. Sua identificação com Cristo, sua entrega ao seu Deus e sua entrega ao seu povo tinham se consumado.
As últimas homilias na catedral
No "hospitalito" estava a raiz do Bispo. Nas homilias da catedral viam-se os seus frutos. Nelas, aumentava a crueza da denúncia, a exigência de conversão e a necessidade de se agarrar à esperança. Fez uso do magistério da Igreja e fez um uso ainda maior do evangelho de Jesus. E, cada vez mais, trouxe para as homilias os clamores do povo que subiam até o céu cada vez mais tumultuosos. Não é de se surpreender que as homilias duravam cerca de uma hora e meia, ou mais. Lembremos o fundamental.
Como ele preparava as homilias
Em sua última homilia na catedral, o Monsenhor confessou como as preparava, qual era a fonte do que ia denunciar e anunciar. "Peço ao Senhor, durante toda a semana, enquanto vou recolhendo o clamor do povo e a dor de tantos crimes, a ignomínia de tanta violência, que me dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao arrependimento, e, embora eu continue sendo uma voz que clama no deserto, sei que a Igreja está fazendo o esforço para cumprir a sua missão."
A acusação de "meter-se na política"
Com a maioria dos seus irmãos bispos, o Bispo mantinha uma forte tensão por várias razões. Uma razão importante era que eles insistiam que a Igreja não devia se meter na política. O Monsenhor sabia muito bem que o problema era outro: o problema era sair da política de direita. Levando isso em conta, Dom Romero, pública e conscientemente, nas suas homilias, "meteu-se na política". E o fez isso com total clareza quando analisou os três projetos que surgiram depois do golpe de Estado do dia 15 de outubro de 1979. Condenou o projeto da oligarquia, em que não via bondade alguma.
Ao projeto da democracia cristã, exigiu o controle da repressão ou que abandonassem o governo. E viu mais esperanças no projeto popular, sobretudo se as forças populares se unissem e não absolutizassem a sua ideologia. E as condenou sempre que cometiam atos violentos injusto.
Na homilia de 23 de março, a defesa do Bispo
"Eu já sei que há muitos que se escandalizam com esta palavra e querem acusá-la de ter deixado a pregação do evangelho para se meter na política. Mas eu não aceito essa acusação e faço um esforço para que tudo o que o Concílio Vaticano II, a reunião de Medellín e de Puebla quiseram nos impulsionar, não só o tenhamos nas páginas e o estudemos teoricamente, mas também que o vivamos e o traduzamos nesta conflitiva realidade de pregar o evangelho para o nosso povo como se deve."
A verdade sem compromissos: a denúncia
O Bispo sempre disse a verdade. Nunca encobriu nada. Nem caiu na tentação de dissimulá-la, apelando ao politicamente correto. Dada a situação, a verdade ressoou com mais força na denúncia. E em palavras, cheias de honradez e muito próprias ao Monsenhor, disse era preciso começar dentro de casa.
"Todo aquele que denuncia deve estar disposto a ser denunciado, e se a Igreja denuncia as injustiças ela está disposta também a escutar que é denunciada e é obrigada a se converter... Os pobres são o grito constante que denuncia não só a injustiça social, mas também a pouca generosidade da nossa própria Igreja" (Homilia de 17 de fevereiro de 1980).
Apoiado na credibilidade que essas palavras dão e também em uma verdade sem compromissos, recordemos algumas denúncias. Ele as fazia com imenso carinho para com as vítimas e sem ódio – e com um difícil amor – pelos seus verdugos.
O Bispo tornou a oligarquia a responsável última pela opressão e repressão no país e pela guerra que se assomava.
"Faço um chamado à oligarquia: não idolatrem as suas riquezas, não as salvem deixando morrer de fome os demais" (Homilia de 6 de janeiro de 1980 ).
Às Forças Armadas, corpos de segurança, esquadrões da morte e a Junta de Governo, denunciou como responsáveis pela repressão:
"A Junta de Governo deve ordenar, de forma eficaz, o cessar imediato de tanta repressão indiscriminada, porque a Junta também é responsável pelo sangue, pela dor de tantas pessoas. As Forças Armadas, sobretudo os corpos de segurança, devem depor essa fúria e ódio quando perseguem o povo, devem demonstrar, com fatos, que estão a favor das maiorias e que o processo que se iniciou é de caráter popular. Vocês, ou muitos de vocês, são de extração popular, razão pela qual a instituição do Exército deveria estar a serviço do povo. Não destruam o povo. Não sejam vocês os promotores de maiores e mais dolorosas explosões de violência com que um povo reprimido poderia reagir, e com justiça" (Homilia de 20 de janeiro de 1980).
"Como pastor, sinto que tenho um dever para com as organizações políticas populares", dizia o Bispo. Mas lhes advertia repetidamente sobre seus perigos e, quando foi necessário, as denunciou.
"A nessas organizações populares e, sobretudo, as de caráter militar e guerrilheiro, do sinal que forem, digo-lhes também que cessem já esses atos de violência e terrorismo" (Homilia de 20 de janeiro de 1980). "Queridos irmãos, as reivindicações do povo são muito justas e é preciso continuar defendendo a justiça social e o amor aos pobres. Mas, para isso, se de verdade amamos o povo e tentamos defendê-lo, não lhe tiremos o mais valioso: sua fé em Deus, seu amor a Jesus Cristo, seus sentimentos cristãos" (Homilia de 10 de fevereiro de 1980).
"Urge que as organizações populares vão amadurecendo para que cumpram a sua missão de chegar a ser intérpretes da vontade do povo" (Homilia de 24 de fevereiro de 1980). "Não calemos os pecados, mesmo os da esquerda, mas estes são desproporcionalmente menores diante da violência repressiva" (Homilia de 9 de março de 1980).
Uma nova Igreja de pobres e perseguidos
Foi isso que Dom Romero construiu. "Por defender o pobre, a Igreja entrou em grave conflito com os poderosos das oligarquias econômicas" (Discurso de Louvain, 2 de fevereiro de 1980).
Antes, ele já tinha dito com eloquência impressionante: "Alegro-me, irmãos, pelo fato de a nossa Igreja ser perseguida, precisamente pela sua opção preferencial pelos pobres" (Homilia de 15 de julho de 1979). "Seria triste que, em uma pátria onde se está assassinando tão horrorosamente, não contássemos os sacerdotes também entre as vítimas. Eles são o testemunho de uma Igreja encarnada nos problemas do povo" (Homilia de 24 de junho de 1979).
A dignidade das vítimas
Praticamente no começo do seu ministério, no dia 19 de junho de 1977, Dom Romero consolou os camponeses de Aguilares com estas palavras inauditas: "Vocês são o Divino Transpassado", "o Cristo crucificado". E, pouco antes de ele mesmo cair assassinado, voltou a repeti-las, ainda com mais vigor: "Todo homem é filho de Deus, e cada homem morto é um Cristo sacrificado que a Igreja também venera" (Homilia de 2 de março de 1980). E, sobre esse povo crucificado, em um arrebatamento evangélico, o Monsenhor disse: "Com este povo, não custa ser um bom pastor" (Homilia de 18 de novembro de 1979).
Não conhecemos muitos bispos que falem assim. Certamente, não em igrejas do mundo do bem-estar, e no chamado terceiro mundo eles também diminuíram. Graças a Deus, Dom Pedro Casaldáliga continua imperturbável. E ainda chegam os ecos de Christophe Munzihirwa, arcebispo de Bukavu, na República do Zaire, assassinado em 1996, que defendeu centenas de milhares de refugiados e denunciou, pelo nome, as potências estrangeiras.
A denúncia final: "Cesse a repressão!"
Só em janeiro e fevereiro de 1980, muito antes de que a guerra estourasse, houvera mais de 600 mortos. No dia 16 de março, o Bispo disse: "Nada me importa tanto quanto a vida humana". E, uma semana depois, no dia 23 de março, em um longo parágrafo, meditado e bem pensado, pronunciou estas memoráveis palavras:
"Eu gostaria de fazer um chamado de maneira especial aos homens do Exército e, concretamente, às bases da Guarda Nacional, da polícia, dos quartéis. Irmãos, vocês são do nosso mesmo povo, matam os seus próprios irmãos camponeses e, diante de uma ordem para matar dada por um homem, deve prevalecer a lei de Deus que diz: 'Não matar'. Nenhum soldado está obrigado a obedecer uma ordem contra a lei de Deus. Uma lei imoral, ninguém tem que cumprir. Já é tempo de que vocês recuperem a sua consciência e que obedeçam antes à sua consciência do que a ordem do pecado. A Igreja, defensora dos direitos de Deus, da lei de Deus, da dignidade humana, da pessoa, não pode ficar calada diante de tanta abominação. Queremos que o governo leve a sério que de nada servem as reformas se são manchadas com tanto sangue. Em nome de Deus, pois, e em nome deste sofrido povo, cujos lamentos sobem até o céu, cada dia mais tumultuosos, eu lhes suplico, lhes rogo, lhes ordeno em nome de Deus: cesse a repressão!".
"Em nome de Deus e em nome deste sofrido povo" são palavras que nunca antes tinham sido ouvidas, nem nunca depois voltaram a ser ouvidas. O estrondoso aplauso do povo, nunca antes ouvido e nunca ouvido depois, foi o amém do povo.
A esperança final: "Se o grão de trigo não morre..."
Dom Romero enfrentou conscientemente uma morte violenta. No seu último retiro que começou no dia 25 de fevereiro, ele escreveu: "Custa-me aceitar uma morte violenta, que, nestas circunstâncias, é muito possível". E, em sua última homilia no "hospitalito", aceitou a morte. "Quem quiser afastar de si o perigo perderá a sua vida. Por outro lado, aquele que se entrega, por amor a Cristo, ao serviço dos demais, este viverá como o grãozinho de trigo que morre, mas só morre aparentemente. Se não morresse, ficaria só" (Homilia de 24 de março de 1980).
Poucos dias antes, ele disse a um jornalista estas palavras memoráveis [1]:
"Fui frequentemente ameaçado de morte. Devo dizer-lhes que, como cristão, não acredito na morte sem ressurreição. Se me matarem, ressuscitarei no povo salvadorenho. Digo isso sem nenhuma arrogância, com a maior humildade. Como pastor, sou obrigado por mandato divino a dar a vida para aqueles que amo, que são todos os salvadorenhos, até mesmo por aqueles que vão me assassinar... Você pode dizer, se chegarem a me matar, que perdoo e abençoo aqueles que o fizerem" (Entrevista ao jornal El Diario de Caracas, março de 1980).
O povo de Deus
Romero falou do povo e falou de Deus, muitas vezes no mesmo discurso. Acabamos de ver isso: "Em nome de Deus e em nome do povo, cesse a repressão". E encontramos o mesmo binômio em uma linguagem mais teológica. "Gloria Dei vivens pauper", disse ele em Louvain no dia 2 de março de 1980.
"A glória de Deus é que o pobre viva." Aos pobres que perguntavam "onde está Deus?", o Monsenhor os encorajava: "Deus vai com a nossa história! Deus não nos abandonou. Deus vai tirando partido até das injustiças dos homens" (Homilia de 9 de dezembro de 1979).
Romero falou do mistério pessoal de Deus. O seu desejo mais íntimo era "que eu não seja um estorvo no diálogo entre você e Deus […]. Alegra-me muito quando há pessoas simples que encontram nas minhas palavras precisamente um veículo para se aproximar de Deus" (Homilia de 27 de janeiro de 1980). Com sincera abertura a todos e sem o menor sinal de sectarismo, afirmou: "Sem Deus, não pode haver libertação" (Homilia de 2 de março de 1980).
Romero nunca se esqueceu de Deus. Mesmo nos momentos mais difíceis e críticos para o país e para si mesmo, ele o recordou como mistério abençoado. Na homilia do dia 10 de fevereiro, nos deixou estas palavras, com as quais queremos concluir estas reflexões sobre as últimas homilias do Monsenhor: "Nenhum homem se conhece enquanto não tiver se encontrado com Deus. [...] Quem me dera, queridos irmãos, que o fruto desta pregação de hoje fosse que cada um de nós fôssemos nos encontrar com Deus e que vivêssemos a alegria da sua majestade e da nossa pequenez" [2].
Notas:
1. Alguns discutem se o texto é de Dom Romero. Eu não posso responder essa pergunta. Só posso dizer que, pela linguagem, pelos conceitos e pelo pathos, o texto reflete esplendidamente o Dom Romero dos últimos dias.
2. La messa incompiuta, Le ultime omelie di un vescovo assassinato. Bolonha: EDB, 2014, 80 páginas. Homilias no original em espanhol em: http://www.sicsal.net/romero/homilias/indice.htm.
Veja também:
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As ''últimas'' homilias de Dom Romero. Artigo de Jon Sobrino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU